quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Anabatistas: Nem católicos, nem protestantes

Todos que se dizem católicos ou protestantes seriam mesmo cristãos?


Por acaso os reformadores restauraram uma igreja bíblica?


Os reformadores promoveram a liberdade de religião?


Nota: Esclarecemos que quando usamos a expressão “Igreja” (com a letra “I” maiúscula) nesta obra, nos referimos a Igreja institucional, ou seja, nos referimos aos impressionantes (aos olhos humanos) corpos de cristãos professos. Até que ponto a Igreja institucional coincide com a pura e indefesa “igreja” (com a letra “i” minúscula), isso nós deixaremos nas mãos de Jesus.

O título deste livro pode parecer estranho a um leitor que tenha a opinião comum, mas, errônea , de que somente existem dois tipos de cristãos: os protestantes e os católicos. A principio, a expressão “protestante” se aplicou a um grupo de príncipes alemães dos primeiros anos do século XVI que quiseram resolver os assuntos religiosos de seus próprios territórios da maneira que fosse mais conveniente e sem nenhuma interferência de Roma ou de qualquer outra autoridade superior. Quando o imperador negou-lhes este direito, eles protestaram e insistiram em converter a igreja que estava nos seus territórios, em um departamento do governo. Devido ao fato de que a maioria destes príncipes professavam “a doutrina reformada” ( ou seja, eles estavam a favor dos ensinos de Lutero e de Calvino, diferentes dos ensinos da Igreja Católica Romana ), o nome aplicado a eles ( “protestantes”) chegou a ser aplicado geralmente ao partido e ao programa dos famosos reformadores. No entanto, muitas igrejas evangélicas na atualidade rejeitam o nome de “protestantes” e não desejam ter nenhuma relação com este nome.

De fato, muitos cristãos piedosos que viveram durante a época dos reformadores, não só rejeitaram o nome, mas, também repudiaram muitos dos ensinos dos próprios reformadores famosos! Seria oportuno então perguntar-nos: Por que eles se negaram a identificar-se com o movimento protestante ? Podemos encontrar a resposta a esta pergunta num estudo breve da história da igreja.

Para compreender por que os anabatistas se negaram a identificar-se com o protestantismo, nós devemos compreender os problemas que estavam por detrás de todo o movimento da Reforma do século XVI.

A Igreja Católica se encontrava numa condição muito decadente. Ela tolerava muitos abusos não bíblicos e inclusive os defendiam dogmaticamente por meio de seus sacerdotes e papas. Ao examinarmos de forma minuciosa o panorama da época, encontramos oito violações flagrantes da escritura que pediam a gritos para serem corrigidas:

1. O sistema das indulgências. A Igreja Católica afirmava ter o direito de eximir as pessoas do castigo de seus pecados e inclusive de libertar os seus entes queridos dos fortes castigos do “purgatório”, se eles fizessem certo “sacrifício” (que em geral era o pagamento de alguma soma de dinheiro por um certificado de indulgência emitido pela Igreja). Esta prática se fez tão corrupta que até incluía uma licença prévia para pecar em troca de uma soma de dinheiro.

2. O sistema de penitência, a confissão e as boas obras meritórias. Era ensinado aos católicos que a Igreja podia perdoar os pecados se as pessoas os confessassem a um sacerdote e logo cumprissem com as penitências que lhes fossem indicadas, tais como jejuar por um período de tempo ou dar dinheiro aos pobres.

3. A adoração dos santos, de Maria e das imagens ou relíquias. Era ensinado às pessoas comuns que elas poderiam assegurar-se da intercessão com Deus por meio da reza e da petição à Maria e aos santos, assim como, que Deus se agradava da veneração das imagens, das relíquias (recordações dos santos mortos) e das rezas pelos mortos.

4. A magia sacramental. A Igreja ensinava que as águas do batismo devidamente administradas, faziam nascer de novo as crianças (e que uma criança que morresse sem semelhante tratamento, nunca poderia ver a Deus) e que o pão e o vinho da comunhão, eram realmente o corpo e o sangue de Cristo, em lugar de ser simplesmente símbolos para recordarmos o seu sacrifício.

5. O monaquismo, o celibato e o ascetismo. A Igreja apoiava um duplo padrão de vida cristã: um padrão muito estrito para os monges, sacerdotes e monjas e outro padrão muito menos exigente para os leigos, devido a teoria de que somente uns poucos eram chamados para ser discípulos e que por meio de suas vidas piedosas, eles poderiam expiar os pecados dos membros comuns. Este sistema desenvolveu muitos abusos imorais.

6. O sistema sacerdotal, que sustentava que os bispos e papas tinham a autoridade de interpretar e anular a autoridade das escrituras. Isto trouxe como resultado o auge de uma hierarquia “infalível”, ou seja, uma máquina eclesiástica que inventava as suas próprias leis e definia como “herege” a todos os dissidentes, convertendo o sacerdote em intercessor entre Deus e o homem, tirando isto de Jesus ou tornando-o acessível somente por meio do serviço do sacerdote.

7. O uso de violência física nos assuntos religiosos. A Igreja Católica impunha a força ao torturar, encarcerar, perseguir e fazer com que o estado matasse ou exilasse aquelas pessoas cujas consciências e fé não estivavam em conformidade com Roma.

8. Uma Igreja das massas. Todo aquele que fosse batizado sendo criança, era automaticamente um membro, sem tomar em conta se era nascido de novo e se vivia ou não a vida cristã. Os membros da Igreja consistiam em toda a população do estado.

Estas oito violações flagrantes da escritura, constituíam o problema fundamental que enfrentava qualquer reforma. Qualquer reformador teria que enfrentar a cada um destes oito aspectos e restaurar a Igreja à verdade bíblica em cada área de corrupção.

Por último, mas, não para ser passado por alto, estava a posição econômica e social da Igreja na sociedade medieval: a Igreja era dona de mais de um terço de todos os bens naturais na Europa e cobrava um tributo anual obrigatório de cada pessoa, quer fosse uma pessoa de posição ou não, processando assim, para Roma, enormes somas de dinheiro de todos os países. As homenagens políticas e os impostos eram exigidos dos reis e dos príncipes sob a ameaça de excomunhão e de revolução, sendo que a Igreja mantinha as suas forças militares bem armadas e inclusive contratava exércitos para fazer cumprir as suas decisões. A Igreja dirigia “cruzadas” contra os governantes desobedientes, “os hereges” e contra os países pagãos que pareciam maduros para a conquista e o saque. A Igreja era um super estado que tinha em seu poder, tanto os grandes como os insignificantes governantes da Europa.

A medida que o nacionalismo começou a desenvolver-se, os governantes e os membros da nobreza queixavam-se mais e mais do super poder nacional e internacional e da interferência imperialista da Igreja e começaram a desejar coisas tais como: os impostos que saiam de suas terras para Roma, nomear seus próprios membros do clero(que obedeceriam diretamente a seus reis e príncipes, no lugar de obedecer a Roma) e confiscar e saquear as grandes propriedades da Igreja (para “nacionalizá-las” do mesmo modo como os negócios estrangeiros são geralmente “nacionalizados” hoje nos países latino-americanos). Uma verdadeira reforma teria que ser aquela que não somente corrigisse os abusos religiosos, mas também, que destruísse o poder de Roma (ou de qualquer outra Igreja), de interferir nos assuntos internos de qualquer nação. As condições estavam no ponto para a revolução e para a mudança. Tudo o que faltava era um líder religioso que providenciasse a “teologia” para a nacionalização e que se apossasse do entusiasmo popular. Semelhante líder logo apareceria.

Martinho Lutero começou a sua carreira na reforma, sem ao menos aperceber-sedas enormes conseqüências de seus atos. Pode-se determinar quatro períodos em sua vida e obra:

1. O Lutero jovem e liberal que se pronunciou pela liberdade e monopolizou a atenção popular pela sua posição valente a favor da liberdade de consciência contra a escravidão e a coação papal.

2. O Lutero posterior, desiludido pela onda de revolução econômica e social e pelo auge do fanatismo religioso radical; o Lutero que vacilou entre duas opiniões: se fundar uma igreja composta somente de nascidos de novo ou se simplesmente tratar de manter intacto o tecido da sociedade medieval por meio de outra Igreja das massas, a qual seria controlada por um príncipe no lugar do papa.

3. O Lutero adaptável, desalentado pela propagação do fanatismo e da revolução econômica, que adaptou as necessidade da sua Igreja às exigências políticas, sacrificando a consciência pela conveniência, ganhando a amizade dos príncipes e dos membros da nobreza e falando severamente contra os camponeses rebeldes.

4. O Lutero socialmente conservador que “conferiu ao príncipe piedoso e ao poder civil, aquela autoridade que anteriormente havia reclamado a Igreja de Roma”.[1] Toda nossa simpatia pertence ao jovem Lutero que queimou a bula papal de excomunhão e o livro da lei canônica, repudiando assim o sistema papal no seu conjunto com toda a autoridade feita pela mão do homem, o jovem Lutero que disse: “Aqui estou. Não posso fazer nada mais, já que nem é seguro e nem correto ir contra a consciência. Ajude-me Deus.” Lutero esperava morrer como um mártir. No entanto, ele ia viver e mudar, para com o tempo, sugerir que outros homens deviam ser executados por causa de suas consciências.

A vida e a obra de Lutero é similar em muitos aspectos a de outros grandes reformadores que começaram bem, clamando: “De volta à Bíblia,” mas que logo se deram conta que muito mais que a opinião religiosa estava em jogo em uma reforma radical. Um atrás do outro, gradualmente, foram comprometendo-se, inclinando-se mais e mais para os próprios interesses nacionalistas dos reis e príncipes e dos conselhos da cidade que desejavam livrar-se do jugo político e econômico da interferência papal. Examinemos cada uma das oito flagrantes violações católicas da escritura e vejamos como os reformadores protestantes trataram cada uma delas.

Todos os reformadores famosos aboliram o sistema papal das indulgências, enfrentando atrevidamente e com valentia, o primeiro grande abuso. Eles deram ênfase no ensino da Bíblia de que nenhuma Igreja tem o poder de conceder uma “indulgência” para diminuir ou perdoar o castigo pelo pecado cometido ou de ajudar de qualquer maneira aos já falecidos e condenados. No entanto, lamentavelmente, a ênfase dos reformadores protestantes em sola fide (a salvação por meio da fé somente; “só crê “), em geral foi entendido e praticado como um tipo de “indulgência protestante” para pecar. O resultado foi que um sistema de indulgências foi abolido somente para ser substituído por outro.

Um teólogo luterano moderno, Dietrich Bonhoeffer, escreveu sobre este resultado lamentável e usa as seguintes palavras, chamando a esta “indulgência protestante” para pecar, pelo nome de “graça barata”: A graça barata é a justificação do pecado sem a justificação do pecador. A graça faz tudo, dizem eles e, portanto, tudo pode ficar como estava antes.(...) O mundo continua na mesma forma antiga e nós ainda somos pecadores, “inclusive aquele que vive melhor”, como disse Lutero. Então, pois, que o cristão viva como faz o resto do mundo, que se guiem pelos padrões do mundo em cada esfera da vida e que não presuma que viverá uma vida diferente debaixo da graça, daquela que foi a sua antiga vida debaixo do pecado. Essa foi a heresia dos entusiastas anabatistas ou os de sua classe(...) A graça barata é a pregação do perdão sem requerer o arrependimento, o batismo sem a disciplina da igreja, a comunhão sem a confissão, a absolvição sem a contrição. A graça barata é a graça sem o discipulado, graça sem a cruz, graça sem Jesus Cristo, vivente e encarnado [no crente](...) Nós, os luteranos, nos ajuntamos como águias ao redor do cadáver da graça barata e ali tomamos o veneno que tem matado a vida do seguidor de Cristo.

É certo, com certeza, que pagamos a doutrina pura da graça divina, uma honra que não tem paralelos no cristianismo. Na realidade,nós temos exaltado tal doutrina até o mesmo nível de Deus. Aonde quer que fosse, a fórmula de Lutero era repetida, mas a sua verdade foi pervertida em um auto engano. Enquanto nossa Igreja mantiver a doutrina da justificação, não haverá dúvidas de que ela seja uma Igreja justificada! Isso foi o que eles disseram, pensando que devemos vindicar a nossa herança luterana ao fazer com que esta graça esteja ao alcance na forma mais barata e nos términos mais fáceis.

Ser “luterano” deve significar que deixamos 'o seguir a Cristo, aos que crêem na lei absoluta de Deus, aos calvinistas e aos anabatistas'... e tudo isto pela graça. Nos justificamos ao mundo e condenamos como hereges a aqueles que trataram de seguir a Cristo. O resultado foi que uma nação se converteu em cristã e luterana, mas, ao custo do verdadeiro discipulado. O preço ao qual estava chamado a pagar foi muito barato. A graça barata havia ganhado.[2] Estas palavras tão alarmantes não são de um adversário de Lutero, mas, é a confissão sincera de um teólogo luterano moderno que vê o colapso de semelhante protestantismo vazio na Alemanha nazista, onde a grande maioria dos membros da Igreja apostataram por seguir um ditador moderno anticristão, demonstrando que o cristianismo alemão era somente superficial.Não obstante, não passaram quatrocentos anos antes que alguém se desse conta deste tipo de cristianismo superficial. Os anabatistas, contemporâneos de Lutero, imediatamente se aperceberam da falácia desta doutrina de “só crê “. Nos escritos dos anabatistas, podemos ler numerosas expressões tais como a seguinte, escrita por Menno Simons (um antigo líder anabatista):

Eles [os reformadores] consolam as pessoas com o ensino de que Cristo pagou pelos nossos pecados, que só a fé deve ocupar a nossa atenção, que somos pobres pecadores e não podemos guardar os mandamentos de Deus. Estes e outros consolos similares fazem com que todos, de maneira egoísta, busquem a liberdade da carne por meio da nova doutrina. Eles permanecem no caminho antigo e corrupto do pecado, numa vida sem mudanças, sem nenhum temor de Deus, como se nunca em suas vidas eles tivessem escutado uma sílaba da palavra do Senhor e como se Deus não castigasse a maldade e a injustiça.[3]

Em geral, os estudiosos concordam que um dos frutos da Reforma foi uma decadência inegável na moralidade de toda Europa onde quer que a doutrina de “ só crê “ tenha se difundido entre as pessoas comuns. Menno Simons observou esta total deterioração moral, com tristeza e indignação: No entanto, por meio da pregação de seu evangelho comprometedor, semelhante liberdade desordenada e imprudente é tão evidente em toda Alemanha que não se pode admoestá-los pela sua franca falta de pudor, intemperança, blasfêmias e juramentos, luxúria e palavras grosseiras sem ser obrigado a escutar que és um separatista, vagabundo, fanático, uma pessoa que crê que pode salvar-se por suas próprias boas obras, anabatista e outros términos de reprovação e insulto.[4]

Ao analisar o segundo abuso evidente do catolicismo, uma vez mais nos regozijamos ao ver que a princípio os reformadores famosos rejeitavam completamente o sistema não bíblico da penitência, a confissão e as obras meritórias como uma expiação pelo pecado. No entanto, logo também se faz evidente, a medida que estudamos seus escritos e as práticas de seus seguidores, e ainda que eles aboliram as boas obras como meritórias ou capazes de expiar o pecado, nem sempre deixaram clara a verdade das boas obras como resultado da salvação e de permanecer em Cristo. Lutero substituiu a penitência por um conceito pessimista quase doentio de pecado contínuo e arrependimento contínuo. Os anabatistas também rejeitaram este conceito ao considerá-lo uma doutrina imoral, e ainda que ensinassem claramente a necessidade contínua do arrependimento e da humildade diante de Deus, eles não hesitaram em supor que era possível viver a vida cristã e que também era possível para o crente nascido de novo obedecer aos mandamentos de Deus e ser agradável diante dos olhos de Deus por meio de uma obediência como a de uma criança (veja 1ª João 3:22).

Um de seus versículos favoritos era 1ª Pedro 3:21, o qual fala do batismo como “a indagação de uma boa consciência para com Deus”. Um de seus tratados mais belos, Dois tipos de obediência, enfatizava o fato de que na realidade existe uma obediência legalista que é servil, mas também existe a obediência filial de um verdadeiro filho de Deus nascido de novo, para aquele que guardasse os mandamentos de Deus, que não eram pesados, mas sim, uma expressão de amor para o Pai. (João 15:10-11; 1ª João 5:3). No lugar do conceito protestante do pecado contínuo e do arrependimento contínuo, os anabatistas enfatizavam o fato do poder de Deus que guarda, e a necessidade do discípulo nascido de novo de entregar-se à Deus e de sempre estar disposto a confessar e afastar-se do pecado quando falhar. A medida que vemos estas coisas na história da igreja, lembramos uma vez mais que destruir ou abolir uma falsa doutrina não é o suficiente; também temos que assegurarmos a restauração da verdadeira doutrina bíblica. Ao evitar tanto o legalismo como o perfeccionismo radical e altivo, os anabatistas insistiram na obediência como a de uma criança nas vidas dos discípulos nascidos de novo e não adotaram a opinião doentemente pessimista que sustentavam muitos dos reformadores.

Se uma só palavra pudesse resumir a devoção e a prática dos primeiros anabatistas, nós deveríamos escolher a palavra “discipulado”. Seu conceito de discipulado incluía uma resignação agradável e prazerosa da alma para Deus em perfeito descanso e tranqüilidade de coração, mesmo quando o mundo estivesse proferindo abusos, insultos, perseguições e ameaças. Esta resignação é completamente diferente da resignação amarga de desespero que se deriva de uma entrega imprudente à doutrina do “só crê “, omitindo-se do pecado que caracterizava uma grande parte da devoção e prática protestante. O discipulado para os anabatistas incluía esse prazer profundo e agradável da alma que descansa em Cristo, submetido com prazer e em paz como estando em um mar profundo de calma, quando existia por todas aspartes, tribulação, sofrimento, rejeição e calúnia. A isto se referiu nosso Senhor em João 16:22 e 33 : “E a vossa alegria ninguém vo-la tirará,” e, “Para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.”

É a experiência preciosa de permanecer no Cristo e Cristo permanecer no crente, um vinculo de amor imperturbável pelas circunstâncias externas. Ao considerar a terceira área dos abusos católicos, o sistema de adoração de santos, as imagens e de Maria, nos alegramos ao ver que os reformadores famosos rejeitaram todos estes abusos e inclusive destruíram , com grande zelo, as imagens, os vitrais coloridos de vidro, as pinturas, os altares e as estátuas. Zwinglio, Knox e Calvino foram especialmente zelosos com este tipo de iconoclasia. Eles expulsaram das igrejas todas as “ajudas estéticas para adorar”; lançaram fora os instrumentos musicais, os coros e os ornamentos. No entanto, Lutero não foi tão longe, mas, reteve muitas coisas da cerimônia da missa; as velas, os órgãos e muitos outros artigos da adoração católica.

Uma mudança bastante circunscrita, limitada, teve lugar nesta área, ainda que posteriormente John Wesley tenha colocado em juízo a reforma incompleta na Inglaterra, acusando o mundanismo e o nacionalismo dos protestantes da seguinte forma : Por acaso, vocês estão mais livres da idolatria do que os papistas ? Na realidade, pode ser que a idolatria de vocês se manifeste de forma diferente. Não obstante, quão pouco isto ajuda! Eles colocam seus ídolos em suas igrejas; vocês colocam os seus ídolos em seus corações. Os ídolos deles estão somente cobertos com ouro e prata, mas os seus, são de ouro maciço. Eles adoram o retrato da rainha do céu e vocês adoraram o retrato da rainha ou do rei da Inglaterra.

Por outro lado, eles idolatram a um homem ou a uma mulher falecidos, enquanto que o vosso ídolo ainda está vivo. Oh, quão pequena é a diferença na presença de Deus! Quão pequena preeminência tem o adorador de dinheiro em Londres sobre o adorador de imagens em Roma, ou aquele que idolatra um pecador vivo sobre aquele que ora a um santo falecido.[5]

Enquanto Lutero e muitos dos protestantes seguiram o princípio de rejeitar somente aquelas coisas que especificamente eram contrárias à escritura, os anabatistas, em geral, seguiram o princípio de rejeitar tudo o que não se mandava especificamente nas escrituras. Este princípio não quer dizer que eles acreditavam que a igreja não tinha o direito de fazer aplicações bíblicas, mas, simplesmente que a igreja não tem o direito de introduzir práticas alheias e desnecessárias que não tenham fundamento bíblico. É lamentável ver o quão facilmente as massas denominadas protestantes, mudaram da adoração dos santos para a adoração de heróis, príncipes e a outros heróis nacionais. Isto também é idolatria, como Wesley destaca na citação anterior.

Não podemos subestimar a influência massificada do nacionalismo carnal na formação da Reforma protestante num país após outro. Num país como a Inglaterra, onde o reformador foi o vil e imoral Henrique VIII, adúltero, bêbado e tirano, a Reforma tomou as dimensões de um simples saque nacionalista das riquezas e propriedades da Igreja Católica. Voltando ao quarto grande erro católico, ou seja, ao que se refere a magia sacramental, o ensino de que Deus deu sua graça regeneradora somente nas águas batismais administradas pelo sacerdote (em geral às crianças) e que Cristo realmente estava presente no pão e no vinho da ceia do Senhor, nos desalenta saber que nenhum dos reformadores famosos repudiou o batismo de crianças nem a regeneração batismal. Quase todos eles em certo momento de sua carreira, questionaram a prática, mas, um após o outro, decidiu que seria necessário reter esta doutrina e prática não bíblica.

A explicação que davam para isto é que se o batismo de crianças fosse rejeitado e somente os crentes fossem admitidos ao batismo a partir da sua confissão voluntária de fé, então, isto resultaria numa igreja muito pequena. Se os membros fossem puramente voluntários, então, poucas pessoas se uniriam à igreja; haveria somente uns poucos cristãos e a sociedade despencaria. Isto foi o que os reformadores deveriam ter pensado. Eles optaram por uma igreja das massas, na qual todos os nascidos no país eram batizados e automaticamente convertidos em “cristãos”. Sabendo que as crianças não podem ter fé, então, esta era uma decisão muito pobre segundo a escritura, mas era uma decisão tomada por conveniência política e social.

Do mesmo modo, quanto aos emblemas da comunhão, somente uma minoria dos reformadores optou contra a idéia de que Cristo estivesse fisicamente presente e Lutero insistiu fervorosamente que os emblemas eram realmente Cristo. Assim, a Igreja consistia daqueles que estavam batizados como crianças, dos que estavam de acordo com a teologia dos reformadores (“só crê”) e dos que comiam e bebiam a “Cristo” ao celebrar a santa ceia. Os anabatistas rejeitaram completamente qualquer batismo que não fosse o batismo sobre a confissão de fé e se negaram a considerar os emblemas da santa ceia como algo a mais do que apenas emblemas. De modo que os anabatistas repudiavam a magia cerimonial, enquanto que os protestantes estavam confundidos e divididos no assunto. Muitos deles acreditavam que Deus realmente concedia a graça somente por meio do sacramento e mediante a pregação correta da doutrina do “só crê”.

Em quinto lugar, devemos considerar se os reformadores reformaram ou não as instituições católicas romanas do monaquismo, do celibato e do ascetismo. Ainda que atualmente certos setores do protestantismo tem revivido o monaquismo e o celibato como vocações especiais para uma minoria especial, de modo geral os reformadores simplesmente deixaram de dar ênfase num padrão estrito para os eleitos junto à um padrão pouco exigente para as massas e o substituíram por um padrão pouco exigente para todos, conduzindo assim a uma deterioração moral generalizada que já tínhamos notado nas palavras de Menno Simons citadas anteriormente.

Na realidade, não ajudou muito a causa de Cristo o fato de destruir o duplo padrão para em seguida, substituí-lo por algo que não era mais do que uma rejeição geral das leis absolutas de Deus. Os anabatistas rejeitaram tanto o duplo padrão do catolicismo como o mundanismo contraditório do protestantismo e restauraram um padrão completamente bíblico do discipulado para todos os filhos de Deus nascidos de novo. Onde os homens relaxaram os altos e sagrados padrões do Novo Testamento, ensinando que os mesmo não se aplicam a todos os membros da igreja, então, se perde inevitavelmente a disciplina e quando se perde a disciplina, também se perde o discipulado, o senhorio de Cristo e finalmente a própria salvação.

Ao considerar o sexto grande abuso católico, ou seja, aquele referente ao clericalismo e a autoridade dos papas, dos bispos e dos conselhos, somos encorajados pelo clamor dos reformadores de, “de volta à Bíblia”. No entanto, ao examinar os fatos, sua verdadeira piedade e prática, nos desanimamos ao descobrir novamente uma traição da causa da verdadeira reforma. Ainda que uma das afirmações dos reformadores era o conceito do sacerdócio de todos os crentes, o certo é que eles definitivamente proibiram que alguém pregasse e testemunhasse se não fosse ordenado pelo máquina política e eclesiástica oficial. Algumas vezes Lutero atacou os pregadores “não autorizados” dos anabatistas, a quem ele com desprezo chamou de “ pregadores dos valados”. Geralmente se fala que os reformadores introduziram a liberdade religiosa, mas os fatos demonstram que isto estava longe da verdade. Eles perseguiam a todos os que não estivessem de acordo com eles. Lutero, inclusive, insultava a outros reformadores que não estavam de acordo com ele. O historiador protestante, Hallam, reflete o conceito dos estudiosos imparciais quando escreve de Lutero:

Um dogmatismo desenfreado, baseado em uma confiança praticamente absoluta na infalibilidade do seu próprio conceito, caracteriza os seus escritos. Não semostra indulgência alguma. Não há lugar para incerteza, e qualquer coisa que se oponha a suas decisões (os padres da igreja, os estudantes e filósofos, os cônegos e os conselhos) é varrida numa série de declarações impetuosas. E tendo em conta que todo o conteúdo da escritura, segundo Lutero, é de fácil compreensão podendo entendê-lo com prudência, então qualquer desvio da sua doutrina, incorre no anátema da perdição. Numerosas passagens dos escritos de Lutero, mais do que insinuam que os seguidores de Zwinglio, assim como toda a Igreja de Roma e os anabatistas, foram excluídos da salvação porque não acreditavam na doutrina correta.[6] Outro estudioso, John L. Stoddard, foi forçado a chegar na mesma conclusão devido aos preocupantes fatos na vida e nos escritos de Lutero.

É muito comum dizer que Lutero inaugurou o direito à livre investigação. Nada está mais longe da verdade. Ele falou à respeito disso como uma razão para abandonar as tradições da Igreja, mas fez todo o possível para trazer uma completa sujeição à irrefutável Bíblia da forma como ele a interpretou.De modo que ele instituiu um Papa na página escrita, no lugar de um Papa de carne e sangue. Além disso, visto que ele constituiu a si mesmo como o intérprete autoritário da Bíblia, ele praticamente proclamou-se infalível. Um dos contemporâneos de Lutero, Sebastian Frank, escreveu com um tom triste: “Até mesmo debaixo do domínio papal, tinha-se mais liberdade do que agora”.[7] Esta intolerância tirânica tampouco limitou-se a Lutero.
Todos os reformadores famosos a exibiram, desde João Calvino, que fez queimar na fogueira a Servet (seu adversário teológico) até Ulrico Zwinglio, que obrigou o seu antigo amigo Hubmeyer, a renunciar a sua doutrina e a sua firmeza de consciência debaixo de tortura e ameaça de morte. Distante de restaurar o sacerdócio de todos os crentes e instituir uma nova liberdade religiosa, todos os reformadores famosos trataram de impor as suas próprias interpretações por meio da força e por intimidar os seus adversários mediante ameaças para que guardassem silêncio. Esta situação desafortunada trouxe como resultado, grandes ondas de perseguição e guerras civis devastadoras.

Finalmente, depois de tanta confusão e derramamento de sangue, se fez um esforço para conseguir certa paz por meio de um acordo. Adotou-se o princípio cujus regio, ejus religio (cada governante pode estabelecer sua própria religião), segundo a qual, a religião do governante converter-se-ia na religião oficial do seu território. “A liberdade de consciência”, diz a Enciclopédia Britânica, “ficou assim estabelecida somente para os príncipes e seu poder tornou-se supremo tanto na religião como nos assuntos seculares”.[8]

Este foi um princípio pouco animador que simplesmente deu ao crescente nacionalismo a sua carta de supremacia e assentou as bases para aquela espécie de estadismo totalitário e absoluto, que inclusive, na atualidade está dando frutos prejudiciais. Debaixo dos católicos, os governantes tremiam diante da possibilidade da crítica e da interferência da Igreja, mas, a Reforma transformou os governantes nos chefes das Igrejas em suas próprias terras, e toda crítica foi silenciada. No entanto, os anabatistas não só acreditaram no sacerdócio de todos os crentes, mas também o praticaram com coragem, e se presumia que cada membro testemunhasse do amor e do senhorio de Cristo e contra o pecado. Por conseguinte, eles foram acusados de traição, atividade subversiva e heresia. Foram quase aniquilados em perseguições sangrentas ordenadas pelos governantes que patrocinavam uma Igreja submissa ao estado...mas que não tolerava uma corajosa igreja dos profetas de Deus. Eles tiveram o mesmo destino que teve João, o Batista, antes deles e pela mesma razão.

O sétimo grande erro católico era o sistema do uso do poder, da violência e da imposição contra os que não estavam de acordo com Roma em termos religiosos. Os reformadores famosos não fizeram nenhum esforço para eliminar este terrível princípio anticristão. Mas, ao contrário, eles o exploravam ao máximo. Um historiador batista contemporâneo narrou os fatos de maneira resumida : Todos os reformadores proeminentes, que tão heroicamente libertaram a igreja da Igreja Católica Romana e do Papa, impuseram às pessoas uma Igreja oficial de estado aonde quer que eles fossem, e a verdadeira igreja local soberana do Novo Testamento que estava a favor de uma liberdade religiosa absoluta, foi perseguida por estas Igrejas de estado dos reformadores. Isto se cumpriu em Lutero que impôs uma Igreja oficial de estado na Alemanha; Zwinglio (...)na Suíça; João Knox (...) na Escócia; Henrique VIII (...) na Inglaterra; [ e João Calvino em Genebra, cujo consistório, não foi mais que uma inquisição atrevida ]. Todos eles se transformaram em perseguidores como foi Roma antes deles![9]

Não se pode negar que isto é uma realidade histórica, mesmo que muitos do que prestam culto aos heróis Protestantes, de uma forma ou de outra, tem tratado de justificar aos reformadores das Igrejas oficiais do estado, livrando-os da culpa destas perseguições e do derramamento de sangue. Uma das desculpas mais comuns é que foi uma época difícil e brutal e que todos agiram da mesma maneira. Em 1950 foi publicado na Suíça um livro com o título Christianity and Fear (“O Cristianismo e o temor”) no qual o autor, Óscar Pfister, analisa com detalhes os crimes dos reformadores. Com relação a Calvino, ele escreve a seguinte avaliação que se aplica a todos eles:

Um estudo do período [da Reforma] revela que muitos eruditos da época, homens com seguidores que em muitos casos ascenderam a muitos milhares, se opuseram zelosamente as perseguições dos “hereges” e, em nome do evangelho, exigiram um tratamento piedoso. [Proeminentes entre eles estavam] (...) os anabatistas. Calvino conheceu a maioria destes homens eloqüentes, inspirados pelo amor, mas, a oposição deles quanto a perseguição dos hereges, não causou a menor impressão nele. Portanto, deve-se por um fim na antiga mentira de que as crueldades de Calvino se justificam devido ao ânimo da época. E nos assombramos com a grande falta de lógica do lógico [Calvino], cuja indignação cresceu contra a perseguição dos protestantes nos países católicos e que, no entanto, se mostrou tão desapiedado com os supostos hereges.[10]

Os anabatistas protestaram contra esta atividade anticristã dos reformadores famosos, mas de nada serviu. Menno Simons escreveu sobre esta sangrenta crueldade por meio da qual, milhares de anabatistas foram executados pelas Igrejas protestantes do estado. Observem, queridos irmãos, o quanto o mundo inteiro se afastou de Deus e de sua palavra (...) quão brutalmente eles perseguem, difamam e destroem a verdade da salvação eterna e o evangelho puro e sem mancha de nosso Senhor Jesus Cristo, assim como a vida devota e piedosa dos santos. E isto, não fazem somente os papistas e os turcos, mas também em grande parte aqueles que presumiam da palavra de Deus, ainda que em seus primeiros escritos eles tivessem muito o que dizer com relação à fé, que é o dom de Deus e pode surgir nos corações dos homens somente por meio da palavra, sendo uma aceitação de coração e da vontade.

Mas este princípio durante alguns anos tem sido novamente desprezado pelos teólogos e, em minha opinião, tem sido apagado de seus livros. Já que os senhores e os príncipes, as cidades e os países identificam a si mesmos com sua doutrina carnal, eles tem publicado muito a opinião contrária, a qual é muito evidente em seus próprios escritos. E através de suas publicações provocadoras e sermões, eles entregam nas mãos do carrasco a muitos corações piedosos e temerosos à Deus que os contradizem, os repreendem e os admoestam com a clara palavra de Deus e os fazem ver os verdadeiros fundamentos da santa palavra, ou seja, a poderosa fé que opera por meio do amor, a nova vida penitente, a obediência à Deus e a Cristo e as verdadeiras ordenanças evangélicas do batismo, a ceia do Senhor e a disciplina, da maneira como o próprio Jesus Cristo as instituiu e as mandou e seus santos apóstolos as ensinaram e praticaram.

Sim, todos os que por amor insistem nisto, devem ser acusados de anabatistas, agitadores, sediciosos e hereges. Todos os piedosos podem esperar isto da parte deles. No entanto, todos e cada um deles, sejam senhores, príncipes, pregadores, teólogos ou gente comum, sejam papistas, luteranos ou seguidores de Zwinglio, desejam ser chamados de congregação cristã, a santa igreja.[11] Poderíamos destacar duas coisas em particular na passagem citada anteriormente : Em primeiro lugar, Menno afirma que os anabatistas repreenderam e profetizaram contra os pecados de seus perseguidores. Recordo de ter lido sobre o julgamento de um anabatista que compareceu na qualidade de acusado diante de seus juízes e de vários pregadores da Igreja oficial doestado, um dos quais gritou: “Dieser Hermann hat sich gegeben zu einer verdammten Sekte, die uns verdammt! (“Este homem dedicou-se a uma seita maldita que nos maldiz.”)

Sem dúvida, a consciência dos reformadores se declararam culpadas diante do testemunho corajoso dos anabatistas. Em segundo lugar, devemos destacar que Menno observa uma mudança nos próprios reformadores : se no princípio eles haviam sido valentes em suas convicções de que a fé deveria ser voluntária, logo mudaram quando se deram conta que eles necessitavam do apoio dos governantes se quisessem que sua “reforma” fosse um “êxito”.

Esta observação não foi feita somente por Menno Simons. Um estudiosos da história da Reforma, Harold J. Grimm, da Universidade de Indiana, ao escrever em 1954, disse o seguinte :

Com razão, o ato valente de Lutero em Worms tem sido considerado como um passo importante na história do desenvolvimento da liberdade religiosa. Ele sustentou firmemente que as autoridades, tanto da Igreja como do Império, tinham a obrigação de convencer a um indivíduo quanto aos seus erros antes de condená-lo. Por outro lado, este passo ainda estava muito longe de um individualismo religiosos completo e da negação de autoridade. Esta posição apoiada pela história posterior do reformador, mostra que ele acreditava firmemente que por meio de sua experiência religiosa pessoal e do estudo, que havia chegado a verdade religiosa absoluta, a qual não permitia nenhuma interpretação individual. Era seu dever mostrar às autoridades esta verdade, e eles tinham a obrigação de defende-la. Se o papado não o fizesse, ele se voltaria ao governo. Se o imperador se negasse a fazê-lo, então, ele se voltaria aos senhores regionais.[12]

Lutero teve êxito nos seus planos, talvez, em grande parte porque os senhores regionais estavam buscando algum modo de evitar a interferência da Igreja Católica e receberam com aprovação esta oportunidade de abraçar a causa da “ liberdade “, ao apoiar o reformador. No entanto, quando os camponeses puseram em prática esta “ liberdade “ para si mesmos ao destituir os senhores regionais tirânicos e obter a independência , Lutero se enfureceu contra eles : Porque se um homem é um rebelde manifesto, cada homem será seu juiz e seu carrasco, assim como quando um fogo começa, o primeiro a apagá-lo será o melhor (...) Portanto, todos os que puderem devem golpear, assassinar e apunhalar, secreta ou abertamente, lembrando que nada pode ser mais prejudicial, danoso ou diabólico do que um rebelde.

É a mesma situação quando alguém tem que matar um cão raivoso. Se não o golpear, ele golpeará à ti e a todos os demais. (...) Que apunhale, golpeie e assassine quem quer que puder. Se morreres nesta intenção, será bom para você! Nunca poderá ter uma morte mais bendita do que esta, já que morrerá em obediência à palavra divina e ao mandamento em Romanos 13, servindo em amor ao teu próximo a quem está resgatando das garras do inferno e do diabo. Um rebelde não é digno de ser respondido com argumentos, pois ele não os aceitam. A resposta para os lábios deles deverá ser os punhos que arrancam o suor de seus narizes. Os camponeses não escutarão. Eles não permitirão que ninguém lhes diga nada. Seus ouvidos devem ser abertos com balas, até que suas cabeças se desprendam de seus ombros. (...) Com os camponeses obstinados, insensíveis e cegos, que ninguém tenha misericórdia, mas que todos os que puderem, lhes golpeiem, apunhalem e matem como se estivesse entre os cães raivosos, (...) para que a paz e a segurança possam ser mantidas. (...) E não resta dúvida que estas são obras preciosas de misericórdia, amor e bondade, já que na terra não há nada pior do que o distúrbio, a insegurança, a opressão, a violência e a injustiça.[13]

Os escritos de Lutero sobre a Guerra dos Camponeses estão cheios de expressões semelhantes às anteriores. Quando nos seus últimos anos ele foi criticado por semelhante linguagem violenta e por incitar os senhores regionais à uma matança desapiedada (eles mataram mais de 100.000 camponeses), Lutero respondeu com um tom desafiante: Fui eu, Martinho Lutero, quem matou a todos os camponeses na insurreição, já que fui eu quem ordenou que os matassem. Todo o seu sangue está sobre os meus ombros. Mas, eu o lancei sobre nosso Senhor Deus que me mandou falar desta maneira.[14]

Mais lamentável ainda foi que Lutero reagiu com a mesma violência contra os anabatistas que trataram de aplicar o princípio da “ liberdade “ para si mesmos. Mesmo sabendo que havia tanto anabatistas não resistentes e inofensivos, como também grupos radicais de revolucionários sociais, mas ele os condenou, a todos por igual, favorecendo uma política de extermínio. Também poderíamos citar algumas de suas frases violentas contra os judeus. Lutero, seguramente defendendo com os senhores regionais, a alta corrente do nacionalismo alemão, escreveu vários tratados anti-semitas horríveis, advogando o saque, a matança e o exílio dos judeus, um projeto nunca materializado até Hitler. Foi fundamentalmente o apoio do poder dos príncipes e governantes, o que assegurou o “êxito “ do movimento de Lutero, como se reconhece francamente na Enciclopédia Britânica, a qual diz:

Se não houvesse o interesse dos príncipes alemães em impor seus princípios,ele nunca teria sido mais do que o líder de uma seita mística insignificante. Além disso, ele não era estadista. Ele foi perigosamente impetuoso em seu temperamento.[15]

Os príncipes alemães tinham um interesse consideravelmente egoísta em uma reforma que lhes permitisse tirar de cima a interferência da Igreja para deixar de pagar dízimos e impostos à Roma e para confiscar e saquear as ricas propriedade eclesiásticas, granjas e monastérios da Igreja Católica.

Em todos estes exemplos da vida e escritos de Lutero, podemos ver um padrão que se repetiu na carreira de cada um dos reformadores. Na verdade, nem todos eles foram tão cruéis e francos como Lutero, mas todos seguiram uma política católica romana em que se repetiu e não foi repudiada, a união ímpia da Igreja com o estado. Um bispo metodista e estudioso da era moderna, R. W. Weaver, resume bem nossas conclusões alarmantes sobre a relação entre a Igreja e o estado, assim como a relação entre a Igreja e o nacionalismo como resultado da Reforma.

A mentalidade protestante é a precursora da mentalidade nacionalista e é em grande medida a criadora do padrão de pensamento dominante da era que segue,ou seja, o direito divino dos reis. Lutero deu ao poder secular uma autoridade e dignidade quase, se não completamente, divina : “A mão que empunha a espada não é uma mão humana, mas a mão de Deus. É Deus, não o homem, quem enforca as pessoas e as tortura. É Deus quem faz a guerra. “Não exageramos quando falamos que, ainda que a influência de Lutero no campo da religião foi poderosa, a sua doutrina sobre o estado foi mais poderosa nas terras protestantes do que suas doutrinas da graça, e iniciou uma nova etapa do antigo problema da relação do governo organizado com a religião organizada.[16]

Antes da Reforma, os reis e príncipes estavam sujeitos ao controle da Igreja, mas os reformadores introduziram um novo raciocínio sobre o braço político da sociedade. Novamente algumas palavras tomadas dos escritos de Lutero bastarão para mostrar a nova atitude que rapidamente converteu o estado no grande poder centralizador e converteu a Igreja em nada mais do que outro braço do governo, de modo que rapidamente cada pequeno principado alemão tinha sua Igreja oficial, bem como, tinha sua agência de correios e sua ópera de estado.

Como cristão, o homem tem que sofrer tudo e não resistir à ninguém. Como membro do estado, o mesmo homem tem que roubar, assassinar e lutar com alegria, enquanto viver. (...) Realmente um príncipe pode ser cristão, mas não deve governar como cristão. (...) Ninguém deve pensar que o mundo é governado sem sangue. A espada mundana tem que ser sanguinária. (...) De onde os príncipes obtiveram o seu poder, não nos diz respeito. É a vontade de Deus, sem ter em conta se eles roubaram o seu poder ou o usurparam por meio de roubo. (...) Se alguém tem o poder, ele o obteve da parte de Deus. Portanto ele também tem o direito. (...) Inclusive se as autoridades agirem injustamente, Deus manda que se lhes obedeça sem engano (...) já que sofrer injustamente não prejudica a alma do homem; isto lhe será proveitoso.(...) Inclusive se as autoridades são perversas e injustas, ninguém tem o direito de opor-se à elas ou de amotinar-se contra elas.[17]

Que um cristão tenha que obedecer e sofrer inclusive debaixo de um governante injusto, é uma verdade bíblica, mas ele não deve nunca participar na administração da justiça ou da injustiça, e foi precisamente isto, o que Lutero nunca viu. Até a sua morte, ele acreditou que o cristão tinha uma dupla personalidade. O que ele fazia como cristão, o fazia em sua vida particular ( sim, ele inclusive devia ser não resistente nesta área!); no entanto, quando o estado o convocasse para fazer algo, ele deveria obedecer indiscutivelmente, como um cidadão, um homem público. Desobedecer, mesmo ao estado injusto, era desobedecer a Deus. Em situação semelhante, no caso de lealdades em conflito, o dever do cristão deveria sempre render-se ao dever do cidadão!

Lutero também deixou bem claro que, se ele fosse um ministro cristão que vivesse num estado maometano, ele obedeceria ao Sultão e iria à guerra matar cristãos. Mas a Bíblia não ensina em parte alguma semelhante dualismo extravagante. Cada homem tem somente uma alma e somos responsáveis diante de Deus pela obras feitas no corpo. Não importa se pecamos ou não por ordem do estado. Isto continua sendo pecado. Os apóstolos disseram: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens”(Atos 5:29). Os apóstolos foram acusados (veja Atos 17:7) de atividade subversiva e traidora porque eles ensinavam que havia um Poder Supremo diante do qual somos responsáveis, um Poder superior ao estado: “E todos estes procedem contra os decretos de César, dizendo que há outro rei, Jesus”. Amém!

A Reforma protestante fracassou por não reformar o erro católico romano da relação entre a Igreja e o estado. E ao fracassar nisto, ela fracassou num dos problemas mais cruciais que se lhe apresentou. Ao considerar o oitavo abuso católico romano que enfrentava qualquer reformador, devemos perguntar-nos: Por acaso a Reforma protestante recuperou o ensino do Novo Testamento sobre a igreja? Aboliram eles o conceito católico romano de uma Igreja das massas, composta de membros em virtude da nacionalidade e da geografia, por meio dos “batismo de crianças” antes que da fé que salva? Novamente a resposta tem que ser não. Eles não restauraram sua Igreja ao padrão do Novo Testamento de uma igreja composta somente de crentes, dos nascidos de novo, de discípulos lavados no sangue de Cristo.

Todos e cada um dos reformadores retiveram e defenderam uma Igreja não bíblica, fundada no batismo de crianças e que incluía como membros a todos os habitantes de um país “cristão”. Neste fracasso especificamente, esta traição adicional dos objetivos de uma verdadeira reforma, como em todos os outros fracassos, os reformadores famosos não podem ser justificados por meio da desculpa de que “de todas as formas, eles fizeram o melhor que puderam”. A tragédia que resultou é que eles consideraram e rejeitaram, fria e deliberadamente, o padrão bíblico de uma igreja de crentes. Eles sabiam que outros escolheram seguir o padrão bíblico, e não só rejeitaram a convicção deles, mas também, trataram de exterminar a estes verdadeiros cristãos, por meio do fogo e da espada. Aqueles outros que se mantiveram fiéis ao seu Senhor e ao seu padrão para a igreja foram os anabatistas.

Vários estudiosos imparciais da história da época da Reforma, chegaram na mesma conclusão : Os anabatistas realizaram o verdadeiro trabalho que enfrentava a Reforma, mas os protestantes fracassaram. Roland H. Bainton tenta atribuir uma razão à isto:

O ideal da restituição ou da restauração era comum na era da Reforma e todos os grupos desejavam restaurar algo. A diferença estava somente em como e quão longe retroceder.[18] Lutero desejava restaurar a Igreja do princípio da Idade Média; para ele a grande corrupção estava no auge do poder temporário do papado no século VIII. Os anabatistas retrocederam muito mais do que qualquer outro grupo e se voltaram exclusivamente ao Novo Testamento. Inclusive dentro do Novo Testamento eles tiveram a tendência de ignorar a Paulo e imitar somente a Jesus. É por isso que [o seu] ideal de Restauração tende a coincidir com o ideal da imitação de Cristo.[19]

Isto não quer dizer que eles rejeitaram a Paulo, mas que eles simplesmente tiveram por Senhor a Cristo que vivia neles, em lugar de tirar a doutrina de Paulo da justificação fora de seu contexto do Novo Testamento e inventar (como os protestantes) uma doutrina não bíblica da salvação da graça barata baseada na frase sola fide (“só crê”). O próprio Paulo disse: “Cristo em vós, esperança da glória” (Colossenses 1:27), isto é, Cristo não só é contado por nossa justiça, mas que a sua justiça também se cumpre em nós (veja Romanos 8:4; 13:10).

Além disso, Paulo disse: “Sede meus imitadores, como também eu de Cristo” (1ª Coríntios 11:1). Outro grande estudioso, Hoffmann, disse: As raízes dos reformadores estão fundamentalmente em São Paulo, enquanto que os batistas preferiram o ensino de Jesus, com seus imperativos éticos e suas esperanças escatológicas (...) Neste aspecto realmente os batistas se aproximaram mais ao cristianismo bíblico do que os reformadores, ainda que os reformadores também converteram o cristianismo bíblico em seu objetivo.[20] Hall, ao comparar o anabatismo e o protestantismo em sua History of Ethics Within Organized Christianity (“A história da ética dentro do cristianismo organizado”), faz o seguinte comentário sagaz:

Tudo o que encontramos entre os anabatistas, também está presente no Novo Testamento.(...) Se adotar o Novo Testamento literalmente é protestantismo, então, diferente de Lutero, Calvino e Zwinglio, os anabatistas eram os verdadeiros protestantes. Eles basearam os seus ensinos na consideração de Lucas quanto a pobreza ou no comunismo do livro de Atos ou na liberdade de espírito no sentido paulino.(...) Eles adotaram o Sermão do Monte literalmente e rejeitaram com mais ou menos exatidão, todas as coisas não ordenadas pela Bíblia. Em geral, eles se deram conta, não como os reformadores, que o cristianismo primitivo se opunha inerentemente à ordem social existente e não cristã. Certamente, eles não encontraram nada no Novo Testamento que justificasse a magia sacramental, porque ela não estava ali. Tudo isto não é novo na história da igreja.

Desde a época de Joviano e Cláudio de Turim, desde o s dias do cristianismo britânico primitivo até os valdenses e os lolardos, o Novo Testamento sempre produziu homens que tomavam a sério e colocavam à prova um ponto ou outro do cristianismo dogmático tradicional, comparando-o com o Novo Testamento. E como o cristianismo dogmático não se fundamenta no Novo Testamento, ele mesmo nunca passou pela prova.(...) A pequena nobreza e os líderes reformadores se aproveitaram da revolta de Münster e das guerras camponesas para cumprir seus próprios propósitos de restabelecer o seu poder sobre a base das Igrejas provinciais e nacionais como herdeiras do imperialismo rejeitado. A marcada insensibilidade de Zwinglio ao torturar o seu amigo Baltasar Hubmeyer e obrigá-lo, mediante ameaça de morte à uma confissão falsa e humilhante, concorda com a atitude de Calvino para com Servet ou a atitude de Lutero para com Carlstadt. Não há nada nos ensinos dos anabatistas que não se possa mostrar, por ter obtido em algum momento o apoio dos reformadores ortodoxos.

O misticismo se misturou com o ensino de Lutero e o legalismo e a rebelião sangrenta, com o ensino de Calvino e Knox. Zwinglio estava indeciso por causa do batismo de crianças e mutilou até o fim ao sacramento mágico da Ceia do Senhor. Era uma questão de poder, ordem e submissão aos novos herdeiros do imperialismo católico e não uma questão de “pureza evangélica” ou “correção dogmática” que separou os reformadores de seus irmãos perseguidos e desprezados.(...) É verdade que os reformadores ortodoxos também professavam adotar a letra das escrituras como seu guia e além disso, afirmavam ter a direção do Espírito Santo. Mas, eles não adotaram tão seriamente como os anabatistas, nem tampouco se permitiram ser levados pela escritura demasiadamente longe das interpretações e ideais dos príncipes protestantes na Alemanha ou da burguesia militar na Suíça. De fato, todos eles sempre foram, sem dúvida, inconscientemente, a máxima expressão da nascente, sensata e bem equilibrada classe média.[21]

Outro estudioso contemporâneo, Joseph M. Dawson, ao escrever sobre as origens da liberdade religiosa que se desfruta hoje por todos nos Estados Unidos da América, se dá conta que ela não procedeu dos reformadores intolerantes, mas dos anabatistas. Não foi o protestantismo como tal, mas foram os pequenos grupos não conformistas independentes, que aceitaram as maiores implicações de Lutero e Calvino, que conseguiram uma total liberdade religiosa e a separação da igreja e do estado.[22]

Nem os “Pilgrim Fathers”, nem os puritanos trouxeram a liberdade religiosa à América do norte. Ao contrário, eles açoitaram e queimaram na fogueira os Quacres, enganaram aos índios, etc. Foram os batistas, diretamente influenciados pelos anabatistas do Antigo Continente, quem puderam escrever como o fez Roger Williams: A igreja cristã não persegue; não mais que um lírio que arranha com seus espinhos ou um cordeiro que persegue e dilacera aos lobos.(...) A religião cristã não pode propagar-se por meio da espada civil.[23]

CONCLUSÕES

Depois de ter analisado os antecedentes do movimento protestante em cada um dos oito abusos flagrantes do catolicismo e depois de ter observado como os reformadores famosos não fizeram uma verdadeira reforma, nós poderíamos analisar também os resultados políticos e sociais do movimento. Já destacamos o fato de que o movimento protestante não foi somente um movimento religioso, mas também uma agitação política de longo alcance do nacionalismo. Depois dos ensinos dos reformadores e seus partidários, por toda a Europa se propagou uma onda de decadência moral, perseguições, revoluções e “guerras religiosas”. Uma nação se levantou contra a outra, irmão contra irmão e os grandes exércitos de rapina cruzaram-se no mapa da Europa, onde a agitação política, o saque e a brutalidade se transformaram na ordem do dia.

A isto se seguiu mais de um século de guerra intermitente. Quando foi elaborada a paz em Westfalia em 1648, depois de trinta anos de guerra contínuas e de intrigas, a Europa estava em ruínas. “Os verdadeiros perdedores na guerra foram os alemães. Mais de 300.000 haviam sido mortos em batalha. Milhões de civis haviam morrido por causa da má nutrição e de enfermidades, e as tropas indisciplinadas e errantes tinham roubado, queimado e saqueado como desejavam. A maior parte das autoridades acredita que a população do Império decresceu de aproximadamente 21.000.000 para 13.500.000 entre 1618 e 1648. Mesmo que elas exageraram, a Guerra dos Trinta Anos ficou sendo como uma das mais terríveis na história.”[24]

Não somente a matança de milhões de civis inocentes provoca a nossa piedade e angustia, mas também as cruéis atrocidades cometidas contra os pacíficos mártires anabatistas em nome da religião. O grande historiador da igreja batista, A.H. Newman, se vê obrigado a formular a seguinte pergunta sobre toda a matança sangrenta: Nos vemos obrigados a perguntar se houve necessidade desta guerra; se ela foi a única maneira que os protestantes e os católicos puderam ter para ensinar a respeitar os direitos de cada um ? Não podemos responder. No entanto, temos razões sérias para duvidar se o destruidor [Lutero] do cristianismo evangélico antigo e pai do grande movimento protestante político-eclesiástico, que suscitou a Contra-reforma e os jesuítas, e que direta e indiretamente conduziu à Guerra dos Trinta Anos, foi, depois de tudo, tão grande benfeitor do gênero humano e promotor do reino de Cristo com comumente se acredita.[25]

Não somente foi a perda de vidas humanas, mas também a ruína dos negócios, das artes, da educação e o abandono de povos e cidades que ficaram com uma decadência moral espantosa, a qual se apoderou da maioria dos sobreviventes.O nacionalismo havia nascido com todo o seu “esplendor” e havia liberado a primeira grande guerra “mundial” européia, uma guerra internacional. Foi muito doloroso que os primeiros anabatistas foram perseguidos tanto por católicos como pelos protestantes. Isto aconteceu na Suíça, Bélgica, Holanda, Itália, Espanha, Alemanha, França e Inglaterra e se manteve assim por muito tempo. Foi por isso que milhares de anabatistas abandonaram a Europa para buscar a liberdade religiosa na América do norte. Foram os anabatistas, os verdadeiros campeões da liberdade religiosa, não os protestantes e nem os católicos.

Estes fatos sobre as conseqüências trágicas do movimento protestante, causam assombro. Especialmente por ter sido cultivado pelos seus seguidores uma lenda sobre a infalibilidade e a santidade imaculada dos reformadores famosos, sendo por isso, muitas pessoas enganadas involuntariamente. Se perguntarmos se os primeiros anabatistas tiveram uma razão poderosa para rejeitar o protestantismo e repudiar aos reformadores famosos, temos que dizer : Sim! Na realidade, o anabatismo foi mais que o protestantismo. Existiam quatro pontos principais de diferença entre o movimento anabatista e o movimento protestante.

1. A REVELAÇÃO DA AUTORIDADE

Tanto os anabatistas como os protestantes afirmavam aceitar a autoridade da palavra de Deus, mas somente os anabatistas aceitavam a Cristo como a autoridade final, o árbitro absoluto de toda vida, a apelação final em todos os conflitos de fidelidade e lealdade. Eles aceitavam a Cristo como Senhor e rejeitavam a doutrina do “só crê” (em Cristo como Salvador) que foi o centro do ensino protestante. Os anabatistas acreditavam que Cristo tinha que ser tanto nosso Salvador como nosso Senhor, enquanto que os protestantes apelavam para ele como Salvador, mas obedeciam a autoridade dos príncipes, governantes e as tradições do cristianismo dos princípios da Idade Média. A restituição ou reforma dos anabatistas foi o resgate do senhorio de Cristo, sendo Cristo como Senhor da moralidade universal, sem fazer exceções de pessoas ou posições, mandando a todos os homens em todas as partes a arrepender-se e a dobrar seus joelhos diante dele.

2. A PROCLAMAÇÃO DA AUTORIDADE

Os anabatistas acreditavam que as boas novas da Grande Comissão eram para proclamar a salvação e o senhorio de Cristo à todos os homens. Eles consideravam sua mensagem aplicável à todos os homens sem excetuar os membros de outras denominações, nem aos magistrados governantes (que eram chamados à arrepender-se, a depor o seu poder mundano e a seguir somente à Cristo). Os anabatistas entendiam que esta Grande Comissão unia a cada crente no sacerdócio de todos os crentes e viam como o principalpropósito da igreja, o de ser uma comunidade missionária, que devia nutrir e disciplinar as pessoas, e que fosse por todo o mundo, declarando o poder do Cordeiro para libertar, conquistar e julgar as almas. Ao contrário, os protestantes aceitavam a Igreja territorial das massas, obediente a religião do seu próprio governante e aos sacerdotes e pastores nomeados pela Igreja do estado.

Uma das verdades curiosas da história da igreja, é que os reformadores protestantes e seus seguidores, rejeitaram a Grande Comissão pela teoria não bíblica de que esta Grande Comissão foi cumprida pelos apóstolos! Os anabatistas iam por todas as partes pregando o evangelho e desfiando as ordens da Igreja do estado para que deixassem de fazê-lo. A resposta favorita dos anabatistas à seus perseguidores por proibi-lhes pregar o evangelho era o versículo: “De Jeová é a terra e a sua plenitude”. Portanto,eles iam por todo o mundo com denodo e com audácia realizando a Grande Comissão, apesar de toda a oposição. No entanto, os protestantes, ao crer que somente o estado era responsável de prover a pregação do evangelho, afirmavam de forma violenta que os cristãos não tinham nada que ver com a Grande Comissão. Aberly, no seu livro, An Outline of Missions (“Um esboço das missões”), explica esta estranha rejeição protestante da Grande Comissão e das missões. O retorno dos reformadores para a mensagem paulina da salvação por meio da graça, tanto para os judeus como para os gentios, devia ter sido preparado junto ao programa missionário do grande apóstolo para os gentios.

No entanto, os protestantes, pelo menos até depois da Guerra dos Trinta Anos, estavam ocupados em conflitos os quais dependia a sua própria existência. (...) As deduções lógicas dos princípios estabelecidos são formuladas pouco a pouco quando elas se opõem aos costumes prevalecentes. Se imaginava que o apoio da igreja era a responsabilidade do estado. Durante muito tempo se acreditou, inclusive pelos teólogos, que a comissão do Senhor de ir e fazer discípulos a todas as nações, havia sido dada somente aos apóstolos e havia sido cumprida por eles. Pensava-se que as nações que haviam desperdiçado ou rejeitado a oportunidade dada então, deviam ter o seu destino bem merecido (...) Teodoro Beza, dentre os reformados, respondeu a Saravia, em 1592, para refutar a sua opinião de que a comissão de pregar o evangelho a todas as nações foi dada à igreja para todos os tempos. Entre os luteranos, leigos proeminentes induziram o tema das missões à um confronto. Um deles foi o Conde Truchses que se dirigiu à faculdade teológica em Wittenberg sobre certos escrúpulos que ele tinha e se expressou da seguinte maneira: “ Tendo em conta que a fé chega somente por meio da pregação, não tenho idéia como o Leste, o Sul e o Oeste se converterão à única fé que salva, porque não vejo ninguém da Confissão de Augsburgo ir por ali”. A pergunta foi respondida pela faculdade de Augsburgo, a qual disse em essência que a comissão de Jesus se aplicava somente aos apóstolos e que eles já a haviam cumprido. Além disso, disseram que não é a igreja, mas o estado que tem a responsabilidade de providenciar a pregação do evangelho.[26]

Esta posição não bíblica e ignorante prevaleceu entre os protestantes durante quase dois séculos. Uma das ironias da história é que enquanto os antepassados protestantes rejeitaram a Grande Comissão e os antepassados anabatistas acreditaram nela e a praticaram fervorosamente, hoje em dia existem alguns grupos descendentes dos anabatistas que na realidade se opõem as missões e rejeitam a Grande Comissão, afirmando que ela foi somente para os apóstolos e que foi cumprida por eles!

3. A APLICAÇÃO DA AUTORIDADE

Os anabatistas acreditavam no estabelecimento livre e na proteção de uma igreja disciplinada, composta somente de discípulos nascidos de novo, unidos num compromisso voluntário e espontâneo em guardar as normas e disciplinas do Novo Testamento como se interpretava e se aplicava por e através da irmandade. Os protestantes rejeitavam uma igreja disciplinada de discípulos voluntários e defendiam uma Igreja das massas, composta de pessoas batizadas como crianças. Calvino impôs certa disciplina na Igreja por meio da exposição pública dos erros, dos açoites, das mutilações e da forca pelas transgressões (tais como o jogo e o juramento).

4. O CONFLITO DA AUTORIDADE

Os anabatistas acreditavam que o verdadeiro cristão não poderia fazer uso da força e nem exercer um oficio no reino da justiça mundana, pois ele é um profeta de Deus, levando o testemunho da cruz de Cristo, que sempre padece oposição por não poder permanecer calado, indiferente ou tolerante diante da presença do mal e permanece como um obstáculo diante do pecado. O verdadeiro cristão é um testemunho radiante contra toda autoridade humana que requer a absoluta lealdade que os homens só podem dar corretamente à Cristo, o Senhor. Portanto, o verdadeiro discípulo de Cristo é sempre visto como uma ameaça para a segurança humana, para o compromisso e para a falsa paz e sempre terá que sofrer inimizade, rejeição e reprovação por parte do mundo.

Os protestantes acreditavam que o mundo podia ser “cristianizado” e que se houvesse algum conflito entre o dever de um homem para com Cristo e seu dever para com o estado, ele deveria primeiro obedecer ao estado para que a sociedade não entrasse em colapso e em anarquia. Poderíamos resumir brevemente estas quatro diferenças ao recordar que a Reforma anabatista era a restauração da autoridade de Cristo como Senhor sobre seus discípulos em todos os aspectos de sua vida, enquanto que a Reforma protestante convertia-se na rejeição da autoridade Católica Romana a favor da autoridade dos príncipes e governantes e suas Igrejas territoriais.Em poucas palavras, os anabatistas acreditavam que a verdadeira igreja era:

1. uma igreja de discípulos que obedeciam ao Senhor.


2. uma igreja de profetas missionários, que testemunhavam a todos os homens.


3. uma igreja disciplinada, santa e pura.


4. uma igreja que é não resistente, que leva a cruz e é sofrida.

Querido leitor, te suplicamos pelo amor de Deus e de sua santa palavra, que seja fiel primeiro à ele e que reconheça que esta primeira lealdade não te permitirá acompanhar as multidões que estão a deriva. Saia de entre eles e busque a associação com uma igreja que seja fiel aos ensinos de Cristo e dos apóstolos, ou forme uma igreja semelhante na tua localidade com discípulos do Senhor que sejam da mesma opinião. Se você está traindo o verdadeiro evangelho pelo qual viveram e morreram os apóstolos e os anabatistas, te suplicamos que se arrependa e regresse para a verdade e práticas bíblicas. A verdadeira igreja é a noiva de Jesus Cristo comprada com sangue e não a Igreja rameira que passeia de mãos dadas com os reinos deste mundo. Amém.

—William R. McGrath

Citações

[1] A revista Liberty (“Liberdade”), Tomo 50, Nº 02; p. 28 (resumo por J. M. Dawson).
[2] Bonhoeffer, Dietrich: The cost of Discipleship (“ O custo do discipulado”), pp. 37 - 38, 47.
[3] The Complete Works of Menno Simons (“Obras completas de Menno Simons”), p. 283.
[4] The Complete Works of Menno Simons (“Obras completas de Menno Simons”), p. 251.
[5] Great Voices of the Reformation ("Grandes Vozes da Reforma") , p. 533.
[6] Hallam, Literature of Europe ("A literatura da Europa") Tomo I, p. 372
[7] Stoddard, J.L. Rebuilding a Lost Faith ("Reedificando uma fé perdida"), pp. 97-98
[8] Enciclopédia Britânica (1935), Tomo 23, p.15.
[9] Tulga, C. E. , The New Testament Doctrine of the Church ("A doutrina neotestamentária da igreja"), da introdução.
[10] Pfister, Óscar : Christianity and Fear ("O cristianismo e o temor"), pp. 418-419, 427-428
[11] The Complete Works of Menno Simons ("Obras completas de Meno Simons") , 147a/I, 196a
[12] Grimm, Harold J., The Reformation Era (" A época da Reforma ") , p. 139.
[13] Martinho Lutero, Werke, edição de Erlangen, Tomo 24, p. 294; Tomo 15, p.276.
[14] Martinho Lutero, Werke, edição de Erlangen, Tomo 59, p. 284. [15] Enciclopédia Britânica, Tomo 23, p. 11.
[16] Weaver, Rufus W., The Revolt Against God (“A revolta contra Deus”), p. 155.
[17] Martinho Lutero, Werke, edição de Weimar, Tomo 30, p. 1, passim. [18] O autor deste artigo fez uso de letras em itálico nas citações. [19] Bainton, Roland H., citado em Church History (“A história da igreja”), junho, 1955; p.150.
[20] Hoffmann, citado por Pfíster em, Christianity and Fear (“O cristianismo eo temor”) , p. 468.
[21] Hall, History of Ethics Within Organized Christianity (“A história da ética dentro do cristianismo organizado”) , p. 505.
[22] Dawson, Joseph M., Liberty (“Liberdade”), p. 28.
[23] Dawson, Joseph M., Liberty (“Liberdade”), p. 28.
[24] De acordo com o que escreveu o professor Gerhard Rempel num resumo de cinco páginas sobre a Guerra dos Trinta Anos, elaborado no dia 10 de setembro de 2002, tomado de: http://mars.wnec.edu//- grempel/courses/wc”/lectures/30yearswar.html
[25] Newman, A.H., A Manual of Church History ( “Um manual da história da igreja “) , Tomo II. p. 411. [26] Aberly, An Outline of Missions (“ Um esboço das missões”), pp.47-48.
Todos os textos bíblicos citados neste livro fazem parte de: A Bíblia Sagrada - Tradução de João Ferreira de Almeida, (ACF) Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil —1994,1995

Extraído de http://www.elcristianismoprimitivo.com/os%20anabatistas.htm