sábado, 26 de fevereiro de 2011

O que é que tá acontecendo na Líbia? Do mundo árabe à América Latina

Por Santiago Alba Rico e Alma Allende 26/02/2011 às 15:10




Temos a impressão de que um grande processo emancipatório mundial pode ser abortado pela implacável ferocidade de Gadafi, a intervenção estadounidense e a pouca clarividência na América Latina


Temos a impressão de que um grande processo de emancipação mundial pode ser abortado pela ferocidade implacável de Kadafi, a intervenção dos EUA e a pouca clarividência na América Latina. Poderia descrever a situação: há uma zona no mundo religada por um forte sentimento de solidariedade interna. Dessa zona, onde há pouco tempo atrás só se esperava letargia ou fanatismo, surge uma onda de levantes populares que ameaça derrubar, um após outro, todos os aliados das potências ocidentais na região. Passando por cima das muitas diferenças locais, estes levantes tem algo em comum que certamente os distingue radicalmente das "revoluções" vermelhas e amarelas promovidas pelo capitalismo da órbita da ex-urss soviética: exigem democracia, sim, mas - longe de estarem fascinadas pela Europa e pelos  EEUU - são detentores de uma radical, longa e enraigada tradição anti-imperialista, forjada em torno da Palestina e do Iraque. Não há nos levantes populares árabes ranço de socialismo, islamismo, e nem mesmo - o mais importante - de sedução eurocêntrica: trata-se ao mesmo tempo de revolta econômica misturada com revolução democrática, nacionalista e anticolonialista, o que abre de cara, quarenta anos depois de sua derrota, uma inesperada oportunidade para as esquerdas socialistas e panarabistas da região.


A América Latina progressista, cujos pioneiros processos emancipatórios constituiram a esperança do antiimperialismo mundial, deveria apoiar neste momento o mundo árabe, e sem reservas, adiantando-se à estratégia das potências ocidentais. Na esteira dos acontecimentos tais potências querem se aproveitar das ações tresloucadas de Gadafi para implementar um retrocesso - militar talvez, mas sobretudo propagandístico - como paladinas dos direitos humanos e da democracia. Este discurso é pouco confiável naquela zona do mundo, donde Fidel e Chaves gozam de enorme crédito popular, mas se a América Latina se alinha, ativa ou passivamente, com o tirano, não apenas os contagiosos avanços populares, que sopram da Europa a Wisconsin, se verão inevitavelmente contidos, como também haverá uma nova fratura no campo anti-imperialista dos EUA, sempre vigilantes, como relojoeiro do mundo, que usarão tudo isso para recuperar o terreno perdido. Algo assim pode estar já ocorrendo como resultado de uma combinação de ignorância e de anti-imperialismo esquemático e sumário. Os povos árabes, que voltam aos palcos da história, precisam do apoio dos seus irmãos latinoamericanos. O mais importante agora é que a relação de forças no mundo não pode pagar por uma hesitação de Cuba e da Venezuela, sem que Cuba e Venezuela sofram também as consequencias, sofrendo com eles a América Latina e as esperanças de transformação a nível planetário. 


Podemos alegar que sabemos pouco do que ocorre na Líbia e suspeitar da condenação ocidental, midiática e institucional, dos últimos dias. Podemos deixar por isso mesmo. Os imperialistas são muito espertos. Eles têm muitos interesses específicos na área, tem defendido até o fim seus ditadores, mas quando eles percebem que não tem mais jeito, os deixam cair e escolhem outra estratégia: apoiar processos democráticos de controle remoto, selecionar minorias pósmodernas como motor de mudança limitada para implantar, sem nenhuma vergonha - sabendo que a memória é curta e os reflexos da esquerda muito imediatos - um novo arco-íris da retórica democrática. Temos que nos opor a qualquer interferência ocidental, mas eu sinceramente não acredito que a NATO invadirá a Líbia; o que nós acreditamos é que esta ameaça, apenas sugerida, tem o efeito de desfocar e confundir o campo anti-imperialista, e isso ao ponto de nos fazer esquecer algo que deveríamos saber sempre: quem é Kaddafi. Esquecê-lo pode produzir pelo menos três efeitos terríveis: romper os laços com os movimentos árabes, dar legitimidade às acusações contra a Venezuela e Cuba e "dar novo prestígio" ao danoso discurso democrático imperialista. Um triunfo, sem dúvida, para os interesses imperialistas na região. 


Gaddafi foi durante os últimos dez anos um grande amigo da UE e dos EUA e de seus ditadores aliados na região. Basta recordar as inflamadas declarações de apoio do Calígula líbio ao deposto Ben Alí, cujas milícias provavelmente forneceram forneceram armas e dinheiro nos dias posteriores a 14 de janeiro. Acrescente-se a isso a dócil colaboração de Gadafi aos EEUU no marco da "guerra ao terror". A colaboração política foi acompanhada de estreitos vínculos econômicos com a UE, inclusive a Espanha: a venda de petróleo à Alemanha, Itália, França e EEUU ocorreu paralelamente com a entrada na Líbia das grandes companhias ocidentais (a empresa espanhola Repsol, a British Petroleum, a francesa Total, a italiana ENI ou a austríaca OM), isso sem mencionar os suculentos contratos das construtoras européias, [brasileiras (Queirós Galvão, etc)] e espanholas, em Tripoli. Além disso, a França e os EEUU não deixaram de vender armas para que agora a matança venha de cima, por helicópteros e caças, contra seu próprio povo, seguindo o exemplo da Itália imperial desde 1911. Em 2008, a ex-secretária de Estado, Condoleeza Rice, deixou bem claro: "A Líbia e os Estados Unidos compartilham de interesses permanentes: a cooperação na luta contra o terrorismo, o comércio, a proliferação nuclear, África, os direitos humanos e a democracia". 


Quando Gadafi visitou a França em dezembro de 2007, Ayman El-Kayman resumiu a situação em um parágrafo que reproduzo aqui: "Quase dez anos atrás, Gadafi deixou de ser para o Ocidente democrático um indivíduo pouco recomendável. Para ter seu nome retirado da lista estadunidense de Estados terroristas, ele reconheceu a responsabilidade pelo atentado de Lockerbie. Para normalizar suas relações com o Reino Unido, deu os nomes de todos os republicanos irlandeses que haviam sido treinados na Líbia. Para limpar a barra com os Estados Unidos, deu todas as informações que tinha sobre os líbios suspeitos de participação na jirad junto a Bin Laden e renunciou a suas "armas de destruição em massa", além de pedir à Síria que fizesse o mesmo. Para normalizar as relações com a União Européia, transformou-se no guardião dos campos de concentração, donde estão encarcerados milhares de africanos que se dirigiam à Europa. Para normalizar suas relações com seu sinistro vizinho Ben Alí, entregou-lhe os opositores do regime refugiados na Líbia". 


Como se vê, Gadafi não é nem revolucionário nem aliado - nem mesmo do ponto de vista tático - dos revolucionários do mundo. Em 2008, Fidel e Chávez (com o Mercosul) justamente denunciaram a "diretiva vergonhosa" européia que reforçava já há muito tempo a severa perseguição na Europa da humanidade desnuda nos barcos e nos abrigos. De todos os crimes de Gaddafi talvez o mais sério e o menos conhecido é a sua cumplicidade com a política de imigração da UE, especialmente na Itália, como o carrasco dos migrantes africanos. Quem quiser ricas informações sobre o assunto pode ler Il Mare di Mezzo, do bravo jornalista Gabriele Del Grande ou visitar seu site Fortresseurope, que revela alguns documentos assustadores. Desde 2006, a Human Rights Watch e AFVIC vem denunciando detenções arbitrárias e tortura em prisões líbias financiadas pela Itália. O acordo Berlusconi-Gadafi de 2003 pode ser lido em sua íntegra na página de Gabriele del Grande e suas consequencias se resumem sucinta e dolorosamente no grito de Farah Anam, fugitiva somali dos campos da morte líbios: "Prefiro morrer no mar a regressar à Líbia". Apesar das denúncias que falam de verdadeiras páticas de extermínio - ou precisamente por causa delas, que demonstram a eficácia de Gadafi como guardião da Europa - a Comissão Européia firmou em outubro uma "agenda de cooperação" para a "gestão dos fluxos migratórios" e o "controle das fronteiras", válido até 2013 e acompanhado da entrega à Líbia de 50 milhões de euros. 


A relação da Europa com Gadafi beira à submissão. Berlusconi, Sarkozy, Zapatero e Blair o receberam com abraços em 2007 e o próprio Zapatero o visitou em Trípoli em 2010. Até mesmo o rei Juan Carlos foi a Trípoli em janeiro de 2009 para promover as empresas espanholas. Por outro lado, a UE não hesitou em humilhar-se e desculpar-se publicamente em 27 março de 2010 através do então chanceler espanhol, Miguel Angel Moratinos, por haver proibido 188 líbios cidadãos líbios de entrarem na Europa, a raiz do conflito entre Suiça e Líbia pela detenção de um filho de Gadafi em Genebra, acusado de maltratar seus empregados domésticos. E tem mais: a UE não emitiu o menor protesto quando o Gadhafi adotou represálias econômicas, comerciais e humanas contra a Suiça, nem mesmo quando efetuou um chamamento à guerra santa contra este país, nem mesmo quando declarou publicamente seu desejo de que a Suiça fosse varrida do mapa. 


E se agora esses amigos imperialistas de Kadhafi - que vêem o mundo árabe se virar contra ele sem sua intervenção - condenam a ditadura líbia e falam em democracia, então nós vacilamos. Aplicamos as planilhas universais da luta antiimperialista, com suas teorias conspiratórias, com sua paradóxica desconfiança para com os povos, e pedimos tempo para que se dissolva a nuvem de pó levantada pelas bombas lançadas desde o ar - a fim de estar seguros de que embaixo não haja um cadáver da CIA. Isso quando não apoiamos diretamente, como o governo da Nicarágua, a um criminoso cujo mais leve contato só pode manchar para sempre qualquer um que se posicione como de esquerda ou progressista. Não é a OTAN que está bombardeando aos líbios, é Gadafi. "Misseis contra civis" é algo que não podemos aceitar. Mesmo antes de fazer perguntas, temos de condenar isso com toda energia e indignação. Mas vamos também fazer perguntas. Porque se perguntamos, as respostas que temos - por poucas que sejam - também devem mostrar de que lado devem estar agora os revolucionários do mundo. Oxalá Gadafi caia hoje, em vez de amanhã. Oxalá a América Latina compreenda que o que ocorre nesses momentos no mundo árabe tem a ver, não com planos maquiavélicos da UE e dos EEUU (que sem dúvida manobram nas sombras), mas com os processos abertos em Nossa América, a de todos, da ALBA e da dignidade, desde o princípio dos anos 90, seguindo a estrela de Cuba de 1958. A oportunidade é grande e pode ser a última para reverter definitivamente a atual relação de forças e isolar as potências imperialistas em um novo marco global. Não caiamos em armadilhas tão facilmente. Não desprezemos os árabes. Eles não são socialistas, não, mas nos últimos dois meses, de forma inesperada, colocaram a nu a hipocrisia da UE e dos EUA. Manifestaram seu desejo por uma verdadeira democracia, longe de qualquer tutela colonial, e abriram um espaço para pôr em dificuldades desde a esquerda, as tentativas de reconversão, também territorial, do capitalismo. É a América Latina da Alba, de Che e Playa Girón, cujo prestígio nessa zona estava intacto até ontem, que deve apoiar o processo antes que o relojoeiro do mundo gire a história para trás e a manipule a seu favor. Os países capitalistas têm "interesses", os socialistas só "limites". Muitos destes "interesses" estavam com Gadhafi, mas nenhum desses limites têm nada a ver com ele. É um criminoso e também um obstáculo. Por favor, companheiros revolucionários da América Latina, os camaradas revolucionários no mundo árabe estão pedindo que não apóiem Gadafi. 


fonte: http://www.kaosenlared.net/noticia/pasa-libia-mundo-arabe-america-latina 


tradução: Railton - http://taborita.blogspot.com/

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