domingo, 26 de abril de 2009

Descartável e degradado

Muitas pessoas com passado intelectual arrastam-se vida afora em projetos intelectuais difusos e atividades como o jornalismo de ocasião e experiências artísticas improdutivas

Robert Kurz critica o sociólogo alemão Ulrich Beck e a flexibilização do trabalho

Fonte: Folha de São Paulo, 11 de julho de 1999

Há muito não é mais segredo que o mundo altamente industrializado ou mesmo "pós-industrial" do Ocidente assume cada vez mais traços do chamado Terceiro Mundo. Não foram os países da periferia capitalista que se acercaram do nível social das democracias ocidentais do "Welfare State", mas justamente o contrário, a depravação social nos antigos centros capitalistas dissemina-se como um vírus. Porém não se trata somente do progressivo desmantelamento dos sistemas de previdência social, não se trata somente do aumento do desemprego estrutural de massas.

Além disso, entre o emprego formal e o desemprego também cresce um setor difuso, que já é velho conhecido dos países do Terceiro Mundo e que, nas sociedades marcadas pelo "apartheid" social de uma minoria que toma parte no mercado globalizado, ganhou o rótulo de "economia informal" dos excluídos, os quais vegetam abaixo do nível de miséria. Os camelôs nas calçadas, os garotos que limpam pára-brisas nos cruzamentos, a prostituição infantil ou o sistema semilegal de reaproveitamento de sucata e lixo compõem essa categoria.

Em menores proporções, esses fenômenos também passaram a integrar o dia-a-dia do mundo ocidental, sendo mais evidentes nos países anglo-saxões, com o seu radical liberalismo econômico de matiz clássico. Mas ainda se acham em gestação novas formas híbridas entre o emprego formal e as relações de trabalho precárias.

Como há 20 anos o nível do salário real diminui de forma contínua (com particular virulência nos Estados Unidos), a renda do salário oficial não basta mais para financiar um padrão de vida "normal" com moradia, carro e seguro de saúde. É preciso, assim, buscar relações de emprego suplementares. Dois ou três empregos por pessoa são quase a regra. O operário de uma fábrica, após o expediente, dá um pulo em casa para um rápido jantar e em seguida entra de serviço como vigilante noturno em outra empresa; de sono restam só poucas horas. No fim-de-semana ele trabalha ainda de garçom num restaurante sem salário fixo, contando apenas com as gorjetas. Com esforço sempre maior e à custa da ruína de sua saúde, mantém-se a fachada da normalidade.

Outro fato que multiplica essa nova espécie de biografia do rendimento incerto é serem as pessoas obrigadas, em número cada vez maior, a trabalhar abaixo de sua qualificação. Para as atividades que efetivamente exercem, elas são "superqualificadas", sua proficiência não é mais absorvida pelo mercado. Desde o início dos anos 80, com o advento da revolução microeletrônica e com a crescente crise das finanças estatais, uma formação acadêmica não é mais garantia de um posto de trabalho correspondente. Muitos cargos qualificados no âmbito estatal foram extintos, por falta de financiamento. No mercado livre, por outro lado, as qualificações caducam com uma rapidez vertiginosa e, como "fogo de palha" que são, logo perdem seu valor. O ciclo acelerado das conjunturas, das inovações, dos produtos e da moda abarca não somente a esfera técnica, mas também a cultura, as ciências humanas e a prestação de serviços.

Nesse processo social, uma parte crescente da intelectualidade acadêmica foi degradada. O "eterno estudante", o estudante de matrícula trancada que tira seu sustento fazendo bicos em atividades menores, a estudante de literatura inglesa aos 30 anos desempregada, com seu inútil diploma de doutora, esses casos não são mais raridade. Em todo o mundo ocidental, o taxista graduado em filosofia tornou-se o emblema de uma carreira social negativa. Formou-se um novo círculo, bem mais abrangente do que a antiga boêmia. Historiadores diplomados trabalham em fábricas de pão de mel, professoras desempregadas tentam a vida como "babysitter", juristas supérfluos vendem produtos culturais indianos.

Muitas pessoas com passado intelectual arrastam-se vida afora, com seus 30, 40 anos de idade, em projetos intelectuais difusos, semi-estudantis, e flutuam em suas atividades entre o emprego de entregador de mercadorias, o jornalismo de ocasião e experiências artísticas improdutivas. A questão profissional gera um progressivo embaraço. Já em 1985, dois jovens autores alemães, Georg Heizen e Uwe Koch, publicaram um romance "cult", cujo herói assim descreve esse novo sentimento de precariedade: "Não sou pai, nem marido, nem membro do Automóvel Clube. Não sou pessoa de mando nem autoridade, não disponho de conta bancária. Sou versado em assuntos intelectuais, dos quais hoje se faz cada vez menos uso. Estou excluído da circulação das ofertas".

Se talvez dez ou 15 anos atrás essa forma de existência equívoca ainda soava algo exótica, hoje ela se transformou em fenômeno de massas. O sociólogo alemão Ulrich Beck apurou que "o sistema padronizado de emprego começa a esmorecer". As fronteiras entre emprego e desemprego tornam-se lábeis. As palavras de ordem do novo sistema de emprego, um sistema disperso e confuso, são "flexibilização" e "subemprego múltiplo". Há muito não se encontra mais apenas uma inteligência acadêmica, excluída e supérflua, nesses meios de emprego flexibilizado. Antigos carpinteiros, cozinheiras, desenhistas técnicos, cabeleireiros, costureiras ou enfermeiros também se transformaram em subempregados de função múltipla e sem emprego fixo.

Todos fazem algo diverso daquilo que estudaram. Qualificações, profissões, carreiras, currículos e status social precisos e inequívocos fazem parte do passado. Isso é mais do que a simples oscilação constante entre emprego remunerado e desemprego, como hoje é natural para vários milhões de pessoas nos Estados industrializados do Ocidente. Trata-se também da permanente alternância entre qualificações, atividades e funções já conhecidas, uma espécie de vaivém entre os ramos sociais do trabalho, que se modificam com rapidez cada dia maior sob a pressão dos mercados.

Ainda havia esperanças, nos anos 80, de que a nova tendência de flexibilização das relações de trabalho talvez pudesse ser dobrada para fins emancipatórios, permitindo que não se seguissem mais padrões esclerosados, que se descobrissem, apesar das pressões sociais, novas possibilidades e novos modos de vida. O indivíduo flexível deveria ser o protótipo daquele que não se submete mais incondicionalmente às injunções do trabalho e do mercado, daquele que, por conquistar um tempo livre para a ação independente e autônoma, é capaz de definir livremente seus objetivos. Falava-se de "pioneiros do tempo", que ganhariam a "soberania do tempo" para usá-lo em benefício próprio, criando formas de vida alternativas à polarização mecânica entre o "trabalho" imposto por outrem e o "lazer" orientado para o consumo.

Tais idéias lembram um pouco os escritos de juventude de Karl Marx, que, numa passagem famosa, previu para o futuro comunista o fim da opressiva divisão do trabalho: "A divisão do trabalho nos oferece o exemplo de que, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, a própria ação do homem torna-se para ele um poder alheio e adverso, que o subjuga. É que, tão logo o trabalho começa a ser dividido, cada um tem um determinado círculo exclusivo de atividades, do qual não pode sair, ao passo que, no comunismo, a sociedade regula a produção geral e justamente por isso permite-me fazer hoje isso, amanhã aquilo, de manhã caçar, à tarde pescar, à noite pastorear o gado, depois do jantar fazer crítica, com bem me aprouver, sem jamais ter de tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico".

A velha imagem romântica do jovem Marx, completando exatos 150 anos de existência, infelizmente não tem mais nada a ver com a nossa nova realidade flexibilizada. Afinal não vivemos mais numa sociedade com veleidades comunistas, que, para além do capitalismo burocrático de Estado, hoje em franco declínio, partiria em busca de novos horizontes de emancipação social.

Otimistas da flexibilização como Ulrich Beck ou o filósofo social francês André Gorz tomaram o bonde errado, pois quiseram desenvolver os potenciais de uma nova "soberania do tempo" individual em coexistência pacífica com o modo de produção capitalista. Depois de toda a crítica radical da ordem reinante ter sido abandonada, não existia mais nenhuma possibilidade de utilizar a tendência social imanente para fins emancipatórios. Em razão disso, a luta para dar à flexibilização contornos sociais já estava decidida antes mesmo de começar.

As idéias esperançosas de uma suposta determinação autônoma do fluxo temporal em nichos sociais referiam-se, em todo caso, apenas a certas formas de trabalho de jornada parcial, que além do mais, segundo a teoria de Gorz, deveriam ser patrocinadas socialmente pelo Estado, para afiançar uma segura "receita básica" na forma de moeda e possibilitar com isso as atividades paralelas, estas sim de livre escolha.

Essa teoria, bem intencionada mas banguela, sempre fez pouco da realidade das pessoas que, sob a pressão do crescente dumping social, são forçadas a trabalhar em dois ou três empregos quase 24 horas por dia. Como hoje, a exemplo de antes, ainda existe aquela "cisão entre o interesse particular e o comum" -leia-se: concorrência cega nos mercados anônimos, que teóricos como Beck e Gorz não põem mais em questão-, o potencial da produtividade incrementada também não pode mais ser utilizado em proveito da "soberania do tempo" dos indivíduos. Em vez disso, o capitalismo neoliberal desembestado impôs ditatorialmente a flexibilização, viabilizando de forma exclusiva sua filosofia econômica da redução de custos a todo preço.

Suprimem-se as jornadas de trabalho padronizadas, mas não no interesse dos trabalhadores. Amplia-se o "trabalho à disposição", conforme o volume das encomendas e em turnos variáveis. Exige-se também maior mobilidade espacial da força de trabalho, em prejuízo de seus próprios interesses vitais. Há tempos, centenas de milhões de pessoas são forçadas a migrar para outros países e continentes em busca de trabalho. Latinos saem à cata de emprego nos Estados Unidos, asiáticos, nos emirados do Golfo, europeus do sul e do leste, na Europa central.

Na China e no Brasil há enormes migrações internas. Sob o ditado da globalização, reforçou-se essa tendência à mobilidade espacial da força de trabalho, atingindo até mesmo os centros ocidentais. Na Alemanha, por exemplo, as delegacias de trabalho podem exigir de um desempregado que aceite um emprego a 100 km de sua residência e "visite" sua família só nos fins-de-semana. No interesse de sua carreira, empregados laboriosos vêem-se cada vez com mais frequência na obrigação de trocar de cidade, de país ou de continente em que prestam seus serviços. As pessoas transformam-se em nômades do mercado, incapazes de criar raiz social.

Da flexibilização também faz parte a constante alternância entre empregos subordinados e "autônomos". As fronteiras entre o trabalho assalariado e a livre iniciativa perdem a nitidez, mas isso também em detrimento dos trabalhadores. Na esteira do "outsourcing" surgem cada vez mais pseudo-autônomos sem organização empresarial própria, sem capital próprio, sem colaboradores e sem a célebre "liberdade empresarial", já que dependem de um único cliente a maioria da vezes sua antiga empresa, que desse modo poupa a contribuição previdenciária e, em lugar do piso salarial, paga somente os "honorários" daquilo que foi estritamente produzido, o que é sempre muito menos do que o antigo salário.

Flexibilização, em obediência ao mandamento de transferir o risco aos empregados autônomos e delegar a responsabilidade aos mais fracos, significa: mais produção e mais estresse por menos dinheiro. O liame empresarial se esgarça e os chamados colegas de emprego cindem-se em dois, de um lado os de carteira assinada, espécie em extinção cujos direitos trabalhistas são paulatinamente reduzidos ou cortados de todo, e de outro os colaboradores que convivem na precariedade, chamados por exemplo de "free-lancers" ou "portfolio-workers".

Entre os primeiros, por sua vez, cindem-se as repartições em "profit-centers" concorrentes. A cultura da empresa integrada faz parte do passado. Tomando como exemplo o multicartel da IBM, o historiador social americano Richard Sennet, em seu livro "O Homem Flexível" (1998), mostrou essa lógica da infidelidade: "Durante os anos de reestruturação, ao enxugar os gastos, a IBM não dava mais confiança a seus empregados. Foi-lhes comunicado, aos que restaram, que eles não eram mais os filhos da grande empresa".

Os indivíduos flexibilizados pelo capitalismo não são pessoas conscientes e universais, mas pessoas universalmente exploradas e solitárias. A nova responsabilidade pelo risco não é algo instigante, se não aterrador, pois o que se arrisca é a própria vida. A desconfiança generalizada corre mundo. Do clima de máfia e paranóia nasce uma cultura empresarial taciturna. Pessoas sem assistência e espoliadas ficam doentes e perdem a motivação. E tornam-se cada vez mais superficiais, dispersas e incompetentes. Isso porque a verdadeira qualificação exige tempo, tempo de que o mercado não dispõe mais. Quanto mais rapidamente mudam as exigências, mais irreal torna-se a qualificação, mais o aprendizado transforma-se num puro consumo de conhecimentos, num mero ossuário de dados. A qualidade fica para as calendas. Afinal, quando sei que tudo o que aprendo à custa de esforço perderá valor no momento seguinte, o fôlego de minha atenção será obviamente mais curto, e isso na exata proporção de meu desalento.

Mas empregados manhosos e sem coesão social, que só sabem lograr seus superiores, os clientes e seus demais colegas, tornam-se também contraproducentes para a empresa. Com a total flexibilização o capitalismo não soluciona sua crise, antes a conduz ao absurdo e demonstra que só é capaz de suscitar forças autodestrutivas.

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Ed. Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", da Folha.

Ontem e Hoje









































Os dois mapas acima dão uma clara dimensão do que está acontecendo.

O primeiro mostra a demanda por importações dos países avançados e da China na média das crises dos mercados emergentes de 1995, 1998 e 2007. Quanto mais escuro o tom de vermelho, mais "quentes" estavam as importações.

O segundo mostra exatamente a mesma coisa, só que agora em 2009. Quanto mais escuro o azul, mais "gelada" a demanda desses países por produtos importados.

A mentira corre e cansa, a verdade anda e alcança

Já era a igreja,a igreja já era


A mentira corre e cansa, a verdade anda e alcança


Final dos tempos fim do mundo você sabe como é
o baguio tá doido o homem é sujo tá vendendo até a fé
de lá da frente o pastor grita que é pra todo mundo
ouvir..

"Não tem dinheiro, não tem cheque?
traz o seu cartão aqui, pode ser Visa 
ou ser Diners ou até o Master Card..
Pra nois não importa o nome dele
e sim o quanto tú vai dar..."

Ainda ora sim senhor, proteja esse nosso irmão
que deu pra nois tudo o que tinha não da cadeia é
doação..
De madrugada na tv, o cara fala que eu te escuta
Nossas igrejas famintas parecendo prostitutas
Se não tem nada é meia boca se é milionário qual
problema
só falta para igualar, pastor transar em campo aberto

Brasil país das maravilhas e país das facção
tem o cv o pcc a universal e a televisão
direto fala que o Marcola o Fernandinho Beira-Mar
se encontram preso porque crimes eles foram praticar
Edir Macedo não vai preso é um honesto cidadão
melhor dizendo não vai preso porque não é lá do Capão
Brasil tá mesmo é precisando de um Bin Ladem de
bombeta
daquelas que é branco e vinho um vida loka com
certeza
que não tem medo de falar e não tem pena de dizer
quem enganar o povo leigo é ser pior que o pcc

[Refrão - Zequinha]
Alô Alô Alô, fala que eu te escuta
me dá o teu dinheiro e vive igual filha da puta
Alô Alô Alô, igreja é tudo igual
não importa se é católica ou é universal
Alô Alô Alô, cuidado meus irmãos
pega o seu dinheiro e vai comprar alimentação
Alô Alô Alô, cuidado com o Edir Macedo
que fala na tv que é rico com o teu dinheiro"

Edir Macedo é teu pastor e nada faltará
enquanto aqui na terra tiver troxa pra bancar
irmão, você quer ir pro céu me dá tudo que tem
no céu só entra alma, lá não tem lugar pra bem
e não adianta agora você vim reclamar
só resta pra você o livro dele ir comprar
ele não disse que é rico? porque é filho do rei?
você que dá o dinheiro não tem nada não é ninguém
infelizmente o ditado foi feito pra você
"O pior cego num enxerga, ele enxerga e não quer vê"

ae, eu usei o Edir Macedo de exemplo porque é o mais
cara de pau,
que vai na televisão dá entrevista pra lançar seu
livro e fala que é rico
porque é filho de Deus, axando que nois que vai na igreja
buscar uma melhora
pra nosso espírito, pra nossa fé, não tem dignidade de
ter as coisas, 
mas ai, igual a ele tem varias ai, varios pastor,
varias igreja de varias 
denominação que só pensa em dinheiro, cê vai na igreja
o cara não pergunta
se tá faltando um arroz, um feijão na casa do irmão da
igreja pra perguntar
se o outro não tem dois pra trazer pra dividir, eles
fala pra você assim ó:

"Vai irmão tenha fé, acredita em Deus, Você só tem o
dinheiro da sua conta de luz?
só tem o dinheiro da prestação do seu aluguel? dar pra
Deus, acredita em Deus."

não vai nessa não chará..DEUS não quer dinheiro não
DEUS quer coração, quer alma pura, DEUS é o dono do 
ouro e da prata tá escrito na bíblia se ele quizesse
dinheiro ele não tava preocupado em salvar sua alma,
ele ia se preocupar em salvar a Casa da Moeda, 
o Banco Central não cai nessa não chará, sai fora
dinheiro aqui nasceu e aqui vai ficar...

 

- TRILHA SONORA DO GUETO -

quinta-feira, 23 de abril de 2009

A privatização do mundo

Por Robert Kurz (*)


 

É de supor que a natureza já existisse antes da economia moderna. Daí o fato da natureza por si própria ser grátis, sem preço. Isso distingue os objetos naturais sem elaboração humana dos resultados da produção social, que já não representam a natureza "em si", mas a natureza transformada pela atividade humana. Esses "produtos", diferentemente dos objetos naturais puros, nunca foram de livre acesso; desde sempre estavam sujeitos, segundo determinados critérios, a um modo de distribuição socialmente organizado. Na modernidade, é a forma da produção de mercadorias que regula essa distribuição no modo do mercado, segundo os critérios de dinheiro, preço e procura (solvente). Mas é um problema antigo que a organização da sociedade tenda a obstruir também o livre acesso a um número crescente de recursos pré-humanos da natureza. Essa ocupação traz, das mais diversas formas, o mesmo nome que os produtos da atividade social, a chamada "propriedade". Ou seja, acontece um quiproquó: outrora livres, os objetos naturais não elaborados pelo ser humano são tratados exatamente como se fossem os resultados da forma de organização social, e daí submetidos às mesmas restrições.

A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra. A terra em si não é naturalmente o resultado da atividade produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso. Quando muito, a terra já transformada, lavrada e "cultivada" poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. Mas, como se sabe, não é exatamente esse o caso. Justamente a terra ainda de todo inculta é usurpada com violência. Já na Bíblia há a disputa entre lavradores e criadores de gado por território (Caim e Abel) e, entre os pastores nômades, por "pastos mais férteis". A usurpação do solo "virgem" é o pecado original e hereditário da "dominação do homem sobre o homem" (Marx). As aristocracias de todas as altas culturas agrárias repressivas se formaram na origem por essa apropriação violenta da terra, literalmente à clava e dardo. Contudo a propriedade nas culturas agrárias pré-modernas nem de longe se parecia com a propriedade privada no sentido atual. Isso significava, antes de tudo, que a propriedade não era exclusiva ou total. A terra podia ser utilizada e cultivada também por outros, que em troca pagavam certos tributos (a renda feudal na forma de víveres ou serviços) aos proprietários, estes originariamente violentos. Mas havia ainda possibilidades de uso gratuito. Por exemplo, em muitos lugares, os camponeses tinham a permissão de conduzir seus porcos até às terras incultas do senhor feudal, segar ali forragens crescendo livremente ou recolher outras matérias naturais. Diferentes possibilidades de uso livre nunca deixaram de ser controversas, como o direito à caça e à pesca. Quando os senhores feudais tentavam estabelecer proibições nesse sentido, estas quase nunca eram obedecidas. Assim, o caçador e o pescador ilegais passaram a figurar entre os heróis da cultura popular pré-moderna.

A DITADURA DA PROPRIEDADE

A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a submissão da natureza "livre" à forma da organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da tendência usurpadora tem sua razão no fato de a ocupação ser efetuada agora não mais pelo ato pessoal e imediato de violência, mas pelo imperativo econômico moderno, representando uma violência "coisificada" de segunda ordem. A violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na ocupação dos recursos naturais, mas ela é já coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero agente do fim em si mesmo econômico. Esse deus secularizado da modernidade, o capital como "valor que se autovaloriza" incessantemente (Marx), não aparece, porém, apenas na figura de uma coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia moderna é totalitária. Ela tem uma pretensão total sobre o mundo natural e social. Por isso, tudo o que não está submetido e assimilado à sua lógica própria é para ela fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica consiste única e exclusivamente na valorização permanente do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um preço monetário. Não deve haver nada mais debaixo do céu que seja gratuito e exista por natureza. A propriedade privada moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa lógica totalitária. Ela é, por isso, tão totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas, além das oficiais: os recursos têm de servir à valorização ou ficar indisponíveis. Dada a forma da propriedade privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social. Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em torno da "lei prussiana contra o roubo de lenha", que queria proibir os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, há movimentos sociais de "ocupantes da terra" que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade privada moderna sobre o uso do solo.

No desenvolvimento do moderno sistema produtor de mercadorias, o problema primário do acesso a recursos naturais gratuitos foi sobrepujado pelo problema secundário do acesso a recursos "públicos", diretamente relacionados ao todo da sociedade: as chamadas infraestruturas. Com a industrialização capitalista e a inerente aglomeração de massas gigantescas de seres humanos (urbanização), surgiram carências sociais, tornando necessárias medidas que não podiam ser definidas pela lei do mercado, mas somente pela administração social direta. Por um lado, trata-se agora de sectores inteiramente novos, resultantes do processo de industrialização, como o serviço público de saúde, as instituições públicas de ensino (escolas, universidades, etc.), as telecomunicações públicas (correio, telefone), o abastecimento de energia e os transportes públicos (caminho de ferro, metropolitano, etc.). Por outro lado, também os recursos naturais antes livremente acessíveis sem nenhuma organização social e os processos vitais humanos que se efetuam por si mesmos tiveram de ser socialmente organizados e colocados sob a administração pública: é o caso do abastecimento público de água potável, da recolha pública de lixo, dos esgotos públicos etc., chegando aos sanitários públicos nas grandes cidades. Sob as condições do moderno sistema produtor de mercadorias, a "administração de coisas" pública e coletiva não pode assumir senão a forma distorcida de um aparelho burocrático estatal. Pois a forma moderna "Estado" representa somente o reverso, a condição estrutural e a garantia do "privado" capitalista; o Estado não pode, por natureza, assumir a forma de uma "associação livre". A administração pública de coisas permanece assim nacionalmente limitada, burocraticamente repressiva, autoritária e ligada às leis fetichistas da produção de mercadorias. Por isso os serviços públicos assumem a mesma forma-dinheiro que a produção de mercadorias para o mercado. Ainda assim não se trata de preços de mercado, mas somente de tarifas; algumas infra-estruturas até são oferecidas gratuitamente. O Estado financia esses serviços e agregados de coisas somente para uma pequena parte, por meio de tarifas cobradas dos cidadãos; no essencial, eles são subvencionados com a taxação dos rendimentos capitalistas (salários e lucros). Desse modo, a administração pública de coisas permanece ligada ao processo de valorização do capital.

A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO

Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte como o necessário suporte, amortecimento e superação de crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas, porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que, exatamente às avessas, resulta na privatização de todos os recursos administrados pelo Estado e dos serviços públicos. De modo algum essa política de privatização é defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata aqui só de ideologia, mas de um problema de crise real. Seguramente, desempenha um papel nisso o fato de a arrecadação pública de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do capital. Os Estados, as Províncias e as comunas super-endividadas em todo o mundo tornaram-se fatores de crise econômica, ao invés de poderem ser ativos como fatores de superação da crise. Uma vez delapidadas as "pratas" dos sistemas socialmente administrados, as "mãos públicas" acabam por assemelhar-se fatalmente às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a mobília e até a roupa para poderem sobreviver. Porém o problema reside ainda mais no fundo. No âmago, trata-se de uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente, pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos condições para tal, nas suas próprias bases. Daí resulta um duplo ato de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, por fazer até mesmo da "natureza interna" do ser humano, da sua alma, da sua sexualidade, do seu sono o terreno direto da valorização do capital e, com isso, da propriedade privada. Por outro, as infraestruturas públicas de propriedade do Estado devem ser geridas, também, por sectores do capitalismo privado.

SOCIEDADE AUTO-CANIBALÍSTICA

Mas essa privatização total do mundo mostra definitivamente o absurdo da modernidade; a sociedade capitalista torna-se auto-canibalística. A base natural da sociedade é destruída com velocidade crescente; a política de diminuição dos custos e a terceirização a todo o preço arruinam a base material das infraestruturas, o conjunto organizador e, com isso, o valor de uso necessário. Há tempos é conhecido o caso desastroso das ferrovias e, de modo geral, dos meios de transporte, outrora públicos: quanto mais privados, tanto mais deteriorados e mais perigosos para a comunidade. O mesmo quadro se constata nas telecomunicações, nos correios etc. Quem hoje precisa, com uma mudança de casa, mandar instalar um telefone novo passa por incumprimento de prazos, confusão de competências entre as instâncias "terceirizadas" e técnicos pseudo-autônomos e praguejantes. O correio alemão, que se transformou num consórcio e global player ansioso por sua capitalização nas Bolsas, em breve distribuirá cartas na Califórnia ou na China; em troca, o serviço mais simples de entrega mal continua a funcionar internamente. Que prodígio setores inteiros de atividade serem ajustadas a salários baixos, as zonas de entrega de poucos carteiros dobradas e triplicadas, e as filiais, extremamente desguarnecidas! As estações de correio ou de caminho de ferro transformam-se em quilômetros cintilantes de lojas estranhas à sua alçada, enquanto a qualidade do serviço próprio decai. Quanto mais estilizados os escritórios, tanto mais miserável o serviço.

PRIVATIZAÇÃO  —>   AUMENTO DE PREÇOS

Apesar de todas as promessas, a privatização significa cedo ou tarde não só a piora mas também o aumento drástico de preços. Porque és pobre, tens de morrer mais cedo: com a privatização crescente dos serviços de saúde, essa velha sabedoria popular recebe novas honras mesmo nos países industriais mais ricos. A política de privatização não dá trégua nem sequer às necessidades humanas mais elementares. Na Alemanha, os banheiros das estações de trem passaram a ser recentemente controladas por uma empresa transnacional chamada "McClean", que cobra pela utilização de um mictório tanto como por uma hora de estacionamento no centro da cidade. Portanto agora já se diz: se és pobre, tens de mijar nas calças ou aliviar-te ilegalmente!

A privatização do abastecimento de água na cidade boliviana de Cochabamba, que, por determinação do Banco Mundial, foi vendida a uma "empresa de água" norte-americana, mostra o que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da chuva para beber foi declarado ilegal, e ao protesto respondeu-se com o envio de tropas. Logo também o sol não brilhará de graça. E quando virá a privatização do ar que se respira? O resultado é previsível: nada funcionará mais, e ninguém poderá pagar. Nesse caso, o capitalismo terá de fechar tanto a natureza como a sociedade humana por "escassez de rentabilidade" e abrir uma outra.
_______________
[*] Filósofo alemão. O original deste artigo encontra-se em http://www.krisis.org ("Die Privatisierung der Welt"). Tradução de Luís Repa publicada na Folha de São Paulo de 14/Jul/02.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

domingo, 12 de abril de 2009

Karl Marx, O Capital, Capítulo I - A Mercadoria



























O capitalismo está chegando ao fim. A prova: a queda da União Soviética. A base desta análise: a "obscura" crítica do "valor" de um tal de Karl Marx. Será que a luta de classes e a luta pela democracia derrotarão o capitalismo? A luta de classes não foi outra coisa senão o motor do desenvolvimento capitalista e jamais poderá levar à sua superação. A democracia não é o antagonista do capitalismo mas sua forma política, e ambos esgotaram seu papel histórico. A queda dos regimes do Leste não significa o triunfo definitivo da economia de mercado, mas um passo ulterior em direção ao ocaso da sociedade mundial da mercadoria.

Estas, entre outras, as teses mais ousadas de Robert Kurz e do grupo que com ele publica na Alemanha a revista Krisis. Trata-se, talvez, do início de uma verdadeira revolução teórica: assim, confrontar-se com as ideias deste grupo será muito fértil para todos aqueles que não consideram esta sociedade a última palavra da história, e que não estão satisfeitos com uma crítica que se limita a arrastar exaustivamente conceitos cada vez mais claramente superados. Partindo da intenção de renovar a teoria marxista, Kurz e seus amigos embarcaram numa verdadeira aventura da reflexão, e, neste percurso, acabaram por abandonar muitas das veneráveis certezas da esquerda. Entretanto, ao contrário de outras tentativas de revisão da teoria marxista, aqui não se trata de "realismo" ou de reformismo, mas de uma nova colocação da crítica radical.

O trabalho mais estritamente teórico é desenvolvido em conjunto nos, até agora, vinte volumosos números da revista Krisis (anteriormente chamada de Marxistische Kritik) publicados a partir de 1986. Robert Kurz, em livros, artigos, conferências e debates apresenta a um público mais amplo diversas análises da atual crise econômica e política. Através dos vinte mil exemplares vendidos de O Colapso da Modernização(1) (Der Kollaps der Modernisierunng), publicado em 1991 por H.M. Enzensberger, as teorias da Krisis começaram a ser mais amplamente conhecidas na Alemanha (2) (muitas vezes, os que se mostraram mais receptivos em relação às colocações da Krisis foram pessoas de procedência não estritamente marxista).

O ponto de partida de suas análises são os conceitos marxianos de "fetichismo" e de "valor" enquanto descrevem a transformação da atividade humana concreta em algo tão abstrato e puramente quantitativo como o valor de troca, encarnado na mercadoria e no dinheiro. O "fetichismo" não é, portanto, somente uma ilusão ou um fenômeno da consciência, mas uma realidade: a autonomização da mercadoria que segue apenas suas próprias leis de desenvolvimento. "Por trás" da processualidade cega e auto-referencial do valor não há nenhum sujeito que "faz" a História. Mas, diferentemente do estruturalismo, a Krisis não acredita que o processo sem sujeito seja uma lei fundamental e imutável da existência, antes o concebe como um estágio histórico necessário, porém transitório..."

Grupo Krisis
=====

KARL MARX, O CAPITAL, CAPÍTULO I

 

NOTA SOBRE A TRADUÇÃO

PREFÁCIO DA 1ª EDIÇÃO (1867)

CARTA AO EDITOR FRANCÊS (1872)

POSFÁCIO DA 2ª EDIÇÃO ALEMÃ (1873)

POSFÁCIO À EDIÇÃO FRANCESA (1875)

CAPITULO I - A MERCADORIA

1 - OS DOIS FATORES DA MERCADORIA: VALOR-DE-USO E VALOR-DE-TROCA OU VALOR PROPRIAMENTE DITO (SUBSTÂNCIA DO VALOR, GRANDEZA DO VALOR)

2 - DUPLO CARATER DO TRABALHO REPRESENTADO NA MERCADORIA

3 - A FORMA DO VALOR [ou o valor-de-troca]

A - Forma simples, [singular] ou acidental do valor

B - Forma-valor total ou desenvolvida

C -Forma geral do valor

D - Forma-dinheiro

4 - O FETICHISMO DA MERCADORIA E O SEU SEGREDO

NOTAS ORIGINAIS

NOTAS DOS TRADUTORES

 

NOTA SOBRE A TRADUÇÃO

Na tradução do Livro I seguiu-se a edição francesa de 1872-5, conhecida por tradução Roy, feita a partir da 1ª edição alemã, mas inteiramente revista e em grande parte alterada por Marx.

As razões que levaram a optar pela versão francesa, em vez da versão definitiva alemã (a 4ª, 1890, revista por Engels) foram as seguintes: em primeiro lugar, o fato de já existir, embora pouco acessível em Portugal, uma tradução portuguesa da referida edição alemã (Editora Civilização Brasileira, Rio, 1968, 2 vols., trad. de Regalando Santanna; em segundo lugar, o fato de O próprio Marx ter atribuído um valor autônomo à edição francesa. Na verdade, no posfácio a essa edição, afirmou que ela «possui um valor científico independente do original, devendo ser consultada mesmo pelos leitores familiarizados com a língua alemã»; e já em 1872, numa carta a Danielson, o tradutor russo de O Capital, Marx afirmava que seria «mais fácil traduzir do francês para o inglês e para as línguas românicas».

E, se é certo que grande parte das alterações e acréscimos feitos por Marx na edição francesa foram depois feitos nas edições alemãs seguintes (ver os prefácios de Engels das 3ª e 4ª edições), nem por isso a edição francesa deixou de manter diferenças bastantes para ser considerada uma versão autônoma. As diferenças respeitam quer ao estilo, quer ao conteúdo. Quanto ao último aspecto, Marx, que não tinha em grande conta a capacidade teórica do leitor francês, foi levado a alterar as passagens mais densamente teóricas da obra, quer alterando o seu caráter abstrato, quer juntando explicações complementares, quer, menos frequentemente, eliminando-as. Daí que, apesar de alguns cortes, a versão francesa seja sensivelmente maior e, em geral, menos conceitualmente concentrada, o que, embora empobrecendo por vezes o rigor teórico e conceitual, torna a leitura mais fácil.

Por isso, a presente tradução foi confrontada passo a passo com a versão definitiva alemã. Assim, corrigimos a tradução Roy sempre que ela não dá o teor exato das ideias ou conceitos do original; além disso, acrescentamos, assinalando-as com parêntesis retos, as passagens omitidas na versão francesa e, sempre que o acréscimo no texto não se mostrou possível, assinalamos em nota a diferente redação alemã.

Quer dizer: a tradução que adiante damos de O Capital contém as duas versões originais, a francesa e a alemã. Evidentemente que a comparação de dois textos de estrutura diferente nem sempre foi fácil, nem as soluções encontradas puderam eximir-se a uma certa margem de discricionaridade. Mas cremos que as vantagens obtidas justificam de longe ter-se corrido esse risco.

Se houve uma preocupação fundamental a dirigir esta tradução, essa foi a da fidelidade ao texto original. Num texto caracterizado por grande densidade teórica e onde, por assim dizer, cada palavra é um conceito com o seu peso específico, a liberdade de tradução correria o risco de grave empobrecimento. Não procuramos, pois, facilitar o texto, conscientes de que não compete à tradução fazer de um texto difícil um texto fácil.

Importa também dar conta da maneira como resolvemos algumas dificuldades particulares. Assim, alguns conceitos ou expressões não possuem um correspondente unívoco em português. Nos casos em que existe uma terminologia já estabelecida entre nós, foi essa que utilizamos: v. g. classe dominante (e não classe dirigente ou classe reinante); nos casos em que a terminologia é flutuante, utilizamos, de acordo com as circunstâncias, duas (ou mais) versões, desde que igualmente rigorosas: v. g. sobretrabalho e trabalho excedente, sobreproduto e produto excedente, forma-valor e forma de valor, força produtiva e produtividade, figura-dinheiro e figura monetária, etc.

Quanto às passagens que no original estão em outras línguas (inglês, italiano, etc.), procedemos do seguinte modo: as expressões meramente enfáticas ou figuras de estilo, mantivemo-las nessa língua, traduzindo-as em nota de rodapé; os restantes trechos, quase sempre citações de autores, damo-las, em geral, diretamente em português. (Cabe referir também que verificamos o texto de todas as citações pela obra original, no caso de autores não alemães ou franceses.)

A edição francesa, possui muitas palavras ou expressões grifadas; a edição definitiva alemã, ao contrário, não tem quase nenhuma. Nesta tradução eliminamos a maior parte dos grifados, mantendo apenas - e, aqui e além, acrescentando - apenas aqueles que sublinham ideias consideradas centrais.

A sistematização seguida é a da edição francesa, bastante diferente da alemã: a primeira está dividida em 8 seções e 35 capítulos, a segunda em 7 seções e 25 capítulos. Nas notas de fim de volume damos notícia da respectiva correspondência. Quanto à divisão do texto em parágrafos seguimos também a edição francesa, permitindo-nos, contudo, proceder, aqui e além, a algumas modificações.

Em algumas seções, largas passagens consistem em relações de fatos, transcrições de documentos (relatórios, etc.), discussões de teorias, etc., que hoje têm, em geral, apenas interesse histórico. Para não sobrecarregar a edição, essas partes vão incluídas em tipo menor que o restante texto.

Finalmente, uma explicação do sistema de notas. As notas originais vão em rodapé, numeradas por capítulo; algumas são de Engels, acrescentadas na 4ª edição alemã, e vão acompanhadas da respectiva indicação. As referências bibliográficas, hoje em geral apenas de interesse histórico, foram abreviadas. Quanto às notas dos tradutores, elas são de dois tipos. Algumas, poucas, contêm a tradução de palavras ou expressões noutras línguas; são assinaladas por asterisco (*) (…). As outras notas, em maior número, estão colocadas no final do volume, e são assinaladas no texto por números contínuos, entre parêntesis retos (v. g. [26]); estas notas são de três espécies: a maior parte delas contém indicações sobre diferente versão ou sistematização da edição alemã; outras, poucas, contêm remissões para outros locais de O Capital ou para outras obras de Marx, ou chamam a atenção para temas considerados de particular importância; finalmente, há as notas que pretendem clarificar o sentido de certas referências de Marx (históricas ou de outra natureza), que não seriam provavelmente compreendidas pelo leitor médio, tal como o figuramos, de O Capital.

Coimbra, Setembro, 1973

J. Teixeira Martins

Vital Moreira

 

PREFÁCIO DA 1ª EDIÇÃO (1867)

A obra cujo primeiro volume apresento ao público é a continuação de um trabalho publicado em 1859 sob o titulo: «Para a Crítica da Economia Política». Este longo intervalo que separa as duas publicações foi-me imposto por uma doença de vários anos.

A fim de dar a este livro um complemento que lhe é necessário, resumi no primeiro capitulo a obra que o precedeu. [1] É certo que me pareceu dever modificar neste resumo o meu primeiro plano de exposição: um grande número de pontos, ali simplesmente indicados, são aqui amplamente desenvolvidos, enquanto outros, completamente desenvolvidos antes, são apenas indicados agora. A História da Teoria do Valor e do Dinheiro, por exemplo, foi suprimida; em compensação, o leitor encontrará nas notas do primeiro capitulo novas fontes para a história dessa teoria.

Em todas as ciências o começo é árduo. O primeiro capítulo, principalmente a parte que contém a análise da mercadoria, será pois um pouco difícil de compreender. No que se refere à análise da substância do valor e à grandeza do valor, fiz todos os esforços para tornar a exposição tão clara quanto possível e acessível a todos os leitores. 1

A forma-valor realizada na forma-dinheiro é algo de muito simples. No entanto, o espírito humano tem procurado em vão, desde há mais de dois mil anos, penetrar no seu segredo, quando afinal chegou a analisar, pelo menos aproximadamente, formas muito mais complexas e portadoras de um sentido mais profundo. Porquê? Porque o corpo organizado é mais fácil de estudar do que a célula que o constitui. Por outro lado, a análise das formas econômicas não pode socorrer-se do microscópio nem de reagentes químicos; a abstração é a única forma que pode servir-lhe de instrumento. Ora, para a sociedade burguesa atual, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma-valor da mercadoria, é a forma celular econômica. Para o homem pouco culto, a análise desta forma parece perder-se em minúcias; de fato são, necessariamente, minúcias, mas apenas como as que se encontram na anatomia microscópica.

A parte o capítulo sobre a forma-valor, a leitura desta obra não apresentará dificuldades. Suponho naturalmente leitores que queiram aprender algo de novo e, consequentemente, pensar também por si próprios.

O físico, para se esclarecer acerca dos processos da natureza, ou estuda os fenômenos quando estes se apresentam sob a forma mais perfeita e menos obscurecida por influências perturbadoras, ou procede a experiências em condições que assegurem tanto quanto possível a regularidade do seu movimento. O que estudo nesta obra é o modo-de-produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhes correspondem. O lugar clássico desta produção é, até agora, a Inglaterra. Eis por que é a este país que vou buscar os fatos e os exemplos principais que servem de ilustração ao desenvolvimento das minhas teorias. Se o leitor alemão se permitisse um farisaico encolher de ombros a propósito da situação dos operários, industriais e agrícolas ingleses, ou se se embalasse na ideia otimista de que as coisas estão muito longe de ir tão mal na Alemanha, seria obrigado a gritar-lhe: De te fabula narratur! *

Não se trata aqui do grande desenvolvimento mais ou menos completo dos antagonismos sociais, que resultam das leis naturais da produção capitalistas. Trata-se sim destas leis em si mesmas, de tendências que se manifestam e realizam com uma necessidade de ferro. O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais que mostrar aos que o seguem na escala industrial a imagem do seu próprio futuro.

Mas deixemos de lado estas considerações. No nosso país, nos lugares em que a produção capitalista se implantou, por exemplo nas fábricas propriamente ditas, o estado de coisas é muito pior que na Inglaterra, porque falta o contrapeso das «leis de fábricas» inglesas. Em todas as outras esferas, aflige-nos, como em todo o ocidente da Europa continental, não só o desenvolvimento da produção capitalista, como também a falta deste desenvolvimento. Além dos males próprios da época atual, temos de suportar uma longa série de males herdados, resultantes da sobrevivência de modos-de-produção antigos, ultrapassados, com o seu cortejo de relações sociais e políticas extemporâneas. Temos de sofrer não só da parte dos vivos mas também da parte dos mortos. Le mort saisit le vif ! **

Em comparação com as estatísticas inglesas, as estatísticas sociais da Alemanha e do resto do continente europeu são realmente miseráveis. Apesar disso, levantam uma ponta do véu, o bastante para deixar entrever uma cabeça de Medusa. Ficaríamos horrorizados pelo estado de coisas entre nós se os nossos governos e os nossos parlamentos estabelecessem, como na Inglaterra, comissões de estudos periódicos sobre a situação econômica, se estas comissões fossem, como na Inglaterra, munidas de plenos poderes na procura da verdade, se conseguíssemos encontrar para esta alta missão homens tão peritos, tão imparciais, tão rígidos e desinteressados como os inspetores de fábricas da Grã-Bretanha, como os seus reporters sobre a saúde pública (Public Health), como os seus comissários de investigação sobre a exploração das mulheres e das crianças, sobre as condições de habitação e de alimentação, etc. Perseu cobria-se com uma nuvem para perseguir os monstros; nós, mergulhamos completamente na nuvem, até aos olhos e às orelhas, para podermos negar a existência de monstruosidades.

Não criemos ilusões. Tal como a guerra da Independência americana no século XVIII deu o sinal de alarme para a classe média na Europa, assim a guerra civil americana, no século XIX, deu o toque de rebate para a classe operária europeia. Na Inglaterra, a marcha da agitação social é bem visível para todos; num dado momento, esta agitação há-de ter necessariamente a sua repercussão no continente. Então revestirá formas mais ou menos brutais ou humanas, consoante o grau de desenvolvimento da classe dos trabalhadores. Independentemente de motivos mais altos, o próprio interesse ordenará então às classes dominantes que removam todos os obstáculos legais que possam impedir o desenvolvimento da classe operária. Foi em vista disso que neste volume concedi um lugar tão importante à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa sobre as grandes fábricas. Uma nação pode e deve tirar ensinamentos da história de outras nações. Mesmo quando uma sociedade chega à descoberta da pista da lei natural que preside ao seu movimento - e o fim último desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna - ela não pode ultrapassar de um salto nem abolir por decretos as fases do seu desenvolvimento natural; mas pode abreviar o período de gestação e minorar os males do seu nascimento.

Para evitar possíveis mal-entendidos, mais uma palavra. Não pintei a cor-de-rosa as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui só se trata de pessoas na medida em que elas são a personificação de categorias econômicas, suportes de determinados interesses e relações de classes. O meu ponto de vista, segundo o qual o desenvolvimento da formação econômica da sociedade é assimilável à marcha da natureza e à sua história, pode menos que qualquer outro tornar o indivíduo responsável por relações de que socialmente ele é afinal a criatura, por mais que ele se queira libertar delas.

No campo da economia política, a investigação livre e científica encontra muitos mais inimigos do que nos outros campos. A natureza particular do assunto de que trata ergue contra ela e leva para o campo de batalha as paixões mais vivas, mais mesquinhas e mais odiosas do coração humano, todas as fúrias do interesse privado. A Igreja da Inglaterra, por exemplo, perdoará muito mais facilmente um ataque a 38 dos seus 39 artigos de fé do que a 1/39 dos seus rendimentos. Comparado à crítica da velha propriedade, o próprio ateísmo é hoje uma culpa leve. Todavia, é impossível não reconhecer um certo progresso neste aspecto. Basta-me para isso remeter o leitor para o Livro Azul publicado nestas últimas semanas: Correspondence with Her Majesty's Missions Abroad, regarding Industrial Questions and Trade's Unions. Os representantes estrangeiros da coroa inglesa exprimem claramente nesta obra a opinião de que na Alemanha, na França, como em todos os estados civilizados do continente europeu, uma transformação das relações existentes entre o capital e o trabalho é tão sensível e tão inevitável como na Grã-Bretanha. Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, o Sr. Wade, vice-presidente dos Estados Unidos da América do Norte, declarava abertamente em várias reuniões públicas, que depois da abolição da escravatura a questão na ordem do dia seria a da transformação das relações do capital e da propriedade fundiária. Tudo isto são sinais dos tempos, que nem mantos de púrpura nem sotainas negras podem ocultar. Não significam, de modo algum, que amanhã vão acontecer milagres; mas mostram que mesmo nas classes sociais dominantes começa a despontar o pressentimento de que a sociedade atual, muito longe de ser um cristal sólido, é um organismo susceptível de mudança e em permanente processo de transformação.

O segundo volume desta obra tratará da circulação do capital (livro II) e das diversas formas que reveste o seu desenvolvimento (livro III). O terceiro e último volume exporá a história da teoria (livro IV). [2]

Qualquer apreciação inspirada numa crítica verdadeiramente científica, é para mim benvinda. Quanto aos preconceitos da chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, tenho por divisa, agora como sempre, as palavras do grande Florentino:

Segui il tuo corso, e lascia dir le genti! ***

Londres, 25 de Julho de 1867.

Karl Marx

* «É de ti que a fábula fala!» (Horácio, Sátiras).

** «O morto domina o vivo.»

*** «Segue o teu caminho e deixa falar o mundo!» (Dante, Divina Comédia).

1 -Isso pareceu-me tanto mais necessário quanto é certo que mesmo o escrito de F. Lassalle, contra Schulze-Delitzsch, na parte em que declara dar a «quinta-essência» das minhas ideias sobre este assunto, contém graves erros. Foi, sem dúvida, com um fim de propaganda que F. Lassalle, evitando sempre indicar a fonte, extraiu dos meus escritos, quase palavra por palavra, todas as proposições teóricas gerais dos seus trabalhos econômicos, sobre o caráter histórico do capital, por exemplo, sobre os laços que ligam as relações de produção e o modo-de-produção, etc. e até a terminologia criada por mim. Evidentemente, não tenho nada a ver com os detalhes em que ele entrou, nem com as consequências práticas a que foi conduzido e de que não tenho de ocupar-me aqui. [1a]

 

CARTA AO EDITOR FRANCÊS (1872)

Londres, 18 de Março de 1872

Ao cidadão Maurice Lachatre

Prezado cidadão,

Concordo com a sua ideia de publicar a tradução de Das Kapital em fascículos periódicos. [3] Dessa forma a obra ficará mais acessível à classe operária, e para mim esta consideração sobreleva qualquer outra.

Se esse é o lado bom da questão, não deixa, porém, de haver o reverso: o método de análise que utilizei - e que não tinha sido ainda aplicado aos assuntos econômicos - torna assaz árdua a leitura dos primeiros capítulos, sendo pois de temer que os leitores franceses, sempre impacientes por chegarem às conclusões, ávidos de conhecerem a conexão entre os princípios gerais e as questões imediatas que os apaixonam, se aborreçam da obra por não poderem passar adiante imediatamente.

Desvantagem essa contra a qual nada posso fazer, a não ser prevenir e precaver os leitores desejosos da verdade. Não existe estrada real para a ciência; só poderá alcançar os seus cumes luminosos quem não receie fatigar-se em escalar as suas veredas escarpadas.

Queira receber, prezado cidadão, o protesto da minha sincera dedicação.

Karl Marx

 

POSFÁCIO DA 2ª EDIÇÃO ALEMÃ (1873) [4]

Para começar, devo prestar ao leitor da primeira edição alguns esclarecimentos sobre as alterações feitas nesta segunda edição. A divisão mais clara do livro salta aos olhos. As notas acrescentadas vão sempre assinaladas como notas da segunda edição. No que respeita ao próprio texto, as alterações mais importantes são as seguintes:

No Capítulo I,1 faz-se com maior rigor científico a dedução do valor a partir da análise das equivalências nas quais se exprime todo o valor-de-troca; de igual modo, a conexão entre a substância do valor e a determinação da grandeza do valor pelo trabalho socialmente necessário, que na primeira edição era apenas indicada, é agora expressamente acentuada.

O Capítulo I,3 (A Forma-Valor) foi totalmente refundido, o que se tornou necessário desde logo pela dupla exposição do assunto na primeira edição. (Note-se, de passagem, que essa dupla exposição se ficou a dever ao meu amigo Dr. L. Kugelmann, de Hanover. Encontrava-me de visita em sua casa na Primavera de 1867, quando as primeiras provas chegaram de Hamburgo, tendo-me ele convencido que para a maior parte dos leitores se tornava necessária uma explicação suplementar, mais didática, da forma-valor.) A última secção do primeiro Capítulo, O fetichismo da mercadoria, foi em grande parte modificada. O Capítulo III,1 (Medida dos Valores) foi cuidadosamente revisto, dado que esta matéria tinha sido descuidadamente tratada na primeira edição, remetendo-se para a análise já contida em Para a Crítica da Economia Política (Berlim, 1859). O Capítulo VII, especialmente a parte 2, foi sensivelmente refundido.

Seria inútil pormenorizar as alterações textuais, muitas vezes apenas de estilo. Estão espalhadas por todo o livro. Contudo, agora, ao rever a tradução francesa, a publicar em Paris, noto que várias partes do original alemão exigiriam, nuns casos uma refundição integral, noutros um maior rigor estilístico bem como uma cuidadosa eliminação de algumas deficiências ocasionais. Não dispus, porém, do tempo necessário, pois só no outono de 1871 - no meio de outros trabalhos prementes - é que recebi a notícia de que o livro se esgotara e que a impressão da segunda edição haveria de começar já em Janeiro de 1872.

A compreensão que O Capital rapidamente encontrou em largos círculos da classe operária alemã é a melhor paga do meu trabalho. Um homem, situado economicamente numa perspectiva burguesa, o Sr. Mayer, fabricante de Viena, numa brochura publicada durante a guerra franco-prussiana, pôs justamente em evidência que o grande espírito teórico, considerado patrimônio hereditário dos alemães, desapareceu completamente das chamadas classes cultas da Alemanha, ressurgindo pelo contrário na sua classe operária.

A economia política, na Alemanha, tem sido, até agora, uma ciência estrangeira. Circunstâncias históricas particulares, já em grande parte denunciadas por Gustav de Gulich na sua História do comércio, da indústria, etc., impediram durante muito tempo entre nós o surto da produção capitalista e, por consequência, o desenvolvimento da sociedade moderna, da sociedade burguesa. Por isso, a economia política não foi, na Alemanha, um fruto próprio; chegou-nos já pronta da Inglaterra e da França como um artigo de importação. Os nossos professores permaneceram alunos; mais do que isso, nas suas mãos a expressão teórica de sociedades mais avançadas transformou-se numa coleção de dogmas interpretados por eles no sentido de uma sociedade atrasada, [do mundo pequeno-burguês que os rodeava] interpretados portanto ao contrário. Para dissimular a sua falsa posição, a sua falta de originalidade, a sua impotência científica, os nossos pedagogos ostentaram um verdadeiro luxo de erudição histórica e literária; ou então juntaram à sua mercadoria outros ingredientes tirados dessa salsada de conhecimentos heterogêneos que a burocracia alemã adornou com o nome de Kameralwissenschaften (ciência administrativa).

A partir de 1848, a produção capitalista enraizou-se cada vez mais na Alemanha e, hoje, já conseguiu metamorfosear este país que fora de sonhadores em país de realizadores. Mas os nossos economistas, decididamente, não têm sorte. Quando podiam fazer economia política sem dissimulação, faltava-lhes o meio social que esta pressupõe. Pelo contrário, quando esse meio surgiu, as circunstâncias que permitem o seu estudo imparcial, mesmo sem transpor o horizonte burguês, já não existiam.

Com efeito, a economia política, enquanto burguesa - isto é, enquanto vê na ordem capitalista não uma fase transitória do progresso histórico, mas antes a forma absoluta e definitiva da produção social - não pode permanecer uma ciência, enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar por fenômenos isolados.

Consideremos a Inglaterra. O período em que a luta de classes ainda aí não está desenvolvida, é também o período clássico da economia política. O seu último grande representante, Ricardo, é o primeiro economista que faz deliberadamente do antagonismo dos interesses de classe, da oposição entre salário e lucro, lucro e renda, o ponto de partida da sua investigação. Este antagonismo, que é efetivamente inseparável da própria existência das classes que compõem a sociedade burguesa, formula-o ele ingenuamente como a lei natural, imutável, da sociedade humana. Era atingir o limite, que a ciência burguesa não transporá. A crítica ergueu-se perante ela ainda em vida de Ricardo, na pessoa de Sismondi.

O período seguinte, de 1820 a 1830, distingue-se, na Inglaterra, por uma vida exuberante no domínio da economia política. É a época da elaboração da teoria ricardiana, da sua vulgarização e da sua luta contra todas as outras escolas resultantes da doutrina de Adam Smith. Pouco se sabe no continente sobre estes brilhantes torneios, pois que a polêmica ficou quase completamente dispersa em artigos de revista, em panfletos e noutros escritos de circunstância. A situação dessa época explica a ingenuidade desta polêmica, embora alguns escritores sem partido tenham já feito da teoria ricardiana uma arma ofensiva contra o capitalismo. Por um lado, a grande indústria ainda estava a sair da sua infância, pois que o início do ciclo periódico, típico da sua vida moderna, só surge com a crise de 1825. Por outro lado, a luta de classes entre o capital e o trabalho, era atirada para segundo plano: no plano político, pela luta dos governos e do feudalismo, agrupados à volta da Santa-Aliança, contra a massa popular, conduzida pela burguesia; no plano econômico, pelas disputas do capital industrial com a propriedade aristocrática da terra que, na França, se ocultavam sob o antagonismo da pequena e da grande propriedade, e que, na Inglaterra, se manifestaram abertamente após as «leis dos cereais». A literatura econômica inglesa desta época recorda o movimento de fermentação que, na França, se seguiu à morte de Quesnay, mas apenas tal como o verão de S. Martinho lembra a primavera.

É em 1830 que rebenta a crise decisiva.

Na França e na Inglaterra, a burguesia apodera-se do poder político. A partir daí, a luta de classes reveste, na teoria como na prática, formas cada vez mais declaradas, cada vez mais ameaçadoras. É ela quem dá o toque de finados da economia burguesa científica. Doravante, já se não trata de saber se tal ou tal teorema é verdadeiro, mas sim se é agradável ou desagradável, se é aprazível ou não à polícia, útil ou prejudicial para o capital.

A investigação desinteressada cede o lugar ao pugilato pago, a investigação conscienciosa à má consciência, aos miseráveis subterfúgios da apologética. No entanto, os pequenos tratados com que a Anti-corn Law League, sob os auspícios dos fabricantes Bright e Cobden, incomodou o público, ainda oferecem algum interesse, senão científico, pelo menos histórico, por causa dos seus ataques contra a aristocracia fundiária. Mas a legislação livre-cambista de Robert Peel arranca bem depressa à economia vulgar, juntamente com o seu último motivo de queixa, a sua última garra. [5] Veio a revolução continental de 1848-49. Ela repercutiu-se na Inglaterra; os homens que ainda tinham pretensões científicas e desejavam ser mais que simples sofistas e sicofantas das classes superiores procuraram então conciliar a economia política do capital com as reclamações do proletariado que já não se podiam desconhecer. Daí um ecletismo edulcorado, cujo melhor intérprete é John Stuart Mill. Isso era a declaração de falência da economia burguesa, como tão bem mostrou o grande sábio e crítico russo N. Tchernyschevski.

Assim, no momento em que na Alemanha a produção capitalista atingiu a sua maturidade, já na Inglaterra e na França as lutas de classes tinham manifestado ruidosamente o seu caráter antagônico; além disso, o proletariado alemão já estava mais ou menos impregnado de socialismo [e possuía já uma consciência teórica de classe muito mais decidida do que a burguesia alemã]. Assim, ainda mal parecia tornar-se possível entre nós uma ciência burguesa da economia política, e já esta se tinha tornado impossível. Os seus corifeus dividiram-se então em dois grupos: os espertos, ambiciosos, práticos, acorreram em massa sob a bandeira de Bastiat, o representante mais débil - e logo o mais bem sucedido - da economia apologética; os outros, muito compenetrados da dignidade professoral da sua ciência, seguiram John Stuart Mill na sua tentativa de conciliar os inconciliáveis. Tal como na época clássica da economia burguesa, os alemães permaneceram, na época da sua decadência, meros alunos, repetindo a lição, seguindo as pegadas dos mestres, pobres propagandistas ao serviço das grandes casas estrangeiras.

O desenvolvimento específico da sociedade alemã excluía, portanto, qualquer progresso original da economia burguesa, mas não da sua crítica. Na medida em que representa uma classe, tal crítica só pode representar aquela cuja missão histórica é revolucionar o modo-de-produção capitalista e, finalmente, abolir as classes - o proletariado.

Os portavozes da burguesia alemã, cultos ou não, tentaram primeiramente matar pelo silêncio O Capital, o que já tinham conseguido com os meus anteriores trabalhos. Uma vez que essa tática mostrou já não corresponder aos novos tempos, dedicaram-se a escrever, a pretexto de crítica ao meu livro, instruções «Para a tranquilização da consciência burguesa», no que, porém, encontraram adversários superiores na imprensa operária - ver, por exemplo os artigos de Joseph Dietzgen no Volkstaat- aos quais até hoje não conseguiram responder 1.

Uma excelente tradução russa de O Capital apareceu a público na Primavera de 1872 em Petersburgo. A edição de 3 000 exemplares já está quase esgotada. Já em 1871, o Sr. N. Sieber, Professor de economia política da universidade de Kiev, no seu livro A Teoria do valor e do Capital em D. Ricardo, apontara a minha teoria do valor, do dinheiro e do capital, nos seus traços fundamentais, como uma continuação necessária da teoria de Smith e Ricardo. O que neste livro sério e profundo surpreende o leitor ocidental é a coerente solidez da posição teórica pura.

O método utilizado em O Capital foi pouco compreendido, a avaliar pelas interpretações contraditórias que dele foram feitas.

Assim, a Révue positiviste de Paris censura-me ao mesmo tempo o ter feito economia política metafísica e- adivinhem o quê? -ter-me limitado a uma simples análise crítica dos elementos dados, em vez de formular receitas (comtianas?) para as panelas do futuro. Quanto à acusação de metafísica, eis o que pensa N. I. Sieber, professor de economia política na universidade de Kiev: «No que se refere à teoria propriamente dita, o método de Marx é o de toda a escola inglesa, é o método dedutivo cujas vantagens e inconvenientes são comuns aos maiores teóricos de economia política».

Por sua vez, o Sr. Maurice Block acha que o meu método é analítico, chegando a afirmar: «Por esta obra, o Sr. Marx coloca-se entre os espíritos analíticos mais eminentes» 2. Naturalmente, na Alemanha, os autores de recensões gritam por sofística hegeliana. O Mensageiro Europeu, revista russa, publicada em São Petersburgo, num artigo inteiramente consagrado ao método de O Capital, declara que o meu processo de investigação é rigorosamente realista, mas que o método, de exposição é, infelizmente, à maneira dialética alemã. «À primeira vista, -diz essa publicação - se se julgar de acordo com a forma exterior de exposição, Marx é um perfeito idealista, e isso no sentido alemão, isto é, no mau sentido da palavra, Na realidade, porém, ele é infinitamente mais realista que qualquer daqueles que o precederam no campo da economia crítica... Não se pode, de modo algum, chamar-lhe idealista».

Não poderia responder melhor ao escritor russo que por extratos da sua própria crítica, que podem, aliás, interessar o leitor. Após uma citação tirada do meu prefácio a Para a Crítica da Economia Política (Berlim, 1859, p. IV-VII), onde discuto a base materialista do meu método, o autor continua assim: «Uma só coisa preocupa Marx: encontrar a lei dos fenômenos que estuda; e não só a lei que os rege sob a sua forma acabada e na sua ligação observável durante um certo período de tempo. Não: o que lhe interessa, acima de tudo, é a lei da sua transformação, do seu desenvolvimento, isto é, a lei da sua passagem de uma forma a outra, de uma ordem de ligação a outra. Uma vez descoberta esta lei, examina detalhadamente os efeitos através dos quais ela se manifesta na vida social. ..Assim, pois, é apenas esta a preocupação de Marx: demonstrar por meio de uma investigação rigorosamente científica a necessidade de determinadas ordens de relações sociais, e, tanto quanto possível, verificar os fatos que lhe serviram de ponto de partida e de ponto de apoio. Para isso, basta que demonstre, ao mesmo tempo que a necessidade da organização atual, a necessidade de uma outra organização à qual a primeira tem inevitavelmente de passar, creia nela ou não a humanidade, tenha dela ou não consciência. Ele considera o movimento social como um encadeamento natural de fenômenos históricos, encadeamento sujeito a leis que não só são independentes da vontade, da consciência e dos desígnios do homem, mas que, pelo contrário, determinam a sua vontade, a sua consciência e os seus desígnios (...) Se o elemento consciente desempenha um papel tão secundário na história da civilização, daí resulta naturalmente que a crítica, cujo objeto é a própria civilização, não pode ter como base nenhuma forma da consciência nem qualquer fato da consciência. Não é a ideia, mas apenas o fenômeno exterior que pode servir-lhe de ponto de partida. A crítica limita-se a comparar, a confrontar um fato, não com a ideia, mas com outro fato; só exige que os dois fatos tenham sido observados tão exatamente quanto possível e que na realidade constituam um em relação ao outro duas fases de desenvolvimento diferentes; acima de tudo, exige que a série de fenômenos, a ordem na qual aparecem como fases de evolução sucessivas, sejam estudadas com não menos rigor. Mas, dir-se-á, as leis gerais da vida econômica são só umas, sempre as mesmas, quer se apliquem ao presente ou ao passado. É precisamente isto que Marx contesta; para ele estas leis abstratas não existem (...) pelo contrário, segundo ele, cada período histórico tem as suas próprias leis (...) Desde que a vida saiu de um determinado período de desenvolvimento, desde que passa de uma fase a outra, começa também a ser regida por outras leis. Em suma, a vida econômica apresenta, no seu desenvolvimento histórico, os mesmos fenômenos que se encontram noutros ramos da biologia (...) Os velhos economistas enganavam-se sobre a natureza das leis econômicas quando as comparavam às leis da física e da química (...) Uma análise mais aprofundada dos fenômenos mostrou que os organismos sociais se distinguem tanto uns dos outros como os organismos animais e vegetais (...) Mais: um único e mesmo fenômeno obedece (...) a leis absolutamente diferentes logo que a estrutura global destes organismos se altere, logo que os seus órgãos particulares variem, logo que as condições em que funcionam mudem, etc. Marx nega, por exemplo, que a lei da população seja a mesmo em todos os tempos e em todos os lugares. Afirma, pelo contrário, que cada época econômica tem a sua lei de população própria (...) que o que se passa na vida econômica depende do grau de produtividade das forças econômicas (...). Com desenvolvimentos diferentes da força produtiva, mudam as relações sociais e as leis que as regem. Situando-se nesta perspectiva para examinar a ordem econômica capitalista, Marx nada mais faz que formular, de uma maneira rigorosamente científica, a tarefa imposta a qualquer estudo exato da vida econômica... O valor científico de tal estudo está na explicação das leis específicas que regem o nascimento, a vida, o crescimento e a morte de um determinado organismo social e a sua substituição por outro superior; é esse valor que a obra de Marx possui».

Definindo o que ele chama o meu método de investigação com tanta justeza, e, no que respeita à aplicação que dele fiz, com tanta benevolência, o que definiu o autor, se não o método dialético?

Certamente, o processo de exposição deve distinguir-se formalmente do processo de investigação. Cabe à investigação apropriar-se da matéria em todos os seus pormenores, analisar as diversas formas do seu desenvolvimento e descobrir a sua relação íntima. É somente depois de concluída esta tarefa que o movimento real pode ser exposto no seu conjunto. Se se conseguir chegar a esse ponto, de tal modo que a vida da matéria se reflita na sua reprodução ideal, isso pode levar a acreditar numa construção a priori.

O meu método dialético não só difere, pela sua base, do método hegeliano, mas é exatamente o seu oposto. Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele personifica com o nome de Ideia, é o demiurgo da realidade, que não é senão a forma fenomenal da Ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transposto e traduzido no cérebro do homem.

O lado místico da dialética hegeliana critiquei-o há cerca de trinta anos, numa época em que ainda estava em moda. No entanto, precisamente na altura em que eu preparava o primeiro volume de O Capital, os epígonos impertinentes, arrogantes e medíocres que agora têm a primeira palavra na Alemanha culta, compraziam-se em tratar Hegel tal como no tempo de Lessing o bravo Moses Mendelssohn tratava Spinoza: como um «cão morto». Declarei-me então abertamente discípulo desse grande pensador, chegando mesmo, aqui e além, a jogar com os seus modos de expressão peculiares, no capítulo sobre a teoria do valor.

Mas ainda que, devido ao seu quiproquó, Hegel desfigure a dialética pelo misticismo, não deixa de ter sido ele o primeiro a expor o seu movimento de conjunto. Em Hegel ela encontra-se de cabeça para baixo; basta virá-la ao contrário para lhe encontrar uma fisionomia perfeitamente razoável, [para descobrir sob o invólucro místico o seu núcleo racional].

Na sua forma mistificada, a dialética tornou-se uma moda na Alemanha, porque parecia glorificar as coisas existentes. No seu aspecto racional ela é um escândalo e uma abominação para as classes dominantes e para os seus ideólogos doutrinários, porque na concepção positiva das coisas existentes ela inclui, ao mesmo tempo, a inteligência da sua negação fatal, da sua destruição necessária; porque, apoderando-se do próprio movimento, de que qualquer forma feita não passa de uma configuração transitória, nada se lhe pode impor; porque é essencialmente crítica e revolucionária.

O movimento contraditório da sociedade capitalista faz-se sentir ao burguês prático da maneira mais evidente pelas vicissitudes da indústria moderna através do seu ciclo periódico, e do seu ponto culminante - a crise geral. Apercebemos já o retorno dos seus pródromos. A crise aproxima-se mais uma vez. Pela universalidade do seu campo de ação e pela intensidade dos seus efeitos, vai fazer com que a dialética entre mesmo na cabeça dos trapaceiros que cresceram como cogumelos no novo Santo-Império Germano-Prussiano.

Londres, 24 de Janeiro de 1873.

Karl Marx

1 Os ilegíveis parlapatães da economia vulgar alemã censuram o estilo e o modo de exposição do meu livro. Ninguém pode julgar mais severamente do que eu as deficiências literárias de O Capital. Contudo, para proveito e alegria destes senhores e do seu público, não resisto a citar duas opiniões: uma inglesa, outra russa. A Saturday Review, perfeitamente hostil às minhas ideias, diz na sua recensão à primeira edição alemã: a exposição «confere, mesmo aos mais áridos problemas econômicos, um encanto (charm) particular»; e a Gazeta de S. Petersburgo, na sua edição de 20 de Abril de 1872, aponta, entre outras coisas, o seguinte: «A exposição, excetuadas umas poucas partes demasiado especializadas, caracteriza-se pela sua acessibilidade, clareza e, apesar do alto nível cientifico do assunto, por uma inusitada vivacidade. Neste aspecto, o autor não se assemelha (...), nem de longe, à maioria dos eruditos alemães, que (...) escrevem os seus livros numa linguagem tão obscura e tão árida que estoura a cabeça do comum dos mortais». Aos leitores da atual literatura professoral alemã-nacional-liberal, não é a cabeça que estoura, mas outra coisa completamente diferente...

2 «Les Théoriciens du socialisme en Allemagne», In Journal des économistes, Juillet-aout, 1872.

 

POSFÁCIO À EDIÇÃO FRANCESA (1875)

ADVERTÊNCIA

O Sr. J. Roy empenhou-se em apresentar uma tradução tão exata, até literal, quanto possível; cumpriu escrupulosamente a sua missão. Mas estes mesmos escrúpulos obrigaram-me a modificar a redação, a fim de a tornar mais acessível ao leitor. Estas alterações, feitas sem continuidade, pois que o livro se publicava em fascículos, foram objeto de atenção desigual, o que havia de produzir incoerências de estilo.

Uma vez empreendido esse trabalho de revisão, fui levado a aplicá-lo também no conteúdo do texto original (a segunda edição alemã), simplificando alguns tópicos, completando outros, incluindo material histórico ou estatístico adicional, acrescentando observações críticas, etc. Sejam quais forem as imperfeições literárias desta edição francesa, ela possui um valor científico independente do original e deve ser consultada mesmo pelos leitores que dominam a língua alemã.

Reproduzo a seguir as partes do posfácio da segunda edição alemã que tratam do desenvolvimento da economia política na Alemanha e do método utilizado nesta obra.

Londres, 28 de Abril de 1875.

Karl Marx

 

 

O CAPITAL

CAPITULO I - A MERCADORIA

1 - OS DOIS FATORES DA MERCADORIA: VALOR-DE-USO E VALOR-DE-TROCA OU VALOR PROPRIAMENTE DITO (SUBSTÂNCIA DO VALOR, GRANDEZA DO VALOR)

A riqueza das sociedades em que domina o modo-de-produção capitalista apresenta-se como uma «imensa acumulação de mercadorias».l A análise da mercadoria, forma elementar desta riqueza, será, por conseguinte, o ponto de partida da nossa investigação.

A mercadoria é, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. Que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza em nada altera a questão.2 Não se trata tão pouco aqui de saber como são satisfeitas essas necessidades: imediatamente, se o objeto é um meio de subsistência, [objeto de consumo] indiretamente, se é um meio de produção.

Todas as coisas úteis, como o ferro, o papel, etc., podem ser consideradas sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da quantidade. Cada uma delas é um conjunto de propriedades diversas, podendo, por conseguinte, ser útil sob diferentes aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, ao mesmo tempo, os diversos usos das coisas, isso é obra da história.3 Assim, a descoberta de medidas sociais para quantificar as coisas úteis: a diversidade destas medidas decorre, em parte, da natureza diversa dos objetos a medir, em parte, de convenção.

A utilidade de uma coisa transforma essa coisa num valor-de-uso.4 Mas esta utilidade nada tem de vago e de indeciso. Sendo determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, não existe sem ele. O próprio corpo da mercadoria, tal como o ferro, o trigo, o diamante, etc., é, consequentemente, um valor-de-uso, e não é o maior ou menor trabalho necessário ao homem para se apropriar das qualidades úteis que lhe confere esse caráter. Quando estão em causa valores-de-uso, subentende-se sempre uma quantidade determinada, como uma dúzia de relógios, um metro de tecido, uma tonelada de ferro, etc. Os valores-de-uso das mercadorias constituem o objeto de um saber particular: a ciência e a arte comerciais.5 Os valores-de-uso só se realizam pelo uso ou pelo consumo. Constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dessa riqueza. Na sociedade que nos propomos examinar, são, ao mesmo tempo, os suportes materiais do valor-de-troca.

O valor-de-troca surge, antes de tudo, como a relação quantitativa, a proporção em que valores-de-uso de espécie diferente se trocam entre si,6 relação que varia constantemente com o tempo e o lugar. O valor-de-troca parece, portanto, qualquer coisa de arbitrário e de puramente relativo; um valor-de-troca intrínseco, imanente à mercadoria, parece ser, como diz a escola, uma contradictio in adjecto (*).7

Vejamos a questão mais de perto. Uma mercadoria particular (por exemplo um alqueire de trigo) troca-se por outros artigos nas mais diversas proporções. [Portanto, o trigo tem múltiplos valores-de-troca, em vez de um só]. No entanto, o seu valor-de-troca permanece imutável, independentemente da maneira por que se exprime: em x de cera, em y de seda, em z de ouro, etc. [Uma vez que cada uma dessas coisas - x cera, y seda, z ouro - é o valor-de-troca de 1 alqueire de trigo, elas têm de ser - por sua vez - valores-de-troca permutáveis entre si e iguais]. Daqui resultam duas coisas: em primeiro lugar, os valores-de-troca válidos para uma mesma mercadoria exprimem uma igualdade; em segundo lugar, o valor-de-troca tem de ter um conteúdo distinto dessas diversas expressões.

Tomemos agora duas mercadorias, trigo e ferro, por exemplo. Qualquer que seja a sua relação de troca, ela pode ser sempre representada por uma equação em que uma dada quantidade de trigo é considerada igual a uma quantidade qualquer de ferro (por exemplo, 1 alqueire de trigo = a quilos de ferro). Que significa esta equação? Significa que em dois objetos diferentes, em 1 alqueire de trigo e em a quilos de ferro, existe algo de comum. Ambos os objetos são, portanto, iguais a um terceiro que, em si mesmo, não é nem um nem outro. Cada um deles deve, enquanto valor-de-troca, ser redutível ao terceiro, independentemente do outro.

Um exemplo extraído da geometria elementar ilustra isso claramente. Para medir e comparar as superfícies de qualquer figura retilínea, decompômo-la em triângulos. Depois reduzimos o triângulo a uma expressão completamente diferente do seu aspecto visível: ao semi-produto da base pela altura. Do mesmo modo, os valores-de-troca das mercadorias devem ser reduzidos a qualquer coisa de comum, de que representam um mais ou um menos.

Este elemento comum não pode ser uma propriedade natural qualquer - geométrica, física, química, etc. - das mercadorias. As qualidades naturais destas só são tomadas em consideração, na medida em que lhes conferem uma utilidade que as torna valores-de-uso. Mas, por outro lado, é evidente que na troca se faz abstração do valor-de-uso das mercadorias, sendo a relação de troca caracterizada precisamente por essa abstração. Na troca, um valor-de-uso vale precisamente tanto como qualquer outro, desde que se encontre na proporção adequada. Ou, como diz o velho Barbon: «Uma espécie de mercadoria é tão boa como outra, quando o seu valor-de-troca é igual; não existe nenhuma diferença, nenhuma distinção entre coisas de igual valor-de-troca».8 Como valores-de-uso, as mercadorias são, sobretudo, de qualidade diferente; como valores-de-troca só podem ser de quantidade diferente [e não contêm, portanto, um só átomo de valor-de-uso].

Ora, se abstrairmos do valor-de-uso das mercadorias, resta-lhes uma única qualidade; a de serem produto do trabalho. Então, porém, já o próprio produto do trabalho está metamorfoseado sem o sabermos. Com efeito, se abstrairmos do seu valor-de-uso, abstraímos também de todos os elementos materiais e formais que lhe conferem esse valor. Já não é, por exemplo, mesa, casa, fio, ou qualquer outro objeto útil; já não é também o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, de qualquer trabalho produtivo determinado. Juntamente com os caracteres úteis particulares dos produtos do trabalho, desaparecem o caráter útil dos trabalhos neles contidos e as diversas formas concretas que distinguem as diferentes espécies de trabalho. Apenas resta, portanto, o caráter comum desses trabalhos; todos eles são reduzidos ao mesmo trabalho humano, [trabalho humano abstrato] a um dispêndio de força humana de trabalho, independentemente da forma particular que revestiu o dispêndio dessa força.

Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Eles assemelham-se completamente uns aos outros. Todos eles têm uma mesma realidade fantástica, invisível. Metamorfoseados em sublimados idênticos, frações do mesmo trabalho indistinto, todos estes objetos manifestam apenas uma coisa: que na sua produção foi dispendida uma força de trabalho humano, que neles está acumulado trabalho humano [independentemente da forma concreta do trabalho]. Enquanto cristais dessa substância social comum, são considerados valores [valores-mercadoria].

[Na própria relação de troca das mercadorias o seu valor-de-troca aparece-nos como algo de completamente independente dos seus valores-de-uso. Ora, se abstrairmos efetivamente do valor-de-uso dos produtos do trabalho, teremos o seu valor, tal como acaba de ser determinado.] O que há de comum nas mercadorias e que se mostra na relação de troca ou no valor-de-troca é, pois, o seu valor. [Adiante voltaremos a considerar o valor-de-troca, como necessário modo de expressão ou forma de manifestação do valor. Para já, contudo, há que considerar o valor independentemente dessa forma.]

Vimos que um valor-de-uso ou um artigo qualquer só tem valor na medida em que nele está [objetivizado] materializado trabalho humano [abstrato]. Ora, como medir a grandeza do seu valor? Pela quantidade da substância «criadora de valor» nele contida, isto é, pela quantidade de trabalho. Por sua vez, a quantidade de trabalho tem por medida a sua duração, e o tempo de trabalho mede-se em unidades de tempo, tais como a hora, o dia, etc.

Poder-se-ia imaginar que, se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho gasto na sua produção, então quanto mais preguiçoso ou inábil for um homem mais valor terá a sua mercadoria, pois emprega mais tempo na sua produção. Contudo, o trabalho que constitui a substância do valor das mercadorias é trabalho igual e indistinto, um dispêndio da mesma força de trabalho. A totalidade da força de trabalho da sociedade, que se manifesta no conjunto dos valores, só releva, por conseguinte, como força única, embora se componha de inúmeras forças individuais. Cada força de trabalho individual é igual a qualquer outra, na medida em que possui o caráter de uma força social média e funciona como tal, isto é, emprega na produção de uma mercadoria apenas o tempo de trabalho necessário em média, ou o tempo de trabalho socialmente necessário.

O tempo socialmente necessário à produção das mercadorias é o tempo exigido pelo trabalho executado com um grau médio de habilidade e de intensidade e em condições normais, relativamente ao meio social dado. Depois da introdução do tear a vapor na Inglaterra, passou a ser necessário talvez apenas metade de trabalho que anteriormente era necessário para transformar em tecido uma certa quantidade de fio. O tecelão manual inglês, esse continuou a precisar do mesmo tempo que antes para executar essa transformação; mas, a partir desse momento, o produto da sua hora de trabalho individual passou a representar apenas metade de uma hora social, não criando mais que metade do valor anterior.

É, pois, somente a quantidade de trabalho ou o tempo de trabalho necessário numa dada sociedade para a produção de um artigo que determina a grandeza do seu valor.9 Cada mercadoria particular conta em geral como um exemplar médio da sua espécie.10 As mercadorias que contêm iguais quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo têm, portanto, um valor igual. O valor de uma mercadoria está para o valor de qualquer outra como o tempo de trabalho necessário à produção de uma está para o tempo de trabalho necessário à produção da outra. [«Como valores, as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho cristalizado» 10a].

A grandeza de valor de uma mercadoria permaneceria, evidentemente, constante se o tempo necessário à sua produção permanecesse constante. Contudo, este último varia com cada modificação da força produtiva ou produtividade do trabalho, que, por sua vez, depende de circunstâncias diversas: entre outras, da habilidade média dos trabalhadores, do desenvolvimento da ciência e do grau da sua aplicação tecnológica, das combinações sociais da produção, da extensão e eficácia dos meios de produção e de condições puramente naturais. A mesma quantidade de trabalho é representada, por exemplo, por oito alqueires de trigo se a estação é favorável e por quatro alqueires somente, no caso contrário. A mesma quantidade de trabalho extrai mais metal das minas ricas do que das minas pobres, etc. Os diamantes só raramente aparecem na camada superior da crosta terrestre; para encontrá-los, torna-se necessário, em média, um tempo considerável, de modo que representam muito trabalho num pequeno volume. É duvidoso que o ouro tenha alguma vez pago completamente o seu valor. Isto ainda é mais verdadeiro no caso dos diamantes. Segundo Eschwege, o produto total da exploração das minas de diamantes do Brasil, durante oitenta anos, não tinha ainda atingido em 1823 o preço do produto médio de um ano e meio das plantações de açúcar ou de café do mesmo país, embora representasse muito mais trabalho e, portanto, mais valor. Com minas mais ricas, a mesma quantidade de trabalho representaria uma maior quantidade de diamantes, cujo valor baixaria. Se se conseguisse transformar com pouco trabalho o carvão em diamante, o valor deste último desceria talvez abaixo do valor dos tijolos. Em geral: quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo necessário à produção de um artigo, menor é a massa de trabalho nele cristalizada, menor é o seu valor. Inversamente, quanto menor é a força produtiva do trabalho, maior é o tempo necessário à produção de um artigo, maior é o seu va1or. A grandeza de valor de uma mercadoria varia, pois, na razão direta da quantidade e na razão inversa da produtividade do trabalho que nela se realiza.

Conhecemos agora a substância do valor: é o trabalho. Conhecemos a medida da sua grandeza: é a duração do trabalho. [Resta analisar a sua forma, que qualifica o valor precisamente como valor-de-troca. Antes disso, porém, importa precisar as definições a que já chegamos.] [10]

Uma coisa pode ser um valor-de-uso e não ser um valor: basta que seja útil ao homem sem provir do seu trabalho. Assim acontece com o ar, prados naturais, terras virgens, etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano e não ser mercadoria. Quem, pelo seu produto, satisfaz as suas próprias necessidades, apenas cria um valor-de-uso pessoal [mas não uma mercadoria]. Para produzir mercadorias, tem não somente de produzir valores-de-uso, mas valores-de-uso para os outros, valores-de-uso sociais. [E não basta produzir para os outros. O camponês medieval produzia cereais para pagar o tributo ao senhor feudal e o dízimo à igreja. Mas nem o tributo nem o dízimo, embora produzidos para outrem, eram mercadorias. Para ser mercadoria é necessário que o produto seja transferido para outrem, que o utilize como valor-de-uso, por meio de troca. 10b] Finalmente, nenhum objeto pode ser um valor se não for uma coisa útil. Se é inútil, o trabalho que contém é gasto inutilmente [não conta como trabalho] e, portanto, não cria valor.

(*) Contradição nos termos.

2 - DUPLO CARATER DO TRABALHO REPRESENTADO NA MERCADORIA

Numa primeira aproximação, a mercadoria apareceu-nos sob um duplo aspecto: valor-de-uso e valor-de-troca. Vimos em seguida que todas as características que qualificam o trabalho enquanto produtor de valores-de-uso desaparecem quando ele se exprime no valor propriamente dito. Este duplo caráter do trabalho consubstanciado na mercadoria foi posto em relevo, pela primeira vez, por mim 11. Como a economia política gira à volta deste ponto, precisamos de analisá-lo mais detalhadamente.

Tomemos duas mercadorias, por exemplo, um casaco e 10 metros de tecido; admitindo que a primeira tinha o dobro do valor da segunda, então se 10 metros de tecido = x, o casaco = 2 x.

O casaco é um valor-de-uso que satisfaz uma necessidade particular. Resulta de um gênero particular de atividade produtiva, determinada pelo seu fim, modo de operação, objeto, meios e resultado. Ao trabalho que se manifesta na utilidade ou valor-de-uso do seu produto chamamos nós, muito simplesmente, trabalho útil. Sob este ponto de vista, ele é sempre considerado com referência à sua utilidade prática. Assim como o casaco e o tecido são duas coisas úteis diferentes, [valores-de-uso qualitativamente distintos] também o trabalho do alfaiate que faz o casaco se distingue [qualitativamente] do trabalho do tecelão que faz o tecido. Se estes objetos não fossem valores-de-uso de qualidade diferente e, portanto, produtos de trabalhos úteis de qualidade diversa, não poderiam contrapor-se como mercadorias. Não se troca um casaco por um casaco igual, um valor-de-uso pelo mesmo valor-de-uso.

Ao conjunto dos valores-de-uso de todas as espécies corresponde um conjunto de trabalhos úteis igualmente diversos, conforme o gênero, a espécie, a variedade - uma divisão social do trabalho. Esta é condição de existência da produção de mercadorias, embora reciprocamente a produção de mercadorias não seja condição de existência da divisão social do trabalho. Nas antigas comunidades da Índia, o trabalho encontra-se socialmente dividido sem que por isso os produtos se tornem mercadorias. Ou, tomando um exemplo mais familiar, em cada fábrica existe uma divisão sistemática do trabalho, mas a essa divisão não corresponde a troca, entre os trabalhadores, dos seus produtos individuais. Somente os produtos de trabalhos privados [autônomos] e independentes uns dos outros se apresentam uns perante os outros como mercadorias, reciprocamente permutáveis.

Em suma: o valor-de-uso de cada mercadoria contém um trabalho útil especial ou provém de uma atividade produtiva que responde a um fim particular. Não se podem contrapor valores-de-uso como mercadorias a não ser que contenham trabalhos úteis de diferente qualidade. Numa sociedade em que os produtos assumem em geral a forma de mercadoria, isto é, numa sociedade de produtores de mercadorias, a diferença entre os diversos gêneros de trabalho útil, executados independentemente uns dos outros como assunto particular de produtores autônomos, conduz a um sistema multi-ramificado, a uma divisão social do trabalho.

De resto, é totalmente indiferente para o casaco ser usado pelo alfaiate ou por um dos seus clientes; em ambos os casos, serve de valor-de-uso. A relação entre o casaco e o trabalho que o produz também não se altera absolutamente em nada pelo fato de a sua confecção constituir uma profissão particular, um elo da divisão social do trabalho. Desde que a necessidade de se vestir a isso o forçou, o homem confeccionou vestuário durante milhares de anos, antes que alguém se tornasse alfaiate. Mas a existência do tecido ou casaco, ou de qualquer elemento da riqueza material não fornecida pela natureza, sempre pressupôs um trabalho produtivo especial destinado a adaptar as matérias naturais às necessidades humanas. O trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, enquanto trabalho útil, é, independentemente das formas de sociedade, condição da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a natureza e o homem [isto é, da vida humana].

Os valores-de-uso tecido, casaco, etc. - isto é, os corpos das mercadorias - são combinações de dois elementos, matéria e trabalho. Se lhes retirarmos a soma total dos diversos trabalhos úteis que contêm, sempre resta um resíduo material, qualquer coisa fornecida pela natureza e que nada deve ao homem.

Ao produzir, o homem só pode agir tal como a própria natureza; quer dizer, ele apenas pode modificar as formas da matéria.12 Mais: nessa obra de simples transformação, ele é ainda constantemente coadjuvado pelas forças naturais. O trabalho não é, portanto, a única fonte dos valores-de-uso que produz, da riqueza material. Ele é o pai e a terra a mãe, como diz William Petty.

Deixemos agora a mercadoria enquanto objeto útil e voltemos ao seu valor. Segundo a nossa hipótese, o casaco vale o dobro do tecido. Todavia, trata-se apenas de uma diferença quantitativa que, de momento, não nos interessa. Note-se, pois, que se 1 casaco é igual a duas vezes 10 metros de tecido, 20 metros de tecido são iguais a 1 casaco. Enquanto valores, o casaco e o tecido são coisas da mesma substância, expressões objetivas de um trabalho idêntico. Mas a confecção dos casacos e a tecelagem são trabalhos [qualitativamente] diferentes. Existem, contudo, situações sociais em que a mesma pessoa é alternadamente alfaiate e tecelão, em que, portanto, estas duas espécies de trabalho são simples modalidades do trabalho de um mesmo indivíduo, e não funções fixas de indivíduos diferentes, tal como o casaco que o nosso alfaiate faz hoje e as calças que fará amanhã são apenas variações do mesmo trabalho individual. Um simples olhar mostra ainda que, na nossa sociedade capitalista, de acordo com as flutuações da procura de trabalho, uma dada porção de trabalho humano é fornecida ora sob a forma de confecção de vestuário, ora sob a forma de tecelagem. É possível que essas variações da forma do trabalho não possam efetuar-se sem atritos; contudo, elas são inevitáveis.

Em última análise, se abstrairmos do seu caráter útil, toda a atividade produtiva é apenas um dispêndio de força humana. A confecção do vestuário e a tecelagem, apesar da sua diferença [qualitativa], são ambas um dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos do homem e, neste sentido, trabalho humano. [Trata-se apenas de duas formas diferentes de dispender trabalho humano.]

Sem dúvida, a força humana de trabalho, que não faz mais que mudar de forma nas diversas atividades produtivas, tem de estar mais ou menos desenvolvida para poder ser dispendida sob esta ou aquela forma. Mas o valor das mercadorias representa simplesmente trabalho do homem, um dispêndio de força humana em geral. Ora, tal como na sociedade civil um general ou um banqueiro desempenham um grande papel, enquanto que ao homem vulgar cabem apenas funções secundárias 13, o mesmo se passa com o trabalho humano: é um dispêndio da força de trabalho simples que [em média] todo o homem comum, sem desenvolvimento especial, possui no seu organismo. É certo que o trabalho simples médio muda de caráter conforme as regiões e as épocas, mas numa dada sociedade é sempre determinado. O trabalho complexo (skilled labour, trabalho qualificado) é apenas trabalho simples potenciado, ou melhor, multiplicado, de modo que uma dada quantidade de trabalho complexo corresponde a uma quantidade maior de trabalho simples. A experiência mostra que esta redução se faz constantemente. Mesmo quando uma mercadoria é produto do trabalho mais complexo, o seu valor equipara-a numa proporção qualquer ao produto de um trabalho simples, representando, portanto, apenas uma quantidade determinada de trabalho simples 14. As diversas proporções segundo as quais as diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples, como sua unidade de medida, estabelecem-se na sociedade sem que os produtores disso se apercebam, parecendo-lhes portanto estabelecidas pelo costume. Daí resulta que, na análise do valor, todas as variedades de força de trabalho devem ser consideradas como força de trabalho simples. [11]

Portanto, do mesmo modo que nos valores tecido e casaco se abstrai da diferença dos seus valores-de-uso, igualmente se abstrai, no trabalho que estes valores representam, da diferença das suas formas úteis: confecção e tecelagem. E tal como os valores-de-uso tecido e casaco são combinações de atividades produtivas especiais com o fio e a fazenda, enquanto que, ao invés, os valores destas coisas são meras cristalizações de um trabalho idêntico - assim também os trabalhos contidos nesses valores relevam, não pela sua relação produtiva com o fio e a fazenda, mas apenas como um dispêndio da mesma força [de trabalho] humana. A tecelagem e a confecção criam o tecido e o casaco [como valores-de-uso] precisamente porque têm qualidades diferentes; mas [a substância de] os valores do casaco e do tecido, criam-na apenas na medida em que possuem uma qualidade comum: a qualidade de trabalho humano.

Contudo, o casaco e o tecido não são apenas valores em geral, mas valores de uma grandeza determinada; e, de acordo, com a nossa hipótese, 1 casaco vale o dobro de 10 metros de tecido. Como se explica esta diferença? A explicação está no fato de o tecido conter apenas metade do trabalho do casaco, de modo que, para a produção deste último, a força de trabalho deve ser dispendida durante o dobro do tempo exigido pela produção do primeiro.

Se, portanto, quanto ao valor-de-uso, o trabalho contido na mercadoria apenas é relevante qualitativamente, já no que se refere à grandeza do valor, ele apenas releva quantitativamente [uma vez que já foi reduzido a trabalho humano puro e simples]. No primeiro caso, trata-se de saber como se processa o trabalho e o que é que produz; no segundo, trata-se de saber a quantidade, a sua duração. Como a grandeza de valor de uma mercadoria representa apenas a quantidade de trabalho nela contido, daí resulta que todas as mercadorias, numa certa proporção, devem ter sempre valores da mesma grandeza.

Se a força produtiva, por ex., de todos os trabalhos úteis exigidos pela confecção de um casaco, permanecer constante, então a grandeza do valor dos casacos aumenta com o seu número. Se 1 casaco representa x dias de trabalho, 2 casacos representarão 2x, e assim por diante. Mas admitamos que a duração do trabalho necessário à produção de 1 casaco aumente para o dobro, ou se reduza a metade; no primeiro caso, 1 casaco passa a ter tanto valor como anteriormente 2, e no segundo, 2 casacos passam a ter apenas o valor de 1, embora em ambos os casos o casaco continue a prestar os mesmos serviços e o trabalho útil nele contido continue a ser da mesma qualidade. Mas a quantidade de trabalho gasto na sua produção, essa não permanece a mesma.

Uma quantidade maior de valores-de-uso constitui, evidentemente, uma maior riqueza material; com dois casacos podem vestir-se dois homens, com um casaco, apenas um; etc. Todavia, a um acréscimo da massa da riqueza material pode corresponder um decréscimo simultâneo do seu valor. Este movimento contraditório deriva do duplo caráter do trabalho. A eficácia de um trabalho útil, num certo espaço de tempo, depende da sua força produtiva ou produtividade [12]. Por isso, o trabalho útil torna-se uma fonte mais ou menos abundante de produtos na razão direta do aumento ou da diminuição da sua força produtiva. Pelo contrário, uma variação desta força não afeta nunca diretamente o trabalho representado no valor. Uma vez que a força produtiva pertence ao trabalho concreto e útil, já não poderá afetar o trabalho desde que se abstraia dessa forma concreta e útil. Quaisquer que sejam as variações da sua força produtiva, o mesmo trabalho, no mesmo tempo, produz sempre o mesmo valor. Porém, num mesmo espaço de tempo, o mesmo trabalho produz mais valores-de-uso se aumentar a sua força produtiva, e menos se ela diminuir. Qualquer variação da força produtiva que aumente a fecundidade do trabalho e, por conseguinte, a massa dos valores-de-uso por ele produzidos, faz também diminuir o valor dessa massa assim aumentada, se reduzir o tempo total de trabalho necessário à sua produção. E vice-versa.

Das considerações precedentes, resulta que, embora se não possa falar propriamente em duas espécies de trabalho na mercadoria, todavia o mesmo trabalho apresenta-se nela sob dois aspectos opostos, conforme se reporte ao valor-de-uso da mercadoria, como seu produto, ou ao valor dessa mercadoria, como sua pura expressão objetiva. Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio, no sentido fisiológico, de força humana, e é nesta qualidade de trabalho igual, [abstrato] que ele constitui o valor das mercadorias. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio da força humana sob esta ou aquela forma produtiva, determinada por um objetivo particular, e é nessa qualidade de trabalho concreto e útil que ele produz valores-de-uso ou utilidades. Tal como a mercadoria tem, antes de tudo, de ser uma utilidade para ser um valor, assim também o trabalho tem de ser, antes de tudo, útil, para ser considerado dispêndio de força humana, trabalho humano, no sentido abstrato do termo.15

Estão agora determinados a substância do valor e a grandeza de valor. Resta analisar a forma do valor.

3 - A FORMA DO VALOR [ou o valor-de-troca]

As mercadorias vêm ao mundo sob a forma de valores-de-uso ou de objetos-mercadorias, tais como ferro, tecido, lã, etc. É essa, precisamente, a sua forma natural [vulgar]. Todavia, só são mercadorias na medida em que se apresentam sob um duplo aspecto: como objetos de uso e como suportes de valor. Só podem, portanto, entrar em circulação [como mercadorias ou sob a forma de mercadorias], na medida em que se apresentem sob uma dupla forma: a sua forma natural e a sua forma-valor.

A realidade do valor das mercadorias distingue-se da amiga de Falstaff, a viúva Quickly, pelo fato de não sabermos onde agarrá-la [13]. Em flagrante contraste com a materialidade palpável da mercadoria, não existe um único átomo de matéria que entre no seu valor. Podemos, pois, dar voltas e mais voltas a uma certa mercadoria: enquanto objeto de valor, ela permanecerá inapreensível. No entanto, se nos recordarmos que as mercadorias só possuem valor enquanto são expressão da mesma unidade social - trabalho humano - que, portanto, o valor das mercadorias é uma realidade puramente social, torna-se evidente que essa realidade social também só se pode manifestar nas transações sociais, nas relações das mercadorias umas com as outras. De fato, partimos do valor-de-troca ou da relação de troca das mercadorias para chegar ao seu valor, aí escondido. Temos agora de voltar a essa forma de manifestação do valor.

Toda a gente sabe, mesmo quando não se sabe mais nada, que as mercadorias possuem uma particular forma-valor [comum] que contrasta da maneira mais flagrante com as suas múltiplas formas naturais - é a forma-dinheiro. Importa agora fazer o que a economia burguesa nunca tentou: fornecer a gênese da forma-dinheiro, ou seja, seguir o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, desde o seu esboço mais simples e menos aparente até essa forma-dinheiro que salta aos olhos de toda a gente. Com isso se resolve e se faz desaparecer ao mesmo tempo o enigma do dinheiro.

Em geral, a única relação entre as mercadorias é uma relação de valor, e a mais simples relação de valor é, evidentemente, a relação de uma mercadoria com outra qualquer mercadoria de espécie diferente. A relação de valor ou de troca de duas mercadorias fornece, portanto, a uma mercadoria, a expressão mais simples do seu valor.

A - Forma simples, [singular] ou acidental do valor

x da mercadoria A = y da mercadoria B, ou x da mercadoria A vale y da mercadoria B. (20 metros de tecido = l casaco, ou 20 metros de tecido valem 1 casaco).

O mistério de qualquer forma-valor esconde-se nesta forma simples. É portanto na sua análise que se encontra a dificuldade.

1. Os dois pólos da expressão do valor: a forma relativa e a forma de equivalente.

Duas mercadorias diferentes, A e B (no exemplo que escolhemos: o tecido e o casaco) desempenham aqui, evidentemente, dois papéis distintos. O tecido exprime o seu valor no casaco e este fornece a matéria dessa expressão. A primeira mercadoria desempenha um papel ativo, a segunda um papel passivo. O valor da primeira apresenta-se como valor relativo [encontra-se sob a forma relativa do valor]. A segunda mercadoria funciona como equivalente [encontra-se sob a forma de equivalente].

A forma relativa e a forma de equivalente são dois aspectos correlativos, inseparáveis, [que se condicionam mutuamente] mas ao mesmo tempo são extremos opostos, que se excluem mutuamente, isto é, pólos da mesma expressão de valor. Essas duas formas distribuem-se sempre pelas diversas mercadorias que a expressão do valor relaciona mutuamente. [Não posso, por exemplo, expressar o valor do tecido em tecido.] A equação: 20 metros de tecido = 20 metros de tecido [não é nenhuma expressão de valor], significa somente que 20 metros de tecido são precisamente a mesma coisa que 20 metros de tecido, quer dizer, não são mais que uma certa soma de um valor-de-uso: tecido. O valor do tecido só pode, portanto, exprimir-se relativamente, isto é, numa outra mercadoria. A forma-valor relativa do tecido pressupõe, portanto, que uma outra mercadoria qualquer se encontre em face dele sob forma de equivalente. Por outro lado, a mercadoria que figure como equivalente não pode encontrar-se ao mesmo tempo, sob forma-valor relativa. Não é ela que exprime o seu valor; apenas fornece a matéria para a expressão do valor da outra mercadoria.

É certo que a expressão 20 metros de tecido = 1 casaco ou 20 metros de tecido valem 1 casaco, contém a recíproca: 1 casaco = 20 metros de tecido ou 1 casaco vale 20 metros de tecido. Mas então torna-se necessário inverter a equação para exprimir relativamente o valor do casaco, e nesse caso o tecido torna-se equivalente em seu lugar. Uma mesma mercadoria não pode, portanto, revestir simultaneamente estas duas formas na mesma expressão de valor. Estas duas formas excluem-se como dois pólos.

[Ora, a questão de saber se uma mercadoria se encontra sob a forma-valor relativa ou sob a forma oposta, a forma-equivalente, depende exclusivamente da sua posição em cada caso na expressão do valor: se é a mercadoria cujo valor se exprime, ou antes a mercadoria na qual se exprime o valor.]

2. A forma relativa do valor.

a) Conteúdo desta forma - Para descobrir como a expressão simples do valor de uma mercadoria está contida na relação de valor de duas mercadorias, é preciso primeiramente examiná-la, abstraindo [completamente] do seu lado quantitativo. Em geral faz-se o contrário, considerando na relação de valor exclusivamente a proporção em que se equivalem quantidades determinadas de duas espécies de mercadorias. Esquece-se que coisas diferentes só podem ser comparadas quantitativamente depois de reduzidas à mesma unidade. Somente então têm o mesmo denominador e se tornam grandezas comensuráveis.16

Que 20 metros de tecido = 1 casaco, ou = 20 casacos, ou = x casacos, - isto é, que uma dada quantidade de tecido valha mais ou menos casacos - qualquer dessas proporções implica sempre que o casaco e o tecido, como grandezas de valor, são expressões da mesma unidade [coisas da mesma natureza]. Tecido = casaco, eis o fundamento da equação.

Mas as duas mercadorias, assim equiparadas na sua qualidade e na sua essência, não desempenham o mesmo papel. Só o valor do tecido é que se encontra aí expresso. E como? Relacionando-o com uma mercadoria de espécie diferente, o casaco, como seu equivalente, isto é, algo que pode substituí-lo ou é permutável com ele. É desde logo evidente que nesta relação o casaco aparece exclusivamente como forma de existência do valor, [como coisa-valor] pois [só nessa qualidade é que ele é o mesmo que o tecido] só exprimindo valor é que ele pode figurar como valor em face de uma outra mercadoria. Por outro lado, a própria propriedade de valor do tecido revela-se aqui ou adquire aqui uma expressão distinta. Com efeito, poderia o valor do casaco ser posto em equação com o tecido ou servir-lhe de equivalente, se o tecido não fosse também valor?

Podemos ir buscar uma analogia à química. O ácido butírico e o formiato de propileno são dois corpos diferentes, não só na aparência como também nas qualidades físicas e químicas. Contudo, são compostos pelos mesmos elementos: carbono, hidrogênio e oxigênio. Além disso, contêm-nos na mesma proporção: C4H8O2. Se agora equacionássemos o formiato de propileno com o ácido butírico ou se o constituíssemos, em seu equivalente, o formiato de propileno figuraria nesta relação apenas como forma de existência de C4H8O2, ou seja, da substância que é comum a si e ao ácido. Uma equação em que o formiato de propileno desempenhasse o papel de equivalente do ácido butírico seria, portanto, uma maneira um tanto canhestra de expressar a substância do ácido como qualquer coisa completamente distinta da sua forma corpórea.

Se dizemos: enquanto valores todas as mercadorias são apenas trabalho humano cristalizado, então estamos a reduzi-las a uma abstração - valor - mas elas continuam a possuir apenas uma forma, a sua forma natural de objetos úteis. [Não lhes damos portanto uma forma-valor distinta das suas formas naturais.] Coisa completamente diversa se passa quando se põe uma mercadoria em relação de valor com uma outra. Nesse caso, o seu caráter de valor sobressai, afirmando-se como propriedade inerente que determina a sua relação com a outra mercadoria.

Ao considerar-se o casaco como equivalente do tecido, considera-se o trabalho contido no casaco idêntico ao trabalho contido no tecido. É certo que a confecção do casaco se distingue da tecelagem. Mas a sua equiparação à tecelagem recondu-la àquilo que ambas têm de realmente comum, ao seu caráter de trabalho humano. É uma maneira indireta de dizer que a tecelagem, na medida em que tece valor, em nada se distingue da confecção de vestuário, isto é, é trabalho humano abstrato. Esta equiparação exprime, portanto, o caráter específico do trabalho que constitui o valor do tecido. [Somente a expressão de equivalência de mercadorias distintas põe em relevo o caráter específico do trabalho que cria valor, dado que ela reduz os diferentes trabalhos incorporados nas diversas mercadorias àquilo que têm efetivamente de comum: trabalho humano em geral. 16a]

Todavia, não basta exprimir o caráter específico do trabalho que constitui o valor do tecido. A força de trabalho humano em ação, ou o trabalho humano, cria o valor, mas não é valor. Só se torna valor quando cristalizado sob a forma de objeto. Deste modo, as condições que é necessário preencher para exprimir o valor do tecido parecem contradizer-se. Por um lado, é preciso representá-lo como uma pura condensação de trabalho humano abstrato, pois que, enquanto valor, a mercadoria não tem outra realidade. Ao mesmo tempo, esta condensação deve revestir a forma de um objeto claramente distinto do próprio tecido mas que, ao mesmo tempo, seja comum a ele e às outras mercadorias. Este problema já está, porém, resolvido.

Vimos, com efeito, que a partir do momento em que é considerado como equivalente do tecido, o casaco deixa de ter necessidade de etiqueta para afirmar o seu caráter de valor. Nessa função, a sua própria forma de existência é uma forma de existência do valor [16]. No entanto, o casaco, o corpo da mercadoria casaco, é apenas um simples valor-de-uso; tal como a primeira peça de tecido, tão pouco o casaco exprime valor. Isto prova, simplesmente, que ele significa mais na relação de valor do tecido do que fora dela; tal como tantas pessoas que são mais importantes dentro de um casaco agaloado do que fora dele.

Na produção do casaco, foi realmente dispendida força [de trabalho] humana, sob uma forma particular: nele está acumulado, portanto, trabalho humano. Sob este ponto de vista, o casaco é suporte de valor, embora não deixe perceber esta sua qualidade através da transparência dos seus fios, por mais gasto que esteja. E na relação de valor do tecido, ele não significa outra coisa [valor corporizado, encarnação do valor]. Apesar do seu exterior tão bem abotoado, o tecido reconheceu nele uma alma gêmea cheia de valor. É o lado platônico da questão. Na realidade, o casaco não pode, de modo algum, representar valor, nas suas relações com o tecido, sem que ao mesmo tempo o valor tome a figura de um casaco. Da mesma maneira, o indivíduo A não poderá apresentar-se perante o indivíduo B como majestade, sem que a majestade revista imediatamente aos olhos de B a figura física de A; provavelmente é por isso que essa figura muda de cara, de cabelos e de muitas coisas, com cada novo pai-do-povo.

Na relação na qual o casaco é o equivalente do tecido, a forma casaco surge, portanto, como forma-valor do tecido, ou exprime o valor do tecido no valor-de-uso do casaco. Enquanto valor-de-uso, o tecido é um objeto sensivelmente diferente do casaco; enquanto valor, é uma coisa igual ao casaco e tem o seu aspecto, como o prova claramente a equivalência do casaco com ele. [Assim o tecido adquire uma forma-valor distinta da sua forma natural.] A sua propriedade de valor manifesta-se na sua igualdade com o casaco, tal como a natureza de carneiro do cristão na sua semelhança com o cordeiro de Deus.

Como se vê, tudo o que a análise do valor anteriormente nos havia revelado, di-lo o próprio tecido, ao entrar em contato com uma outra mercadoria, o casaco. Somente que ele só trai os seus pensamentos na linguagem que lhe é familiar, a linguagem das mercadorias. Para revelar que o seu valor provém do trabalho, na sua qualidade abstrata de trabalho humano, ele diz que o casaco, na medida em que vale tanto como ele, isto é, enquanto valor, se compõe do mesmo trabalho que o produziu a si próprio. Para revelar que a sua realidade etérea como valor é distinta da sua tessitura material, ele diz que o valor tem a figura de um casaco e que, por isso, ele próprio, como coisa valiosa, se parece com o casaco, como um ovo com outro. Notemos de passagem, que a linguagem das mercadorias possui, além do hebraico, muitos outros dialetos mais ou menos corretos. A palavra alemã Wertsein, por exemplo, exprime menos nitidamente do que os verbos românicos valere, valoir e valer, que a equiparação da mercadoria B com a mercadoria A é precisamente a expressão do valor de A. Paris vaut bien une messe.[17]

Em virtude da relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se a forma-valor da mercadoria A, ou melhor, o corpo de B torna-se no espelho do valor de A.17 O valor da mercadoria A, assim expresso no valor-de-uso da mercadoria B, adquire a forma-valor relativa.

b) Determinação quantitativa da forma-valor relativa - Qualquer mercadoria, cujo valor haja de ser expresso, é uma certa quantidade de uma coisa útil (por exemplo, quinze alqueires de trigo, cem libras de café, etc.), que contém uma quantidade determinada de trabalho. A forma-valor tem de exprimir, portanto, não somente valor em geral, mas um valor de uma certa grandeza. Na relação de valor da mercadoria A com a mercadoria B, a mercadoria B é equiparada a A não somente sob o ponto de vista da qualidade, mas ainda sob o ponto de vista da quantidade: uma certa quantidade de B equivale a uma certa quantidade de A.

A equação 20 metros de tecido = 1 casaco, ou 20 metros de tecido valem 1 casaco, pressupõe que as duas mercadorias [contêm a mesma substância de valor] custam ambas o mesmo trabalho ou se produzem no mesmo tempo; mas esse tempo de trabalho necessário à sua produção varia com cada variação da força produtiva do trabalho que as produz. Vejamos agora a influência destas variações sobre a expressão relativa da grandeza de valor.

I - O valor do tecido varia enquanto que o valor do casaco permanece constante.18 Se duplicar o tempo de trabalho necessário à produção do tecido, em consequência, por hipótese, de um menor rendimento do solo que produz o linho, nesse caso duplica o seu valor. Em vez de 20 metros de tecido = 1 casaco, teríamos: 20 metros de tecido = 2 casacos, uma vez que 1 casaco contém agora apenas metade do tempo de trabalho contido em 20 metros de tecido. Se, pelo contrário, o tempo necessário à produção do tecido diminuir para metade, em consequência, por hipótese, de um aperfeiçoamento dos teares, nesse caso o seu valor diminui na mesma proporção. Então teríamos: 20 metros de tecido = 1/2 casaco. Por conseguinte, o valor relativo da mercadoria A, ou seja, o seu valor expresso na mercadoria B, sobe ou desce, na razão direta da variação do valor da mercadoria A, se o valor da mercadoria B permanecer constante.

II - O valor do tecido permanece constante, variando o valor do casaco. Se o tempo de trabalho necessário à produção do casaco duplica, em consequência, por hipótese, de uma baixa na produção da lã, em vez de 20 metros de tecido = 1 casaco, teremos agora: 20 metros de tecido = 1/2 casaco. Se, pelo contrário, o valor do casaco se reduz a metade, então teremos: 20 metros de tecido = 2 casacos. Permanecendo constante o valor da mercadoria A, o seu valor relativo, expresso na mercadoria B, sobe ou desce na razão inversa das variações de valor de B.

Se compararmos os diversos casos compreendidos em I e II, constata-se que a mesma mudança de grandeza do valor relativo pode resultar de causas completamente opostas. Assim, a equação 20 metros de tecido= 1 casaco transforma-se em 20 metros de tecido = 2 casacos, quer porque o valor do tecido duplicou, quer porque o valor dos casacos se reduziu a metade; e transforma-se em 20 metros de tecido = 1/2 casaco, quer porque o valor do tecido se reduziu a metade, quer porque o valor do casaco duplicou.

III - As quantidades de trabalho necessárias à produção do tecido e do casaco variam simultaneamente, no mesmo sentido e na mesma proporção. Neste caso, permanece a equação 20 metros de tecido = 1 casaco, quaisquer que sejam as suas variações de valor. Descobrem-se estas variações por comparação com uma terceira mercadoria cujo valor permaneça constante. Se os valores de todas as mercadorias aumentassem ou diminuíssem e na mesma proporção, os seus valores relativos não sofreriam qualquer variação. A sua mudança real de valor reconhecer-se-ia pelo fato de, num mesmo tempo de trabalho, se produzir em geral uma quantidade de mercadorias maior ou menor que anteriormente.

IV - Os tempos de trabalho necessários à produção do tecido e do casaco, assim como os seus valores, podem variar simultaneamente e no mesmo sentido, mas numa proporção diferente, ou num sentido oposto, etc. A influência de todas as possíveis combinações deste gênero sobre o valor relativo de uma mercadoria calcula-se facilmente recorrendo aos casos I, II e III.

Como se vê, mudanças reais na grandeza do valor não se refletem nem claramente nem completamente na sua expressão relativa [ou na grandeza do valor relativo]. O valor relativo de uma mercadoria pode variar, embora o seu valor permaneça constante; pode permanecer constante, embora o seu valor varie; e, finalmente, podem verificar-se variações simultâneas da grandeza de valor e da sua expressão relativa sem que, exista correspondência entre elas.19

3. A forma de equivalente e suas particularidades

Já vimos que, ao mesmo tempo que uma mercadoria A (o tecido) exprime o seu valor no valor-de-uso de uma mercadoria diferente, B (o casaco), ela imprime a esta última uma forma-valor particular, a de equivalente. O tecido manifesta o seu próprio caráter de valor mediante a sua equiparação com uma outra mercadoria, o casaco, tal qual existe na sua forma natural [isto é, sem adquirir uma forma-valor distinta da sua forma corpórea]. Ele expressa, portanto, o seu próprio caráter de valor no fato de uma outra mercadoria, o casaco, ser imediatamente permutável com ele.

Enquanto valores, todas as mercadorias são expressão igual de uma mesma unidade, o trabalho humano, substituíveis umas pelas outras. Uma mercadoria é, por conseguinte, permutável por uma outra mercadoria, desde que possua uma forma que a faça aparecer como valor.

Uma mercadoria é imediatamente permutável por qualquer outra de que seja equivalente, isto é, o lugar que ocupa na relação de valor faz da sua forma natural a forma-valor da outra mercadoria. Não precisa revestir uma forma diferente da sua forma natural para se manifestar como valor à outra mercadoria, para valer como tal e, portanto, para ser permutável com ela. A forma de equivalente de uma mercadoria é, portanto, a forma sob a qual ela é imediatamente permutável com uma outra.

Quando uma mercadoria, casacos por exemplo, serve de equivalente a uma outra mercadoria, tal como o tecido, adquirindo assim a propriedade característica de ser imediatamente permutável com ela, não fica com isso de modo algum determinada a proporção em que esta troca se pode efetuar. Sendo dada a grandeza do valor do tecido, a proporção dependerá da grandeza do valor dos casacos. Quer o casaco figure como equivalente na relação de valor e o tecido como valor relativo, quer se verifique a inversa, a proporção em que se faz a troca permanece a mesma. A grandeza de valor respectiva das duas mercadorias, medida pela duração comparativa do trabalho necessário à sua produção, é, portanto, uma determinação completamente independente da forma-valor.

A mercadoria cujo valor se encontra sob a forma relativa é sempre expressa como grandeza de valor, enquanto que, pelo contrário, o mesmo nunca se passa com o equivalente, que figura sempre na equação como simples quantidade de uma coisa útil. Quarenta metros de tecido, por exemplo, valem o quê? Dois casacos. Desempenhando aqui a mercadoria casaco o papel de equivalente, fornecendo o seu valor-de-uso um corpo ao valor do tecido, basta uma certa quantidade de casacos para exprimir uma determinada quantidade de valor de tecido. Portanto, 2 casacos podem exprimir a grandeza de valor de 40 metros de tecido, mas jamais podem exprimir a sua própria grandeza de valor. A observação superficial deste fato - que na equação do valor, o equivalente figura sempre como simples quantidade de um objeto útil - induziu em erro S. Bailey, bem como muitos economistas antes e depois dele: consideram na expressão do valor apenas uma relação quantitativa. Ora, sob a forma de equivalente, uma mercadoria figura como simples quantidade de uma matéria qualquer, precisamente porque a quantidade do seu valor não é expressa.

As contradições contidas na forma de equivalente exigem agora um exame mais aprofundado das suas particularidades.

Primeira particularidade da forma de equivalente: O valor-de-uso torna-se a forma de manifestação do seu contrário, o valor.

A forma natural das mercadorias torna-se a sua forma-valor. Note-se, porém, que este qui pro quo só ocorre com uma mercadoria B (casaco, trigo, ferro, etc.) nos limites da relação de valor que com ela estabelece uma outra mercadoria A (tecido, etc.), e somente nesses limites. Isoladamente considerado, o casaco, por exemplo, é apenas um objeto útil, um valor-de-uso, exatamente como o tecido; a sua forma é apenas a forma natural de um gênero particular de mercadoria. Mas como nenhuma mercadoria se pode relacionar consigo mesma como equivalente, não podendo portanto fazer da sua forma natural a expressão do seu próprio valor, ela tem necessariamente de tomar como equivalente uma outra mercadoria, cujo valor-de-uso lhe serve, assim, de forma-valor [ou fazer da forma natural de uma outra mercadoria a sua própria forma-valor].

Podemos ilustrar isto recorrendo ao exemplo de uma medida aplicável às mercadorias na sua qualidade material, isto é, enquanto valores-de-uso. Um pão-de-açúcar, sendo um corpo, é pesado, mas é impossível ver ou sentir o seu peso. Tomemos agora diversos pedaços de ferro de peso pré-determinado. Considerada em si mesma, a forma material do ferro é tão pouco uma forma de manifestação do peso como a do pão-de-açúcar. Todavia, para expressar que este último é pesado, colocamo-lo numa relação de peso com o ferro. Nesta relação o ferro é considerado como um corpo que apenas representa peso. As quantidades de ferro usadas para medir o peso do açúcar representam, portanto, em face da matéria açúcar, uma simples forma, a forma sob a qual o peso se manifesta. O ferro só pode desempenhar este papel na medida em que o açúcar, ou qualquer outro corpo, cujo peso se quer achar, é posto em relação com ele sob este ponto de vista. Se os dois objetos não fossem pesados, não seria possível entre eles nenhuma relação desta espécie, não podendo, de modo algum, um deles servir de expressão ao peso do outro. Se os pusermos a ambos numa balança veremos que, como peso, são efetivamente a mesma coisa, tendo portanto, numa determinada proporção, o mesmo peso. Tal como o matéria ferro, como medida de peso, representa em face de um pão-de-açúcar apenas peso, assim também na nossa expressão de valor, a matéria casaco representa, em face do tecido, apenas valor.

Cessa aqui, porém, a analogia. O ferro, na expressão de peso do pão-de-açúcar, representa uma propriedade natural comum às duas matérias - o seu peso - enquanto o casaco, na expressão de valor do tecido, representa uma propriedade sobrenatural dos dois objetos - o seu valor, algo de puramente social.

Dado que a forma-valor relativa exprime o caráter de valor de uma mercadoria, do pano por exemplo, como qualquer coisa de completamente diferente do seu próprio corpo, e das suas propriedades, como qualquer coisa de parecido com um casaco, por exemplo, esta expressão deixa entender que nela se esconde uma relação social.

O inverso se passa com a forma de equivalente. Ela consiste precisamente em que um objeto material, um casaco por exemplo, uma mercadoria tal como se apresenta em concreto exprime valor e, por conseguinte, possui naturalmente forma de valor. É certo que isto só é verdadeiro [dentro da relação de valor] na medida em que uma mercadoria, como o tecido, se relaciona com ele como equivalente.20 Mas, tal como as propriedades materiais de uma coisa não têm a sua origem nas suas relações exteriores com outras coisas, antes, se limitam a confirmarem-se nelas, assim também o casaco parece retirar da natureza e não da relação de valor com o tecido a sua forma de equivalente, a sua propriedade de ser imediatamente permutável, tal como acontece com a sua propriedade de ser pesado ou de reter calor. Daí o aspecto enigmático da forma de equivalente, aspecto que só fere a atenção deformada do economista burguês quando esta forma se lhe apresenta já acabada, como dinheiro. Para dissipar este caráter místico da prata e do ouro, procura então substituí-las sorrateiramente por mercadorias menos brilhantes; faz e refaz com um prazer sempre renovado o catálogo de todos os artigos que a seu tempo desempenharam o papel de equivalente. Ele não se apercebe que a expressão mais simples do valor, como 20 metros de pano valem 1 casaco, contém já o enigma, e que é sob esta forma simples que deve procurar resolvê-lo.

Segunda particularidade da forma de equivalente: O trabalho concreto torna-se a forma de manifestação do seu contrário, o trabalho humano abstrato.

Na expressão de valor de uma mercadoria, o corpo do equivalente figura sempre como materialização do trabalho humano abstrato, e é sempre o produto de um trabalho particular, concreto e útil. Este trabalho concreto serve aqui, portanto, apenas para exprimir trabalho abstrato. Um casaco, por exemplo, é uma simples realização do trabalho abstrato, a atividade do alfaiate que o produz é também apenas uma simples forma de realização do trabalho abstrato. Quando se exprime o valor do tecido no casaco, a utilidade do trabalho do alfaiate não consiste no fato de ele fazer casacos - e segundo o ditado, monges - mas no fato de produzir um corpo, cujo valor transparece, cristalização de um trabalho que em nada se distingue do trabalho realizado no valor do tecido. Para poder incorporar-se num tal espelho de valor é preciso que o próprio trabalho do alfaiate nada mais reflita do que a sua propriedade [abstrata] de ser trabalho humano.

As duas formas de atividade produtiva, tecelagem e confecção de vestuário, exigem um dispêndio de força de trabalho humano. Ambas possuem, portanto, a propriedade comum de serem trabalho humano, e em certos casos, como, por exemplo, quando se trata da produção de valor, só devem ser consideradas sob este ponto de vista. Não existe nisso nada de misterioso; mas na expressão de valor das mercadorias, a questão é invertida. Por exemplo, para se exprimir que a tecelagem, não enquanto tal, [como trabalho concreto] mas na sua propriedade geral de trabalho humano, cria o valor do tecido, contrapõe-se-lhe um outro trabalho [concreto], o que produz o casaco, o equivalente do tecido, como a forma palpável na qual se materializa o trabalho humano [abstrato]. O trabalho do alfaiate é, assim, metamorfoseado em simples expressão da sua própria propriedade abstrata.

Terceira particularidade da forma de equivalente: O trabalho concreto que produz o equivalente (no nosso exemplo, o do alfaiate), servindo simplesmente de expressão ao trabalho humano indistinto, toma a forma da igualdade com um outro trabalho (o que está contido no tecido), tornando-se assim, embora seja trabalho privado como qualquer outro trabalho produtivo de mercadorias, trabalho em forma diretamente social. É precisamente por isso que ele se representa num produto que é imediatamente permutável com outra mercadoria. [Eis portanto uma terceira particularidade da forma-equivalente: o trabalho privado toma a forma do seu contrário, a forma de trabalho diretamente social.]

As duas particularidades da forma-equivalente examinadas em último lugar tornam-se ainda mais fáceis de compreender se nos reportarmos ao grande pensador que pela primeira vez analisou a forma-valor, bem como tantas outras formas, quer do pensamento, quer da sociedade, quer da natureza: Aristóteles.

Em primeiro lugar, Aristóteles afirma claramente que a forma-dinheiro da mercadoria é apenas o aspecto desenvolvido da forma-valor simples, ou seja, da expressão de valor de uma mercadoria numa outra mercadoria qualquer; com efeito ele diz: «5 leitos = 1 casa» «não difere» de: «5 leitos = um tanto dinheiro».

Além disso, ele apercebe-se de que a relação de valor que contém esta expressão de valor pressupõe, pelo seu lado, que a casa é considerada qualitativamente igual à cama, e que estes objetos, materialmente diferentes, não se poderiam comparar entre si como grandezas comensuráveis sem aquela igualdade de essência. «A troca - diz -não pode ter lugar sem a igualdade, nem a igualdade sem a comensurabilidade». Mas, neste ponto, ele hesita e renuncia à análise da forma-valor. «Na verdade – acrescenta - é impossível que coisas tão diferentes sejam comensuráveis entre si», isto é, qualitativamente iguais. A afirmação da sua igualdade será necessariamente contrária à natureza das coisas; «é somente um expediente para atender às necessidades práticas».

Deste modo, é o próprio Aristóteles que nos diz qual é o obstáculo à prossecução da sua análise: a falta de conceito de valor. Qual é essa essência igual, isto é, a substância comum que a casa representa em face do leito, na expressão do valor deste último? Uma tal coisa, diz Aristóteles, «não pode, na verdade, existir». Porquê? A casa representa em face do leito qualquer coisa de igual, desde que represente o que existe de realmente igual em ambos. O quê, portanto? O trabalho humano.

O que impedia Aristóteles de deduzir da forma-valor das mercadorias que todos os trabalhos são aí expressos como trabalho humano indistinto e, por conseguinte, iguais, é o fato de a sociedade grega repousar então sobre o trabalho dos escravos - tendo por base natural a desigualdade dos homens e das suas forças de trabalho. O segredo da expressão do valor - a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, porque e na medida em que são trabalho humano [em geral] - só pode ser decifrado quando a ideia da igualdade humana adquiriu já a firmeza de uma convicção popular. Mas isso só tem lugar numa sociedade em que a forma mercadoria se tornou a forma geral dos produtos do trabalho, onde, por conseguinte, a relação dos homens entre si como produtores e permutadores de mercadorias é a relação social dominante. O que mostra o gênio de Aristóteles, é o fato de ele ter descoberto na expressão do valor das mercadorias uma relação de igualdade. Somente a situação histórica particular da sociedade em que vivia o impediu de descobrir em que é que consiste «na realidade» essa relação de igualdade [18] .

4. A forma-valor simples, no seu conjunto.

A forma-valor simples de uma mercadoria está contida na sua relação de valor ou de troca com uma outra qualquer mercadoria de espécie diferente. O valor da mercadoria A é expresso qualitativamente pela propriedade que tem a mercadoria B de ser imediatamente permutável por A. É expresso quantitativamente pela permutabilidade de uma quantidade determinada de B pela quantidade dada de A. Por outras palavras, o valor de uma mercadoria exprime-se autonomamente através da sua representação como valor-de-troca. Portanto, se no princípio deste capítulo dissemos - usando a terminologia corrente - que a mercadoria é valor-de-uso e valor-de-troca, contudo, para falar com rigor, isso é falso. A mercadoria é valor-de-uso ou objeto de utilidade e valor. Ela revela-se sob esse duplo aspecto - aquilo que ela é realmente - quando o seu valor possui uma forma fenomenal própria, distinta da sua forma natural, a forma de valor-de-troca; e esta forma não a possui quando considerada isoladamente [mas apenas na relação de valor ou de troca com uma outra mercadoria diferente]. Esclarecido isto, a terminologia que acima utilizamos deixa de ser equívoca, servindo antes para abreviar a exposição.

Ressalta da nossa análise que é da natureza do valor das mercadorias que deriva a sua forma-valor [ou a sua expressão de valor], e não o contrário: que o seu valor e a sua grandeza do valor derivam da sua expressão como valor-de-troca. Contudo, é essa precisamente a ilusão dos mercantilistas e dos seus modernos epígonos, os Ferrier, os Ganilh, etc. 21, bem como dos seus antípodas, os modernos caixeiros-viajantes do livre-cambismo, tais como Bastiat e seus consortes. Os mercantilistas põem em relevo sobretudo o aspecto qualitativo da expressão de valor, consequentemente a forma-equivalente da mercadoria, que possui no dinheiro a sua forma acabada; ao contrário, os modernos paladinos do livre-cambismo, tendo de desembaraçar-se a todo o custo da sua mercadoria, fazem ressaltar o aspecto quantitativo da forma-valor relativa. Para eles não existe, pois, nem valor, nem grandeza de valor fora da sua expressão na relação de troca, isto é, praticamente só existem nas cotações diárias dos preços. O escocês MacLeod, que se impôs a tarefa de adornar, com a maior erudição possível, a trapalhada de preconceitos econômicos da Lombardstreet - a rua dos grandes banqueiros de Londres - constitui a síntese acabada dos mercantilistas supersticiosos e dos espíritos iluminados do livre-cambismo.

Um exame atento da expressão do valor de A em B mostrou que nessa relação a forma natural da mercadoria A figura apenas como valor-de-uso, e a forma material da mercadoria B apenas como forma-valor. A contradição interna entre o valor-de-uso e o valor, contida na mercadoria, mostra-se, portanto, [numa contradição externa, isto é] na relação de duas mercadorias, relação em que A, cujo valor se pretende exprimir, figura imediatamente apenas como valor-de-uso, enquanto que, pelo contrário, B, na qual o valor é expresso, figura imediatamente apenas como valor-de-troca. A forma-valor simples de uma mercadoria é, portanto, a simples forma de manifestação da contradição nela contida, entre valor-de-uso e valor.

O produto do trabalho é, qualquer que seja a forma social, valor-de-uso ou objeto útil; mas somente numa época determinada do desenvolvimento histórico da sociedade, em que o trabalho gasto na produção de objetos úteis reveste o caráter de uma qualidade inerente [objetiva] dessas coisas, o caráter de seu valor - só nessa época é que o produto do trabalho se transforma geralmente em mercadoria.

O produto do trabalho adquire a forma-mercadoria quando o seu valor adquire a forma de valor-de-troca, oposta à sua forma natural; quando, portanto, ele é representado como a unidade em que se funda esta contradição. Daqui resulta que a forma simples assumida pelo valor da mercadoria é também a forma elementar sob a qual o produto do trabalho se apresenta como mercadoria; e que, portanto, o desenvolvimento da forma-mercadoria coincide com o desenvolvimento da forma-valor.

É evidente a insuficiência da forma-valor simples, forma embrionária que terá de sofrer uma série de metamorfoses para chegar à forma-preço.

Com efeito, a forma simples apenas distingue entre o valor e o valor-de-uso de uma mercadoria, pondo-a em relação de troca com uma só espécie de mercadoria, diferente dela, em vez de representar a sua igualdade qualitativa e a sua proporcionalidade quantitativa com todas as outras mercadorias. Quando o valor de uma mercadoria é expresso nesta forma [relativa] simples, uma outra mercadoria reveste, por sua vez, a forma de equivalente simples. Assim, por exemplo, na expressão do valor relativo do tecido, o casaco apenas possui a forma-equivalente - forma que indica que ele é imediatamente permutável - em relação a uma só mercadoria, o tecido.

Contudo, a forma-valor simples [singular] converte-se por si mesma numa forma mais completa. É certo que ela apenas exprime o valor de uma mercadoria A em uma só espécie de mercadoria diferente dela. Mas a espécie desta segunda mercadoria é absolutamente indiferente: casaco, ferro, trigo, etc. As expressões do valor de uma mesma mercadoria tornam-se, portanto, tão variadas quantas as suas relações de valor com outras mercadorias.21a [ O número das suas possíveis expressões do valor é limitado apenas pelo número das espécies de mercadorias diferentes dela.] A expressão isolada do seu valor transforma-se, assim, numa série de expressões simples que se pode prolongar livremente.

B - Forma-valor total ou desenvolvida

z da mercadoria A = u da mercadoria B, ou = v da mercadoria C ou = x da mercadoria E, etc.

(20 metros de tecido = 1 casaco, ou = 10 libras de chá, ou = 40 libras de café, ou = 2 onças de ouro, ou = 1/2 tonelada de ferro, etc.)

1. A forma desenvolvida do valor relativo

O valor de uma mercadoria (por exemplo, o tecido) encontra-se agora representado em inúmeros outros elementos [do mundo das mercadorias]. A matéria de qualquer outra mercadoria torna-se o espelho do valor do tecido.22 [Desse modo, esse valor aparece ele mesmo pela primeira vez realmente como trabalho humano genérico, indistinto.] Qualquer outro trabalho, seja qual for a sua forma natural - costura, semeadura, extração de ferro ou de ouro, etc. - é agora considerado igual ao trabalho incorporado no valor do tecido, que atesta assim o seu caráter de trabalho humano. A forma total do valor relativo põe uma mercadoria em relação social [não já apenas com uma única espécie de mercadoria, mas] com todas as outras, [com o mundo das mercadorias. Enquanto mercadoria, ela é cidadã desse mundo]. Ao mesmo tempo, a série interminável das suas expressões mostra que ao valor das mercadorias é indiferente a forma particular de valor-de-uso que ele reveste.

Na primeira forma - 20 metros de tecido = 1 casaco - pode parecer que é por acaso que estas duas mercadorias são permutáveis nessa determinada proporção. Na segunda forma, pelo contrário, percebe-se imediatamente o que esta aparência esconde. O valor do tecido permanece o mesmo, quer se exprima em vestuário, em café, em ferro, num sem número de mercadorias diversas, pertencentes aos mais diversos possuidores. [Desaparece a relação acidental de dois possuidores individuais de mercadorias.] Torna-se evidente que não é a troca que regula a grandeza de valor de uma mercadoria; pelo contrário, é a grandeza do valor da mercadoria que regula as suas relações de troca.

2. A forma-equivalente particular

Cada mercadoria (casaco, trigo, chá, ferro, etc.) serve de equivalente na expressão do valor do tecido [e, portanto, de encarnação de valor]. A forma natural de cada uma destas mercadorias é agora uma forma-equivalente particular, ao lado de muitas outras. Igualmente as várias espécies de trabalho útil [determinadas e concretas], contidas nos corpos das diversas mercadorias, representam outras tantas formas particulares de realização ou de manifestação do trabalho humano puro e simples.

3. Defeitos da forma-valor total ou desenvolvida

Desde logo, a expressão relativa de valor é incompleta, dado que a série dos seus termos nunca termina: a cadeia, de que cada equação de valor forma um dos elos, pode prolongar-se indefinidamente à medida que surgem novas espécies de mercadorias, fornecendo a matéria de novas expressões de valor. [Em segundo lugar, ela constitui um mosaico variegado de expressões de valor diferentes e desconexas.] Finalmente, se, como terá de acontecer, generalizarmos esta forma, aplicando-a a todas as espécies de mercadorias, obteremos tantas séries diversas, e intermináveis de expressões de valor, quantas forem as mercadorias.

Os defeitos da forma-valor relativa desenvolvida refletem-se na forma-equivalente que lhe corresponde. Como a forma natural de cada espécie de mercadorias é, neste caso, uma forma-equivalente particular, ao lado de um sem-número de outras formas-equivalentes particulares, apenas existem, em geral, formas-equivalentes limitadas, que se excluem umas às outras. Igualmente, a espécie de trabalho útil, concreto [determinado], contido em cada equivalente, apenas representa uma forma particular, isto é, uma manifestação incompleta, do trabalho humano. Este trabalho possui, é certo, a sua forma completa ou total de manifestação no conjunto das suas formas particulares. Mas falta a unidade de forma e de expressão.

A forma-valor relativa total ou desenvolvida consiste, todavia, apenas numa soma de expressões relativas simples ou de equações da primeira forma, tais como:

20 metros de tecido = 1 casaco.

20 metros de tecido = 10 libras de chá, etc.,

em que cada uma contém reciprocamente a equação idêntica:

1 casaco = 20 metros de tecido

10 libras de chá = 20 metros de tecido, etc.

De fato, se o possuidor do tecido o troca por muitas outras mercadorias, exprimindo portanto o seu valor numa série de outras tantas mercadorias, então os possuidores das outras mercadorias têm necessariamente de trocá-las por tecido, exprimindo os valores das suas diversas mercadorias numa só e mesma mercadoria: o tecido. Portanto, se invertermos a série:

20 metros, de tecido = 1 casaco, ou = 10 libras de chá, etc., isto é, se exprimimos a recíproca que aí está já implicitamente contida, obteremos:

C -Forma geral do valor

1 casaco=

10 libras de chá=

40 libras de café =

2 onças de ouro=

1/2 tonelada de ferro=

x de mercadoria A=

etc. = = = = = = = = = 20 metros de tecido

1. Mudança de caráter da forma-valor

As mercadorias exprimem agora os seus valores: 1º - de uma maneira simples, pois que o exprimem numa única mercadoria; 2º - unitariamente, pois que o exprimem na mesma mercadoria. A sua forma-valor é simples e comum, e portanto geral.

As formas A e B apenas conseguiram expressar o valor de uma mercadoria como algo de distinto do seu próprio valor-de-uso ou da sua própria matéria.

A primeira forma proporciona equações deste gênero: 1 casaco = 20 metros de tecido, 10 libras de chá = 1/2 tonelada de ferro, etc. O valor do casaco é expresso como algo de igual ao tecido, o valor do chá como algo de igual ao ferro, etc.; mas, estas expressões do valor do casaco e do chá são tão diferentes uma da outra como o tecido e o ferro. Evidentemente que esta forma apenas surge, na prática, em épocas primitivas, quando os produtos do trabalho só eram transformados em mercadorias através de trocas acidentais e isoladas.

A segunda forma exprime, de um modo mais completo que a primeira, a diferença que existe entre o valor de uma mercadoria (por exemplo, um casaco) e o seu próprio valor-de-uso. Com efeito, o valor do casaco assume aí todas as figuras possíveis em face da sua forma natural; algo de igual ao tecido, ao chá, ao ferro, a tudo, exceto ao casaco. Por outro lado, esta forma torna impossível qualquer expressão comum do valor das mercadorias, pois que, na expressão de valor de uma mercadoria qualquer, todas as outras figuram como seus equivalentes, sendo portanto incapaz de exprimir o seu próprio valor. Esta forma-valor desenvolvida surge na realidade quando um produto de trabalho (por exemplo, o gado) se troca por outras mercadorias diferentes, já não excepcionalmente, mas sim duma forma habitual.

Na expressão geral do valor relativo, pelo contrário, cada mercadoria (tal como casaco, café, ferro, etc.) possui uma só e mesma forma-valor (por exemplo, a forma tecido) diferente da sua forma natural. Em virtude desta igualdade com o tecido, o valor de cada mercadoria é agora distinto, não só do seu próprio valor-de-uso, mas também de todos os outros valores-de-uso, sendo, por isso mesmo, representado como o caráter comum e indistinto de todas as mercadorias. Esta forma é a primeira a relacionar as mercadorias entre si como valores, fazendo-as aparecer umas em face das outras como valores-de-troca.

As duas primeiras formas exprimem o valor de uma mercadoria qualquer, seja numa única mercadoria de espécie diferente, seja numa série de muitas outras mercadorias. Em ambos os casos é, por assim dizer, assunto privado de cada mercadoria singular atribuir-se uma forma-valor, sem interferência das outras mercadorias. Estas desempenham, em face dela, o papel puramente passivo de equivalente. Ao invés, a forma-valor relativa geral apenas surge como obra comum das mercadorias no seu conjunto. Uma mercadoria só adquire a sua expressão geral de valor porque, ao mesmo tempo, todas as outras mercadorias exprimem os seus valores no mesmo equivalente, tendo cada nova espécie de mercadoria de fazer o mesmo. Com isso, tona-se evidente que as mercadorias que, do ponto de vista do valor, são coisas puramente sociais, também só podem exprimir essa existência social através da totalidade das suas relações recíprocas, tendo a sua forma-valor de ser, portanto, uma forma socialmente válida.

A forma natural da mercadoria que se torna equivalente comum (o tecido), é agora a forma oficial dos valores. É assim que as mercadorias revelam umas às outras, não somente a sua igualdade qualitativa [como valores em geral], mas ainda as suas diferenças quantitativas [como grandezas comparáveis] de valor. As grandezas de valor, projetadas como que sobre um mesmo espelho, o tecido, refletem-se reciprocamente. Exemplo: 10 libras de chá = 20 metros de tecido e 30 libras de café = 20 metros de tecido. Portanto: 10 libras de chá = 40 libras de café, ou então: em 1 libra de café existe apenas 1/4 [da substância de valor, ou seja] do trabalho contido em 1 libra de chá.

A forma-valor relativa geral do mundo das mercadorias imprime à mercadoria equivalente, excluída desse mundo, o caráter de equivalente geral. [A sua própria forma natural é a figura comum do valor desse mundo; por isso] o tecido é agora imediatamente permutável por todas as outras mercadorias. [A sua forma corpórea apresenta-se como a encarnação visível, a materialização comum, social de todo o trabalho humano.] A sua forma natural é, portanto, ao mesmo tempo, a sua forma social. A tecelagem, o trabalho privado que produz o tecido, adquire por isso mesmo o caráter de trabalho social, a forma de igualdade com todos os outros trabalhos. As inúmeras equações de que se compõe a forma-valor geral equiparam o trabalho realizado no tecido com o trabalho contido em cada mercadoria que sucessivamente é comparada com ele, transformando a tecelagem na forma genérica de manifestação do trabalho humano [em geral]. Deste modo, o trabalho objetivado no valor das mercadorias não é representado somente duma forma negativa, isto é, como uma abstração em que se diluem as formas concretas e as propriedades úteis do trabalho real; o que agora ressalta nitidamente é a sua natureza positiva. É a redução de todos os trabalhos reais ao seu caráter comum de trabalho humano, de dispêndio da mesma força humana de trabalho.

A forma-valor geral [que representa os produtos do trabalho como simples cristalizações de trabalho humano indistinto] mostra, pela sua própria estrutura, que ela é a expressão social do mundo das mercadorias. Revela, por conseguinte, que nesse mundo das mercadorias o seu caráter especificamente social é constituído pelo caráter universalmente humano do trabalho.

2. Relação entre o desenvolvimento da forma-valor relativa e o da forma-equivalente

A forma-equivalente desenvolve-se simultaneamente e gradualmente com a forma relativa; mas - e é necessário acentuar bem isso - o desenvolvimento da primeira não é mais que o resultado e a expressão do desenvolvimento da segunda. É desta que parte a iniciativa.

A forma-valor relativa simples ou isolada de uma mercadoria pressupõe uma outra mercadoria qualquer como equivalente acidental [particular]. A forma-valor relativa desenvolvida, essa expressão do valor de uma mercadoria em todas as outras, a todas imprime a forma de equivalentes particulares de espécie diferente. Finalmente, uma mercadoria específica adquire a forma de equivalente geral, porque todas as outras mercadorias fazem dela a matéria da sua forma-valor relativa geral [unitária].

Todavia, na mesma medida em que se desenvolve a forma-valor em geral, desenvolve-se também a contradição entre os seus dois pólos: valor relativo e equivalente.

Já a primeira forma-valor - 20 metros de tecido = 1 casaco - contém esta contradição, mas sem a fixar. Nesta equação, um dos termos (o tecido) encontra-se sob a forma-valor relativa, e o termo oposto (o casaco) sob a forma-equivalente. Se porém lermos essa equação ao contrário, o tecido e o casaco mudam muito simplesmente de papel, mas a forma da equação permanece inalterada. Assim, é difícil fixar neste caso a contradição entre os dois termos.

Sob a forma B - 20 metros de tecido, = 1 casaco, ou = 10 libras de chá, ou = 1 alqueire de trigo etc. - uma espécie de mercadoria pode desenvolver completamente o seu valor relativo e revestir a forma-valor relativa total, porque, e na medida em que, todas as outras mercadorias se encontram em face dela sob a forma-equivalente. Neste caso já se não podem inverter os dois termos da equação sem mudar por completo o seu caráter, convertendo-a de forma-valor total em forma-valor geral.

Finalmente, a última forma, a forma C, fornece ao conjunto das mercadorias uma expressão geral e social do valor relativo, porque, e na medida em que, exclui da forma-equivalente [geral] todas as mercadorias, com exceção de uma só. Uma mercadoria (o tecido) encontra-se, consequentemente, sob a forma de permutabilidade imediata com todas as outras mercadorias [ou sob forma diretamente social], porque, e na medida em que, estas não se encontram nessa situação.23

Portanto, sob esta última forma, o mundo das mercadorias só possui uma forma-valor relativa social e geral, porque todas as mercadorias que dele fazem parte são excluídas da forma-equivalente ou da forma sob que são imediatamente permutáveis. Pelo contrário, a mercadoria que funciona como equivalente geral (o tecido, por exemplo) não pode participar da forma-valor relativa geral; para isso, seria necessário que ela pudesse servir de equivalente a si mesma. Obteríamos então: 20 metros de tecido = 20 metros de tecido, tautologia que não exprime nem valor nem grandeza de valor. Para exprimir o valor relativo do equivalente geral, teremos de ler a forma C ao contrário. Ele não possui nenhuma forma relativa comum às outras mercadorias, mas o seu valor exprime-se relativamente na série interminável de todas as outras mercadorias. A forma-valor relativa desenvolvida, ou forma B, aparece-nos assim agora como a forma específica em que a mercadoria que serve de equivalente geral exprime o seu próprio valor [relativo].

3.Transição da forma-valor geral à forma-dinheiro

A forma-equivalente geral é uma forma do valor em geral. Pode, pois, caber a qualquer mercadoria. Por outro lado, uma mercadoria só pode encontrar-se sob esta forma (forma C) , porque e na medida em que ela própria é excluída por todas as outras mercadorias, como equivalente. E só a partir do momento em que este caráter exclusivo se fixa definitivamente numa certa espécie de mercadoria, é que a forma-valor relativa [unitária do mundo das mercadorias] ganha consistência objetiva, adquirindo validade social universal.

A mercadoria especial com cuja forma natural a forma-equivalente pouco a pouco se identifica na sociedade, torna-se mercadoria-dinheiro ou funciona como dinheiro. A sua função social específica, e portanto o seu monopólio social, consiste em desempenhar o papel de equivalente universal no mundo das mercadorias. Entre as mercadorias que, na forma B, figuram como equivalentes particulares do tecido, e que, sob a forma C, exprimem conjuntamente no tecido o seu valor relativo, foi o ouro que conquistou historicamente esse privilégio. Então, substituindo na forma C a mercadoria-tecido pela mercadoria-ouro, teremos:

D - Forma-dinheiro [20a]

20 metros de tecido =

1 casaco =

10 libras de chá =

40 libras de café =

1/2 tonelada de ferro =

x da mercadoria A =

etc. = = = = = = = = = = 2 onças de ouro;

Na transição da forma A à forma B e da forma B à forma C ocorrem mudanças essenciais. A forma D, pelo contrário, em nada difere da forma C, a não ser no fato que agora é o ouro que possui, em vez do tecido, a forma-equivalente geral. O progresso consiste simplesmente em que a forma de permutabilidade imediata e universal, ou a forma de equivalente geral, se incorporou definitivamente [por força da prática social] na forma natural e específica do ouro.

O ouro só desempenha o papel de dinheiro em face das outras mercadorias na medida em que já anteriormente desempenhava em face delas o papel de mercadoria. Tal como todas elas, ele funcionava como equivalente quer acidentalmente [como equivalente singular] em trocas isoladas, quer como equivalente particular ao lado de outros equivalentes. Pouco a pouco passou a funcionar, dentro de limites mais ou menos largos, como equivalente geral. Ao conquistar o monopólio dessa posição na expressão do valor do mundo mercantil, tornou-se mercadoria-dinheiro e, somente a partir do momento em que já se tornou mercadoria-dinheiro, é que a forma D se distingue da forma C, ou que a forma-valor geral se transforma em forma-dinheiro.

A expressão simples do valor relativo de uma mercadoria (do tecido, por exemplo) na mercadoria que funciona já como dinheiro (por exemplo o ouro) é a forma-preço. A forma-preço do tecido é portanto:

20 metros de tecido = 2 onças de ouro,

ou, se 2 libras esterlinas for a designação monetária de 2 onças de ouro,

20 metros de tecido = 2 libras esterlinas.

A dificuldade no conceito de forma-dinheiro reside simplesmente na compreensão da forma-equivalente geral, ou seja, a forma-valor geral, a forma C. Esta analisa-se na forma-valor desenvolvida, a forma B, e o elemento constituinte desta última é a forma A:

20 metros de tecido = 1 casaco, ou

x da mercadoria A = y da mercadoria B.

A forma simples da mercadoria é, por conseguinte, o germe da forma-dinheiro.

4 - O FETICHISMO DA MERCADORIA E O SEU SEGREDO

A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor-de-uso, nada de misterioso existe nela, quer satisfaça pelas suas propriedades as necessidades do homem, quer as suas propriedades sejam produto do trabalho humano. É evidente que a atividade do homem transforma as matérias que a natureza fornece de modo a torná-las úteis. Por exemplo, a forma da madeira é alterada, ao fazer-se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; face a todas as outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar.24

O caráter místico da mercadoria não provém, pois, do seu valor-de-uso. Não provém tão pouco dos fatores determinantes do valor. Com efeito, em primeiro lugar, por mais variados que sejam os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são, antes de tudo, funções do organismo humano e que toda a função semelhante, quaisquer que sejam o seu conteúdo e a sua forma, é essencialmente um dispêndio de cérebro, de nervos, de músculos, de órgãos, de sentidos, etc., do homem. Em segundo lugar, no que respeita àquilo que determina a grandeza do valor - isto é, a duração daquele dispêndio ou a quantidade de trabalho - não se pode negar que essa quantidade de trabalho se distingue claramente da sua qualidade. Em todas as épocas sociais, o tempo necessário para produzir os meios de subsistência interessou necessariamente os homens, embora de modo desigual, de acordo com o estádio de desenvolvimento da civilização.25 Enfim, desde que os homens trabalham uns para os outros, independentemente da forma como o fazem, o seu trabalho adquire também uma forma social.

Donde provém, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, logo que ele assume a forma-mercadoria? Evidentemente, dessa mesma forma. A igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma [objetiva da igualdade] de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio da força de trabalho humana, pela sua duração, adquire a forma de grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se afirmam as determinações sociais dos seus trabalhos, adquirem a forma de uma relação social dos produtos do trabalho.

[O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas; e, portanto, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho global como se fosse uma relação social de coisas existentes para além deles.] É por este quiproquó que esses produtos se convertem em mercadorias, coisas a um tempo sensíveis e suprasensíveis (isto, é, coisas sociais). Também a impressão luminosa de um objeto sobre o nervo óptico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como a forma sensível de alguma coisa que existe fora do olho. Mas, no ato da visão, a luz é realmente projetada por um objeto exterior sobre um outro objeto, o olho; é uma relação física entre coisas físicas. Ao invés, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho [na qual aquela se representa] não tem a ver absolutamente nada com a sua natureza física [nem com as relações materiais dela resultantes]. É somente uma relação social determinada entre os próprios homens que adquire aos olhos deles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar algo de análogo a este fenômeno, é necessário procurá-lo na região nebulosa do mundo religioso. Aí os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, entidades autônomas que mantêm relações entre si e com os homens. O mesmo se passa no mundo mercantil com os produtos da mão do homem. É o que se pode chamar o fetichismo que se aferra aos produtos do trabalho logo que se apresentam como mercadorias, sendo, portanto, inseparável deste modo-de-produção.

[Este caráter fetiche do mundo das mercadorias decorre, como mostrou a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias.]

Os objetos úteis só se tornam em geral mercadorias porque são produtos de trabalhos privados, executados independentemente uns dos outros. O conjunto destes trabalhos privados constitui o trabalho social [global]. Dado que os produtores só entram em contato social pela troca dos seus produtos, é só no quadro desta troca que se afirma também o caráter [especificamente] social dos seus trabalhos privados. Ou melhor, os trabalhos privados manifestam-se na realidade como frações do trabalho social global apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por intermédio destes, entre os produtores. Daí resulta que para estes últimos, as relações [sociais] dos seus trabalhos privados aparecem tal como são, ou seja, não como relações imediatamente sociais entre pessoas nos seus próprios trabalhos, mas antes como [relações materiais entre pessoas e] relações sociais entre coisas.

Somente pela troca é que os produtos do trabalho adquirem, como valores, uma existência social idêntica e uniforme, distinta da sua existência material e multiforme como objetos úteis. Esta cisão do produto do trabalho, em objeto útil e objeto de valor, só teve lugar na prática a partir do momento em que a troca adquiriu extensão e importância bastantes para que passassem a ser produzidos objetos úteis em vista da troca, de modo que o caráter de valor destes objetos é já tomado em consideração na sua própria produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores adquirem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteis [determinados], devem satisfazer uma determinada necessidade social, afirmando-se portanto como partes integrantes do trabalho global, isto é, do sistema de divisão social do trabalho que se forma espontaneamente; por outro lado, só satisfazem as diversas necessidades dos próprios produtores, na medida em que cada espécie de trabalho privado útil é permutável - isto é, é equivalente a - qualquer outra espécie de trabalho privado útil. A igualdade de trabalhos que diferem toto coelo (*) uns dos outros só pode consistir numa abstração da sua desigualdade real, na redução ao seu caráter comum de dispêndio de força humana, de trabalho humano abstrato, e é somente a troca que opera esta redução, pondo em presença uns dos outros, num pé de igualdade, os produtos dos mais diversos trabalhos.

O duplo caráter social dos trabalhos privados apenas se reflete no cérebro dos produtores sob as formas em que se manifestam no tráfico concreto, na troca dos produtos; [o caráter socialmente útil dos seus trabalhos privados, no fato de o produto do trabalho ter de ser útil, e útil aos outros; e o caráter social de igualdade dos diferentes trabalhos no caráter comum de valor desses objetos materialmente diferentes os produtos do trabalho.]

Quando os produtores relacionam os produtos do seu trabalho a título de valores, não é que eles vejam neles um simples invólucro sob o qual se esconde um trabalho humano idêntico; pelo contrário, ao considerarem iguais na troca os seus diversos produtos, pressupõem com isso que os seus diferentes trabalhos são iguais. Eles fazem-no sem o saber 26. Portanto, o valor não tem, escrito na fronte, o que ele é. Longe disso, ele transforma cada produto do trabalho num hieroglifo [social]. Somente com o tempo o homem procurará decifrar o sentido do hieroglifo, penetrar nos segredos da obra social para a qual contribui, pois a transformação dos objetos úteis em valores é um produto da sociedade, tal como o é a linguagem.

A recente descoberta científica, de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são [objetiva] pura e simplesmente a expressão do trabalho humano gasto na sua produção, marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipou de modo algum a fantasmagoria que faz aparecer o caráter social do trabalho como uma qualidade das coisas, dos próprios produtos. O que é verdadeiro apenas para esta forma particular de produção, a produção mercantil – a saber, que o caráter [especificamente] social dos mais diversos trabalhos [privados, independentes uns dos outros], consiste na sua igualdade como trabalho humano, e reveste uma forma objetiva, a forma-valor dos produtos do trabalho - isso parece aos olhos dos homens imersos nas engrenagens das relações da produção de mercadorias, hoje como antes daquela descoberta, tão definitiva e tão natural como a forma gasosa do ar que permaneceu idêntica mesmo depois da descoberta dos seus elementos químicos.

O que na prática interessa em primeiro lugar aos que trocam produtos é saber que quantidade [de produtos alheios] é que obterão em troca dos seus produtos, isto é, as proporções em que eles se trocam. A partir do momento em que estas proporções passaram a ter uma certa fixidez, produzida pelo hábito, elas parecer-lhe-ão provir da própria natureza dos produtos do trabalho. Parece existir nessas coisas uma propriedade de se trocarem em proporções determinadas, tal como as substâncias químicas se combinam com proporções fixas [por exemplo, uma tonelada de aço e duas onças de ouro têm igual valor, tal como uma libra de ouro e uma libra de ferro têm igual peso, apesar das suas diferentes qualidades físicas e químicas] .

De fato, o caráter de valor dos produtos do trabalho só se fixa quando eles se determinam como grandezas de valor. Estas últimas mudam sem cessar, independentemente da vontade e das previsões [e das ações] daqueles que trocam mercadorias, aos olhos de quem o seu próprio movimento social toma assim a forma de um movimento de coisas, movimento que os dirige em vez de serem eles a dirigi-lo. É necessário que a produção mercantil se tenha completamente desenvolvido, para que da própria experiência decorra esta verdade científica: - que os trabalhos privados executados independentemente uns dos outros, mas inteiramente interdependentes como ramificações espontâneas do sistema da divisão social do trabalho, são constantemente reduzidos à sua medida socialmente proporcional. E porquê? Porque nas relações de troca, acidentais e sempre variáveis, dos seus produtos, o tempo de trabalho social necessário à sua produção impõe-se forçosamente como lei reguladora natural, tal como a lei da gravidade se faz sentir a qualquer pessoa quando a sua casa desaba sobre a sua cabeça.27 A determinação da grandeza de valor pela duração do trabalho é, portanto, um segredo escondido sob o movimento aparente dos valores [relativos] das mercadorias; mas a sua descoberta, mostrando embora que a grandeza de valor não se determina ao acaso, como poderá parecer, não faz com isso desaparecer a forma que representa esta quantidade como uma relação de grandeza entre as coisas, entre os próprios produtos do trabalho.

A reflexão sobre as formas da vida social, e por conseguinte a sua análise científica, segue um caminho completamente oposto ao do movimento real. Começa depois dos fatos consumados, já com os resultados do processo de desenvolvimento. As formas que imprimem aos produtos do trabalho a marca de mercadorias e que por isso são pressuposto da sua circulação, possuem, também elas, já a fixidez de formas naturais da vida social, antes que os homens procurem dar-se conta, não do caráter histórico destas - que, pelo contrário, se lhes apresentam já como imutáveis - mas do seu sentido último. Assim, foi somente a análise do preço das mercadorias que conduziu à determinação da grandeza do valor, e somente a comum expressão das mercadorias em dinheiro levou à fixação do seu caráter de valor. Ora, é precisamente esta forma acabada do mundo das mercadorias, a sua forma-dinheiro, que, em vez de revelar, dissimula o caráter social dos trabalhos privados e as relações sociais entre os produtores. Quando digo que o trigo, um casaco, botas se relacionam com o tecido como encarnação geral do trabalho humano abstrato, a falsidade e o absurdo desta expressão salta logo à vista. Mas quando os produtores destas mercadorias as relacionam ao tecido - ou ao ouro ou à prata, o que vem a dar no mesmo -como equivalente geral, as relações entre os seus trabalhos privados e o conjunto do trabalho social [global] aparecem-lhes precisamente sob esta forma absurda.

[São formas destas que constituem as categorias da economia burguesa.] As categorias da economia burguesa são formas de pensamento que têm uma verdade objetiva, enquanto refletem relações sociais reais, mas estas relações pertencem somente a esta época histórica determinada, em que a produção mercantil é o modo de produção social. Se encararmos outras formas de produção, logo veremos desaparecer todo este misticismo [sortilégio e magia] que obscurece os produtos do trabalho no período atual.

Uma vez que a economia política gosta das robinsonadas, visitemos então Robinson na sua ilha.28 Embora naturalmente modesto, nem por isso tem menos necessidades diferentes a satisfazer, sendo-lhe necessário executar trabalhos úteis de várias espécies, por exemplo, fabricar móveis, fazer utensílios, domesticar animais, pescar, caçar, etc. Acerca das suas orações e outras bagatelas semelhantes nada temos a dizer, pois que o nosso Robinson encontra nisso o seu prazer, considerando essas atividades como uma distração tonificante. Apesar da variedade das suas funções produtivas, ele sabe que elas são apenas as diversas formas pelas quais se afirma o próprio Robinson, isto é, são simplesmente modos, diversos de trabalho humano. As próprias necessidades obrigam-no a dividir o seu tempo pelas diferentes ocupações. O fato de uma ocupar um maior, e outra um menor lugar no conjunto dos seus trabalhos, depende da maior ou menor dificuldade que tem de vencer para conseguir o resultado útil que tem em vista. É a experiência que lho ensina, e o nosso homem que salvou do naufrágio relógio, livro-razão, pena e tinta, não tarda, como bom inglês que é, a anotar todos os seus atos diários. O seu inventário contém a descrição dos objetos úteis que possui, dos diferentes modos de trabalho que a sua produção exigiu e, finalmente, do tempo de trabalho que lhe custaram, em média, determinadas quantidades destes diversos produtos. Todas as relações de Robinson com as coisas, que formam a riqueza que ele próprio criou, são de tal modo simples e transparentes que qualquer pobre de espírito as poderia compreender sem grande esforço intelectual. E, no entanto, estão aí contidas todas as determinações essenciais do valor. Passemos agora da ilha luminosa de Robinson para a sombria Idade Média europeia. Em vez do homem independente, todos aqui se encontram dependentes: servos e senhores, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. Esta dependência pessoal caracteriza tanto as relações sociais da produção material, como todas as outras esferas da vida assentes sobre ela. E é precisamente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que todas as relações sociais nos aparecem como relações entre pessoas. Por isso, os diversos trabalhos e os seus produtos não têm necessidade de assumir uma figura fantástica distinta da sua realidade. Surgem [no mecanismo social] como serviços e prestações em espécie. É também a forma natural do trabalho, a sua particularidade e não a sua generalidade, o seu caráter abstrato, como na produção mercantil - que é aqui a sua forma [diretamente] social. A corveia, tal como o trabalho que produz mercadorias, é igualmente medida pelo tempo; mas todo o camponês sabe muitíssimo bem - sem necessidade de recorrer a um Adam Smith - que é uma quantidade determinada da sua força de trabalho pessoal que ele dispende ao serviço do seu senhor. O dízimo a pagar ao cura é bem mais claro que a bênção deste. Como quer que julguemos os papéis que os homens desempenham nesta sociedade [uns perante os outros], as relações sociais das pessoas nos seus trabalhos respectivos afirmam-se com toda a nitidez como as suas próprias relações pessoais, não se dissimulando em relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho.

Para encontrarmos o trabalho comum [diretamente social] , ou seja, a associação imediata, não precisamos de nos reportarmos à sua forma natural primitiva [espontânea], tal como nos aparece no limiar da história de todos os povos civilizados.29 Temos um exemplo bem perto de nós, na indústria rural e patriarcal de uma família de camponeses que produz, para as suas próprias necessidades, gado, trigo, tecido, linho, vestuário, etc. Estes diferentes objetos apresentam-se à família como os produtos diversos do seu trabalho, não se apresentando reciprocamente como mercadorias. Os diferentes trabalhos que criam estes produtos - agricultura, criação de gado, tecelagem, confecção, do vestuário, etc. - são, desde logo, na sua forma natural, funções sociais, pois que são funções da família que, tal como a produção, de mercadorias, tem a sua [espontânea] divisão do trabalho. São as condições naturais, variáveis com a mudança das estações, bem como as diferenças de idade e de sexo, que regulam na família a distribuição do trabalho e a sua duração para cada membro da família. O dispêndio das forças de trabalho individuais medido pelo tempo da sua duração aparece aqui diretamente como caráter social dos próprios trabalhos, uma vez que as forças de trabalho individuais funcionam [naturalmente] apenas como órgão da força [de trabalho] comum da família.

Figuremos finalmente uma reunião de homens livres, trabalhando com meios de produção comuns, e dispendendo, de acordo com um plano concertado, as suas numerosas forças [de trabalho] individuais como uma única força de trabalho social. Tudo o que dissemos do trabalho de Robinson repete-se aqui; mas agora socialmente e não individualmente. Todos os produtos de Robinson eram seu produto pessoal e exclusivo e portanto objetos de utilidade imediata para ele. O produto total da referida reunião de trabalhadores é um produto social. Uma parte serve de novo como meio de produção, permanecendo social ; mas a outra parte é consumida [como meio de subsistência] , devendo, por isso, repartir-se entre todos. O modo de repartição variará segundo o organismo de produção da sociedade e o [correspondente] nível de desenvolvimento histórico dos trabalhadores. Suponhamos, apenas para estabelecer um paralelo com a produção mercantil, que a parte a repartir por cada trabalhador seja proporcional ao seu tempo de trabalho. O tempo de trabalho desempenhará assim um duplo papel. Por um lado, a sua distribuição [socialmente planificada] na sociedade regula a justa relação das diversas funções com as diversas necessidades; por outro lado, serve de medida à parte individual de cada produtor no trabalho comum e, ao mesmo tempo, à porção que lhe compete na parte do produto comum reservada ao consumo. Neste caso, as relações sociais dos homens com os seus trabalhos e com os produtos do trabalho permanecem simples e transparentes, tanto na produção como, na distribuição [25] .

O mundo religioso não é mais do que o reflexo do mundo real. Uma sociedade em que o produto do trabalho toma geralmente a forma de mercadoria e em que, portanto, a relação mais geral entre os produtores consiste em comparar os valores dos seus produtos e, sob esta forma material, em comparar entre si os seus trabalhos privados a título de trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no cristianismo, com o seu culto do homem abstrato - e sobretudo nos seus tipos burgueses, protestantismo, deísmo, etc. - o complemento religioso mais conveniente. Nos modos-de-produção da antiga Ásia, e da antiguidade em geral, a transformação do produto em mercadoria [e, portanto, a existência do homem como produtor de mercadorias] desempenha apenas um papel secundário que, no entanto, adquire tanto mais importância quanto as comunidades se aproximam da dissolução. Povos mercadores, propriamente, apenas se encontram nos interstícios do mundo antigo, à maneira dos deuses de Epicuro [26], ou como os judeus nos poros da sociedade polaca. Aqueles antigos organismos sociais são, sob o ponto de vista da produção, infinitamente mais simples e mais transparentes do que a sociedade burguesa; mas eles têm por base, ou a imaturidade do homem individual - por assim dizer, a história ainda não cortou o cordão umbilical que o liga à comunidade natural de uma tribo primitiva - ou condições de despotismo e de escravagismo. O baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho que as caracteriza e que por isso impregna toda a esfera da vida material, a estreiteza das relações dos homens, quer entre eles quer com a natureza, refletem-se idealmente nas velhas religiões nacionais. Dum modo geral, o reflexo religioso do mundo real só poderá desaparecer quando as condições do trabalho e da vida prática apresentarem ao homem relações transparentes e racionais com os seus semelhantes e com a natureza. A vida social cuja base é formada pela produção material e pelas relações que ela implica só se libertará da nuvem mística que a envolve, no momento em que ela se apresente como o produto de homens livremente associados, agindo conscientemente [segundo um plano] e senhores do seu próprio movimento social. Mas isto exige um conjunto de condições de existência material [uma base material] da sociedade, que por sua vez só pode ser produto [espontâneo] de um longo e penoso desenvolvimento.

É certo que a economia política, embora de uma forma muito imperfeita, analisou o valor e a grandeza do valor [e descobriu o conteúdo escondido nessas formas].30 Mas nunca pôs a questão de saber [porque é que esse conteúdo reveste essa forma] por que é que o trabalho se representa no valor, e a medida do trabalho pela sua duração na grandeza do valor dos produtos.31 Fórmulas, que logo à primeira vista mostram pertencer a uma formação social em que a produção e as suas relações comandam o homem em vez de serem por ele comandadas, surgem à sua consciência burguesa como uma necessidade tão natural como o próprio trabalho produtivo. Nada de espantar que as formas de produção social que precederam a produção burguesa sejam tratadas da mesma maneira que os Padres da igreja tratam as religiões que precederam o Cristianismo.32

O que, entre outras coisas, mostra a ilusão produzida sobre a maior parte dos economistas pelo fetichismo inerente ao mundo mercantil ou pela aparência material dos atributos sociais do trabalho, é a longa e insípida querela travada a propósito do papel da natureza na criação do valor-de-troca. Ora, dado que o valor-de-troca é apenas uma determinada maneira social de exprimir o trabalho empregue na produção de um objeto, ele não pode conter mais, elementos materiais do que, por exemplo, a cotação dos câmbios.

Na nossa sociedade, a forma econômica mais geral e mais simples que se liga aos produtos do trabalho - a forma-mercadoria - é tão familiar a toda a gente que ninguém vê mal nisso. Consideremos outras formas econômicas mais complexas [29] .Donde provinham, por exemplo, as ilusões do sistema mercantilista? Evidentemente do caráter fetiche que a forma-dinheiro imprime aos metais preciosos [segundo esse sistema, o ouro e a prata na sua função de dinheiro não representavam uma relação social de produção, antes eram objetos naturais com peculiares propriedades sociais]. E a economia moderna que se tem em alta conta e não se cansa de zombar, insipidamente, do fetichismo dos mercantilistas, será ela menos vítima das aparências? O seu primeiro dogma não consiste em considerar que estas coisas (instrumentos de trabalho por exemplo) são, por natureza, capital, e que, pretender despojá-las deste caráter puramente social, é cometer um crime contra a natureza? Finalmente, os fisiocratas, tão superiores em tantos aspectos, não imaginaram que a renda fundiária não é um tributo arrancado aos homens, mas um presente feito pela própria natureza aos proprietários?

Mas não nos antecipemos e contentemo-nos com mais um exemplo a propósito da própria forma-mercadoria. Se pudessem falar, as mercadorias diriam: «Pode o nosso valor-de-uso interessar ao homem, que para nós, enquanto, objetos, isso é-nos indiferente. O que nos interessa é o nosso valor. Demonstra-o a nossa relação recíproca como coisas de venda e de compra. Só nos relacionamos umas com as outras como valores-de-troca». O economista parece exprimir a própria alma das mercadorias, quando diz: «o valor [valor-de-troca] é uma propriedade das coisas; a riqueza [valor-de-uso] é uma propriedade do homem. O valor, neste sentido, pressupõe necessariamente a troca, a riqueza, não».33 «A riqueza [valor-de-uso] é um atributo do homem; o valor, um atributo das mercadorias. Um homem ou uma comunidade são ricos, uma pérola ou um diamante possuem valor (...) Uma pérola ou um diamante possuem valor enquanto pérola ou diamante».34 Até hoje nenhum químico descobriu ainda valor-de-troca numa pérola ou num diamante. Os economistas que descobriram ou inventaram substâncias químicas deste gênero e que se reclamam da sua profundidade, acham que o valor-de-uso das coisas lhes pertence, independentemente das suas propriedades materiais; enquanto que o valor lhes pertence na sua qualidade de coisas. O que lhes vem confirmar esta opinião, é a circunstância particular de o valor útil das coisas se realizar para o homem sem troca, quer dizer, numa relação imediata entre a coisa e o homem, enquanto que, ao invés, o seu valor apenas se realiza na troca, isto é, numa relação social. A quem é que isto não faz lembrar o bom Dogberry e a lição que deu ao guarda noturno Seacoal: [30] «(Ser um homem bem parecido, é um dom da fortuna; mas saber ler e escrever é um dom da natureza».35

(*) Completamente, inteiramente.

 

NOTAS ORIGINAIS

1 Karl Marx, Zur Kritic der politischen Oekonomie, 1859, p. 3. (Contribuição para a Crítica da Economia Política, 1971, p. 35.)

2 «O desejo implica a necessidade; é o apetite do espírito, que lhe é tão natural quanto a fome para o corpo (...) A maior parte [das coisas] retiram o seu valor do fato de satisfazerem as necessidades do espírito» (Nicholas Barbon, A Discourse on coining the new Money lighter 1696, pp. 2 e 3).

3 «As coisas possuem uma virtude intrínseca» (virtude é a designação especifica de Barbon para o valor-de-uso) «que tem a mesma qualidade em toda a parte, tal como, por exemplo, a do ímã de atrair o ferro» (l. c. p. 16). A propriedade que o ímã tem de atrair o ferro apenas se tornou útil quando, por seu intermédio, se descobriu a polaridade magnética.

4 «O que constitui o valor natural de uma coisa é a propriedade que ela tem de satisfazer as necessidades ou as conveniências de vida humana» (John Locke, Some considerations…, 1691, in Works. Londres, 1777, vol. II, p. 28). No séc. XVII encontra-se ainda muitas vezes nos autores ingleses a palavra Worth por valor-de-uso e a palavra Value por valor-de-troca, perfeitamente de acordo com o espírito de uma língua que gosta de exprimir a coisa imediata em termos germânicos e a coisa refletida em termos românicos.

5 Na sociedade burguesa «a ignorância da lei a ninguém aproveita». Em virtude de uma fictio juris econômica, qualquer comprador é considerado como possuindo um conhecimento enciclopédico das mercadorias.

6 «O valor consiste na relação de troca entre uma certa coisa e outra, entre uma certa medida de uma produção e uma certa medida de outra» (Le Trosne, De l’intérêt social, in Physiocrates, Ed. Daire, Paris, 1846, p. 889).

7 «Nada pode ter um valor-de-troca intrínseco» (N. Barbon, l. c., p. 6) ; ou como diz Butler:

The value of a thing

Is just as much as it will bríng (*).

* O valor de uma coisa é precisamente aquilo que ela proporciona.

8 «One sort of wares are as good as another, if the value be equal. There is no difference or distinction in things of equal value». Barbon acrescenta: «Cem libras esterlinas de chumbo ou de ferro têm tanto valor como cem libras esterlinas de prata ou de ouro» (N. Barbon, l. c., p. 53 e 7).

9 «O valor deles [dos objetos de uso] quando se trocam uns pelos outros é determinado pela quantidade de trabalho necessariamente exigida e ordinariamente gasta na sua produção» (Some Thougnts on the Interest of money in general..., Londres, pp. 36, 37). Este notável escrito anônimo do século passado não tem qualquer data. De acordo com o seu conteúdo, é evidente que terá aparecido no tempo de Jorge II, por alturas de 1739 ou 1740.

10 «Todas as produções de um mesmo gênero formam propriamente apenas uma massa, cujo preço se determina genericamente e sem atender às circunstâncias particulares» (Le Trosne, l. c., p. 893) .

10a [Karl Marx, l. c., p. 6 e passim. (Ed. port. cit., p. 38) .]

10b [Nota à 4.a edição. O trecho que intercalei destina-se a evitar o erro, muito frequente, de que, para Marx, seria mercadoria qualquer produto desde que consumido por alguém diferente do produtor. F. E.]

11 Karl Marx, l c., p. 12, 13 e passim. (Ed. port. p. 43, 44).

12 «Todos os fenômenos do universo, sejam produzidos pela mão do homem ou pelas leis gerais da física, não nos dão a ideia da criação nova, mas somente de uma modificação da matéria. Reunir e separar, eis os únicos elementos que o espírito humano acha, ao analisar a ideia da reprodução; e é também uma reprodução de valor» (valor-de-uso, se bem que aqui o próprio Verri, na sua polêmica contra os fisiocratas, não saiba de que espécie de valor fala) «e de riqueza, se a terra, o ar e a água se transformam, nos campos, em cereal, ou se a mão do homem converte a secreção de um inseto em seda, ou se alguns bocados de metal se organizam de modo a formar um despertador» (Pietro Verri: Meditazioni sulla Economia politica, impresso pela primeira vez em 1773 na edição dos economistas de Custodi, parte moderna, t. XV, p. 21, 22).

13 cf. Hegel, Philosophie des Rechts, § 190

14 O leitor deve notar que não se trata aqui do salário ou do valor que o operário recebe por um dia de trabalho, mas do valor da mercadoria na qual se traduz o seu dia de trabalho. Aliás, a categoria do salário ainda não existe nesta fase da nossa exposição.

15 Para demonstrar que «somente o trabalho é a medida definitiva e real com ajuda da qual o valor de todas as mercadorias pode ser avaliado e comparado em todos os tempos», diz A. Smith: «iguais quantidades de trabalho devem ter, em todos os tempos e em todos os lugares, o mesmo valor para o próprio trabalhador. No seu estado normal de saúde, de força e de atividade, e com o grau médio de habilidade que possua, ele tem sempre de ceder a mesma porção do seu repouso, da sua liberdade e da sua felicidade» (Wealth of Nations, Liv. I, C. V., p. 104, 105). Por um lado, A. Smith confunde aqui (embora nem sempre) a determinação do valor da mercadoria através da quantidade de trabalho gasto na sua produção com a determinação do seu valor através valor do trabalho, procurando portanto demonstrar que iguais quantidades de trabalho têm sempre o mesmo valor. Por outro lado, é certo que pressente que o trabalho, na medida em que se representa no valor das mercadorias, é apenas um dispêndio de força humana de trabalho; mas concebe este dispêndio exclusivamente como uma abnegação, como sacrifício do repouso, da liberdade e da felicidade, e não, ao mesmo tempo, como afirmação normal da vida. Mas também é certo que ele tem em vista o trabalhador assalariado moderno. Um dos predecessores de A. Smith, já por nós citado, afirma muito mais acertadamente: «Um homem ocupou-se durante uma semana em fornecer uma coisa necessária à vida (...) Quem lhe der uma outra em troca dela, não pode avaliar melhor qual seja o seu equivalente exato do que calculando o que lhe custou exatamente o mesmo trabalho e o mesmo tempo: o que, de fato, não passa da troca do trabalho de um homem gasto numa coisa durante um certo tempo pelo trabalho de um outro homem gasto numa outra coisa durante o mesmo tempo» (Some Thoughts on the Interest of money in general p. 39). [Nota à 4.. edição: A língua inglesa tem a vantagem de possuir duas palavras diferentes para estes dois aspectos distintos do trabalho. O trabalho que cria valores-de-uso e é qualitativamente determinado chama-se «work», em oposição a «labour»; o trabalho que cria valor e que só é avaliado quantitativamente chama-se «labour», em oposição a «work», F. E.]

16 Os poucos economistas que, como S. Bailey, procuraram fazer a análise da forma-valor, não podiam chegar a nenhum resultado: primeiramente, porque confundiam sempre o valor com a sua forma; em segundo lugar, porque, sob a influência grosseira do burguês prático, se preocuparam desde o inicio exclusivamente com o aspecto quantitativo. «O poder de dispor da quantidade (...) é o que faz o valor» (S. Bailey, Money,..., 1837, p. 11). [14]

16ª. [Um dos primeiros economistas que, depois de William Petty, se apercebeu da natureza do valor, o famoso Benjamin Franklin, diz: «Uma vez que o comércio nada mais é que a troca de um trabalho por outro trabalho, é pelo trabalho que se avalia mais exatamente o valor de todas as coisas» (The Works of B. Franklin, ed. Sparks, Boston, 1836, Vol. II, p. 267). Ao avaliar o valor das coisas «pelo trabalho», Franklin não se apercebeu do fato de ter abstraído da diversidade dos trabalhos permutados, e que, portanto, os reduziu ao mesmo trabalho humano. Diz o que não entende. Fala primeiro de «um trabalho», depois de «outro trabalho», finalmente de «trabalho», simplesmente, como substância do valor de todas as coisas.] [15]

17 De certo modo, passa-se com o homem o mesmo que com a mercadoria. Como não vem ao mundo com um espelho, nem como um filósofo fichtiano, cujo Eu de nada tem necessidade para se afirmar [:«eu sou eu»], ele vê-se e reconhece-se somente num outro homem. Também este último lhe parece, em carne e osso, a forma fenomenal do gênero humano. [Somente pela sua relação com o homem Paulo, como seu semelhante, é que o homem Pedro se vê a si mesmo como homem. Desse modo, também o Paulo de carne e osso, na sua materialidade paulina, surge para Pedro como a forma de manifestação do gênero homem.]

18 O termo valor é utilizado aqui, como já aconteceu algumas vezes atrás, por [valor quantitativamente determinado, isto é, por] grandeza de valor

19 [Esta discordância entre a grandeza do valor e a sua expressão relativa tem sido explorada pelos economistas vulgares com a habitual sagacidade.] Num escrito dirigido principalmente contra a teoria do valor de Ricardo lê-se: «Não podeis deixar de admitir que, permanecendo constante o trabalho necessário à sua produção, A baixa porque B, com o qual se troca, sobe, caindo assim o vosso principio geral a respeito do valor (...) Admitindo que B baixa relativamente a A, quando o valor de A sobe relativamente a B, é o próprio Ricardo que destrói a base do seu grande axioma segundo o qual o valor de uma mercadoria é sempre determinado pela quantidade de trabalho nela incorporado; pois que se uma mudança nos custos de A altera não somente o seu valor relativamente a B, com o qual se troca, mas também o valor de B relativamente a A, embora não se tenha verificado nenhuma mudança na quantidade de trabalho exigida para a produção de B, então cai não somente a doutrina que faz da quantidade de trabalho aplicado num artigo a medida do seu valor, mas também a doutrina que afirma que o valor se regula pelos custos de produção» (J. Broadhurst, Political Economy, 1842, pp. 11. 14). Mestre Broadhurst podia, do mesmo modo, dizer: considerando-se as frações 10/20, 10/50, 10/100, o número 10 permanece constante, decrescendo no entanto constantemente o seu valor proporcional, porque a grandeza dos denominadores aumenta. Assim cai por terra o grande principio segundo o qual a grandeza dos números inteiros é «regulada» pela quantidade das unidades que contêm.

20 O mesmo acontece em outros domínios. Um homem, por exemplo, só é rei porque outros homens se consideram seus súditos e se comportam como tais. Mas, ao contrário, eles acreditam que são súditos porque ele é rei.

21 F. L. A. Ferrier (sub-inspetor das alfândegas): Du Gouvernement considéré dans ses raports avec le commerce, (1805) e Charles Ganilh: Des Sistemes d’Economte politique, (2ª ed., 1821).

21a. [Homero, por exemplo, exprime o valor de uma coisa numa série de coisas diferentes.]

22 Esta a razão por que se fala do valor-casaco do tecido quando se exprime o seu valor em casacos, do seu valor-trigo quando se exprime em trigo, etc. Cada expressão deste gênero dá a entender que é o seu próprio valor que se manifesta nesses diversos valores-de-uso. «Como o valor de uma mercadoria denota a sua relação de troca, podemos assim falar do seu valor-trigo, do seu valor-casaco, conforme a mercadoria com a qual é comparado; sendo assim, existem milhares de espécies de valor, tantas quantos os gêneros de mercadorias, sendo todas igualmente reais e igualmente nominais» (S. Bailey, A Critical Dissertation on the Nature. Measure and Cause of value: chiefly in reference to the writings of Mr. Ricardo and his followers..., 1825. p. 39). S. Bailey, o autor deste escrito anônimo, que na altura deu muito que falar na Inglaterra, supôs ter liquidado qualquer conceito positivo de valor com esta enumeração das variadas expressões relativas do valor de uma mesma mercadoria. Apesar da estreiteza do seu espírito, não é menos verdade que por vezes pôs a nu as deficiências da teoria de Ricardo. Prova-o a animosidade com que ele foi atacado pela escola ricardiana, por exemplo na Westeminster Review.

23 A forma de permutabilidade imediata e universal não deixa transparecer de modo algum que se trata de uma forma polarizada, [da mercadoria], contendo em si contradições, tão inseparável da forma contrária, sob a qual não é possível a troca direta, quanto o positivo de um dos pólos de um ímã o é do negativo do outro pólo. Por isso, imaginar que se podem tornar imediatamente permutáveis todas as mercadorias, seria o mesmo que imaginar que todos os católicos podem ser feitos papas ao mesmo tempo. Mas na realidade, a forma-valor relativa geral e a forma-equivalente geral são os dois pólos opostos, que se pressupõem e se repelem reciprocamente, da mesma relação social das mercadorias. Esta impossibilidade de troca direta entre as mercadorias é um dos principais inconvenientes ligados à forma atual da produção, na qual, todavia, o economista burguês vê o nec plus ultra da liberdade humana e da independência individual. Inúmeros, inúteis e utópicos esforços foram tentados para vencer este obstáculo. Fiz ver algures que Proudhon tinha sido precedido nesta tentativa por Bray, Gray e outros mais. [A ilustração dessa utopia filistina é constituída pelo socialismo de Proudhon, que, como já noutra altura mostrei[19], nem o mérito da originalidade possui; muito antes dele, Gray, Bray e outros tinham feito o mesmo muito melhor. Isto não impede que hoje em dia tal sabedoria grasse em certos círculos com o nome de «ciência». Jamais uma escola abusou tanto da palavra «ciência» como a proudhoniana, pois «onde faltam os conceitos introduz-se oportunamente uma palavra.»] [20]

24 Recorde-se que, enquanto o resto do mundo parecia estar tranquilo, a China e as mesas começaram a dançar .- pour encourager les autres. [21]

25 Entre antigos germanos, a grandeza de uma jeira de terra calculava-se pelo trabalho de um dia, e daí o seu nome Tagewerk, Mannewerk, etc. (jurnale ou jornalis, terra jurnalis ou diurnalis). [Ver Georg Ludwig von Maurer, Einleitung zur Geschichte der Mark-Hof - etc. Verfassung, Munique, 1854, p. 129 s.]. De resto, a expressão «journal» de terre subsiste ainda em certas regiões da França[22]

26 Portanto, quando Galiani diz que o valor é uma relação entre pessoas - «da Richezza é una ragione tra due persone» (Galiani, Della moneta, t. III da recolha de Custodi dos Scritori classici Italiani di Economia politica, Parte Moderna, 1803, p. 220) - deveria ter acrescentado: «uma relação escondida sob a capa das coisas».

27 «Que se há-de pensar de uma lei que só pode impor-se através de revoluções periódicas? É simplesmente uma lei natural, assente sobre a inconsciência daqueles que a suportam» (Friedrich Engels: Umrisse zu einer Kritik der Nationaloekonomie, p. 103 nos Deutsch-Französische Jahrbücher, editados por Arnold Ruge e Karl Marx, Paris, 1844).

28 O próprio Ricardo não dispensa a sua robinsonada. «Segundo ele, o caçador e o pescador primitivos são mercadores que trocam o peixe e a caça à razão da duração do trabalho contido nesses valores-de-troca. Aqui comete o singular anacronismo de pôr o caçador e o pescador a consultarem as tabelas de anuidades usadas em 1817 na bolsa de Londres, a fim de avaliarem os seus instrumentos de trabalho. «Os paralelogramas do Snr. Owen parecem ser a única forma de sociedade que ele conhecia além da sociedade burguesa.» [23] [Karl Marx, Zur Kritik..., pp. 38, 39 (Contribuição..., p. 64).] [24]

29 «Considerar que a forma primitiva da propriedade comum é uma forma especialmente eslava ou exclusivamente russa é um preconceito ridículo em voga nestes últimos tempos. É a forma primitiva que se encontra entre os Romanos, os germanos, os celtas, e de que, aliás, ainda hoje se pode encontrar um mostruário completo com diversos exemplares, ainda que, em parte arruinados, na Índia. Um estudo aprofundado das formas asiáticas da propriedade comum, sobretudo da Índia, mostraria como das várias formas da propriedade comum primitiva resultaram diversas formas da sua dissolução: Assim, por exemplo, os diferentes tipos originais da propriedade privada romana e germânica podem ser derivados das diversas formas da propriedade comum indiana» [Karl Marx, Zur Kritik..., p. 10 (Contribuição..., p. 67 sq.).]

30 Um dos primeiros economistas que depois de William Petty identificou o verdadeiro conteúdo do valor, o célebre Franklin, pode servir-nos de exemplo da maneira como a economia burguesa procede na sua análise. Diz ele: «Uma vez que o comércio nada mais é que troca de um trabalho por outro trabalho, é pelo trabalho que se avalia mais exatamente o valor de todas as coisas» (The Works of Benjamin Franklin..., ed. cit., t. II, p. 267). Franklin acha tão natural que as coisas tenham valor, como os corpos peso. A seu ver, trata-se simplesmente de achar a maneira de avaliar o mais exatamente possível esse valor. Nem sequer nota que ao dizer que «é pelo trabalho que se avalia mais exatamente o valor de todas as coisas», está a abstrair da diferença dos trabalhos trocados, reduzindo-os a um trabalho humano igual. De outro modo, deveria dizer: uma vez que a troca de botas ou de sapatos por mesas não é mais que uma troca de trabalho de sapateiro por trabalho de marceneiro é pelo trabalho do marceneiro que se avaliará com maior exactidão o valor das botas Servindo-se da palavra «trabalho», em geral, ele abstrai do caráter útil e da forma concreta dos diversos trabalhos [27]. Quanto à insuficiência da análise de Ricardo acerca da grandeza do valor -e é a melhor - será demonstrada nos livros III e IV desta obra. No que respeita ao valor em geral, a economia política clássica jamais distinguiu claramente ou expressamente entre o trabalho enquanto representado no valor, e o mesmo trabalho enquanto representado no valor-de-uso do produto. É certo que ela faz de fato esta distinção, uma vez que considera o trabalho tanto do ponto de vista da qualidade, como do da quantidade. Mas não lhe ocorre que uma diferença meramente quantitativa dos trabalhos pressupõe a sua unidade ou a sua igualdade qualitativa, ou seja, a sua redução ao trabalho humano abstrato. Por exemplo, Ricardo declara-se de acordo com Destutt de Tracy quando este diz: «Uma vez que é certo que as nossas faculdades físicas e morais são a nossa única riqueza originária, que o emprego destas faculdades - um qualquer trabalho - é o nosso único tesouro primitivo, e que é sempre deste emprego que nascem todas as coisas que chamamos bens (...) também é certo que todos estes bens representam apenas o trabalho que os criou, e que se eles têm um valor, ou mesmo dois valores distintos, só podem extrair estes valores do valor do trabalho de que emanam». (Destutt de Tracy, Éléments d’idéologie, partes IV e V, Paris, 1826, p. 35, 36) .[Ricardo, The Principles of Political Economy, 3.a ed. Londres, 1822, p. 334.] Acrescentemos apenas que Ricardo atribui às palavras de Destutt, um sentido mais profundo do que elas contêm. É certo que Destutt diz, por um lado, que as coisas que constituem a riqueza «representam o trabalho que as criou»; mas, por outro lado, entende que elas retiram os seus «dois valores diferentes» (valor-de-uso e valor-de-troca) do «valor do trabalho». Cai assim no lugar comum da economia vulgar, que pressupõe como dado o valor de uma mercadoria (do trabalho, por exemplo) a fim de determinar o valor das outras. Ricardo interpreta-o como se ele dissesse que o trabalho (e não o seu valor) se representa quer no valor-de-uso quer no valor-de-troca. Mas o próprio Ricardo distingue tão pouco claramente o duplo caráter do trabalho, que em todo o seu capitulo Valor e Riqueza, é obrigado a debater-se laboriosamente com as trivialidades dum J. B. Say. Por isso, no final, fica também muito espantado por se encontrar de acordo com Destutt quanto ao trabalho como fonte de valor, quando este por sua vez está de acordo com Say sobre o conceito de valor.

31 Uma das falhas principais da economia política clássica é nunca ter conseguido deduzir da sua análise da mercadoria, e especialmente do valor dessa mercadoria, a forma[-valor] sob a qual ela se torna valor-de-troca. São precisamente os seus melhores representantes, tais como Adam Smith e Ricardo, que tratam a forma-valor como qualquer coisa de indiferente ou sem qualquer relação intima com a natureza da própria mercadoria. Não se trata somente de a sua atenção ser absorvida pelo valor como grandeza. A razão disso é mais profunda. A forma-valor do produto de trabalho é a forma mais abstrata e mais geral do atual modo-de-produção, [burguês], que adquire, por isso mesmo, um caráter histórico, o caráter de um modo particular de produção social. Se se comete o erro de a tomar pela forma natural, eterna, de toda a produção em todas as sociedades, perde-se necessariamente de vista o lado especifico da forma-valor, logo, da forma mercadoria e, em maior grau, da forma-dinheiro, da forma-capital, etc. É isto que explica a razão por que se encontram em economistas, completamente de acordo entre si sobre a medição de grandeza do valor pela duração do trabalho, as ideias mais diversas e mais contraditórias sobre o dinheiro, ou seja, sobre a forma acabada do equivalente geral. Nota-se isto sobretudo quando se trata de questões como a dos bancos, por exemplo; é então um nunca mais acabar de definições do dinheiro e de lugares-comuns constantemente debitados a este propósito. [Por isso surgiu em sentido contrário um sistema mercantilista restaurado (Ganilh, etc.) que vê no valor apenas a forma social, ou melhor, apenas a sua aparência desprovida de substância.] Aproveito para chamar a atenção, uma vez por todas, que entendo por economia política clássica toda a economia que, a partir de Willlam Petty, procura penetrar no conjunto real e intimo das relações de produção na sociedade burguesa, por oposição à economia vulgar, que se contenta com as aparências, rumina sem cessar, por necessidade própria e para vulgarização dos fenômenos mais notórios, os materiais já elaborados pelos seus predecessores, limitando-se a erigir pedantemente em sistema e a proclamar como verdades eternas as ilusões com que os burgueses gostam de povoar o seu mundo, para eles o melhor dos mundos possíveis. [28]

32 «Os economistas têm uma maneira singular de proceder . Para eles existem apenas duas espécies de instituições, as artificiais e as naturais. As instituições feudais são instituições artificiais; as da burguesia são instituições naturais. Nisto assemelham-se aos teólogos, que também distinguem duas espécies de religiões: qualquer religião que não seja a sua é uma invenção dos homens, enquanto que a sua própria religião é uma emanação de Deus. Deste modo, houve história, mas já não há» (Karl Marx, Misere de la Philosophie. Réponse à la Philosophie de la Misere de M. Proudhon, 1837, p. 113). O mais divertido é Bastiat, que imagina que os gregos e os romanos viviam apenas da rapina. Mas para se viver da rapina durante vários séculos, é necessário que tenha existido sempre qualquer coisa para roubar ou que o objeto das rapinas continuas se reproduza constantemente. É de crer, pois, que os gregos e os romanos tivessem também o seu processo de produção, e portanto uma economia que constituía tanto a base material da sua sociedade, quanto a economia burguesa constitui a base da sociedade atual. Ou pensará Bastiat que um modo-de-produção assente no trabalho dos escravos é um sistema de roubo? Coloca-se então num terreno perigoso. Quando um gigante do pensamento como Aristóteles pode enganar-se na sua apreciação do trabalho escravo, por que é que um economista anão como Bastiat haveria de acertar na sua apreciação do trabalho assalariado? Aproveito esta oportunidade para responder sucintamente a uma objeção que me foi feita por um jornal germano-americano a propósito da minha obra: Zur Kritik der Politischen Ökonomie, publicada em 1859. Segundo ele, a minha opinião de que o modo-de-produção determinado e as relações sociais que dai derivam, numa palavra, «a estrutura econômica da sociedade, é a base real sobre a qual se eleva o edifício jurídico e político», de tal maneira que «o modo-de-produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual», segundo ele, esta opinião seria justa para o mundo moderno, dominado pelos interesses materiais, mas não para a Idade Média, onde dominava o catolicismo, nem para Atenas e Roma, onde dominava a política. Desde logo, é estranho que alguém se disponha a crer que alguém ignora estas trivialidades sobre a Idade Média e a antiguidade. O que é evidente e que nem a primeira podia viver do catolicismo, nem a segunda da política. Pelo contrário, as condições econômicas de então explicam a razão por que, no primeiro caso o catolicismo e no segundo a política, desempenhavam o papel principal. De resto, um mínimo de conhecimentos sobre a história da república romana, por exemplo, basta para ver que o segredo da sua história é a história da propriedade fundiária. Por outro lado, ninguém ignora que já D. Quixote teve que se arrepender por ter acreditado que a cavalaria andante era compatível com todas as formas econômicas da sociedade.

33 «Value is a property of things, riches of man. Value, in this sense, necessarily implies exchanges, riches do not» (Observation on some verbal Disputes in Pol. Economy..., 1821. p. 16).

34 «Riches are the attribute of man, value is the atribute of commodities: A man or a community is rich. a pearl or a diamond is valuable (...) A pearl or a diamond is valuable as a pearl or a diamond» (S. Bailey, l. c., pp. 165 sq.).

35 O autor das Observations e S. Bailey acusam Ricardo de ter transformado o valor-de-troca, de coisa puramente relativa em algo de absoluto. Ao contrário, ele reduziu a relatividade aparente que estes objetos (tais como a pérola e o diamante, por exemplo) possuem como valor-de-troca, à verdadeira relação escondida sob esta aparência, à sua relatividade como meras expressões de trabalho humano. Se os partidários de Ricardo só souberam responder a Bailey de forma grosseira e nada concludente, isso só aconteceu porque não encontraram no próprio Ricardo nada que os esclarecesse acerca da relação íntima que existe entre o valor e a sua forma, ou seja, o valor-de-troca.

 

NOTAS DOS TRADUTORES

[1] Na realidade a referida obra está reunida em três capitulos da Secção I da edição definitiva de O Capital, secção que na 1ª edição constituía o Capítulo1. Na ed. francesa e na 2ª ed. alemã Marx reformou a arquitetura do livro, aliás de modo diverso para cada uma (cfr., por exemplo, infra nota [51]). Assim, neste prefácio, onde se lê «primeiro capítulo» deve ler-se «primeira secção».

[1a] Ferdinand Lassale (m. 1864) dirigente operário alemão e autor de vasta obra, especialmente sobre o direito, mas também sobre outros assuntos. Fundou em 1863 a União Geral dos Trabalhadores Alemães que em 1875 em Gotha se uniu com o Partido Social-Democrata Alemão, que fora fundado em 1869 em Eisenach. O seu nome ficou ligado fundamentalmente à ideia da «revolução a partir de cima», isto é, a partir do estado, e à política de compromisso de classes. Esta e outras ideias lassaleanas perduraram no movimento operário alemão, encontrando alguma expressão no programa de compromisso saído do Congresso de Gotha de 1875. As ideias lassalistas estão entre os erros apontados por Marx a esse programa, num texto desse ano hoje conhecido por Crítica do Programa de Gotha. Deste importante texto existem recentes edições em Portugal.

[2] Marx não concluiu para publicação senão o livro I. Os livros II e III foram selecionados e publicados por Engels respectivamente em 1885 e 1894. Os materiais destinados ao livro IV foram publicados por Kautsky entre 1905-10. Em vez dos dois volumes previstos, vieram a ocupar 6 grossos volumes com alguns milhares de páginas.

[3] A edição francesa saiu em fascículos de Agosto de 1872 a Maio de 1875. Marx haveria de incluir um posfácio, também contido na presente edição.

[4] Algumas passagens deste posfácio foram transportadas para a edição francesa (cfr. o posfácio a essa edição). Essas passagens são aqui dadas pela versão francesa. Em alguns casos acrescentamos, entre parêntesis retos, expressões do original alemão não incluídas na edição francesa.

[5] Anti-Corn-Law-League (Liga contra a lei dos cereais). Associação livre-cambista, fundada em 1838 pelos industriais Cobden e Bright, destinada a lutar pela abolição da lei dos cereais de 1815 que limitava fortemente a importação de cereais, favorecendo portanto a aristocracia agrária. Para a burguesia industrial importava revogar essa lei, a fim de enfraquecer a aristocracia fundiária e de, pela baixa do preço do pão, amortecer a pressão sobre os salários. A lei veio efetivamente a ser revogada em 1846.

(…)

[9] Na ed. alemã: «O Processo de Acumulação do Capital».

[9a] Como o próprio Marx diz no prefácio à 1ª ed. alemã, os três capítulos que constituem esta 1ª Secção de O Capital reproduzem o conteúdo do seu livro anterior Zur Kritik der politischen ökonomie (1859), para o qual frequentemente remete e que muitas vezes transcreve. Contudo, não foram incluídos em O Capital nem os anexos históricos A, B e C, nem a secção IV «Os metais preciosos» daquela obra. Nas remissões para essa obra utilizamos a ed. portuguesa, publicada em Lisboa em 1971, alterando a tradução quando isso nos pareceu necessário.

[10] Este parágrafo não existe na ed. definitiva alemã. Passou parcialmente da 1ª ed. alemã para a ed. francesa.

[11] Redação diferente no alemão: «Para simplificar, na nossa exposição consideraremos que toda a espécie de força de trabalho é, diretamente, força de trabalho simples, o que nos poupa apenas a tarefa da redução de um ao outro». Na verdade, Marx nunca chegou a desenvolver o importante problema da redução do trabalho complexo ao trabalho simples.

[12] Redação diferente deste período no alemão: «Força produtiva é sempre, naturalmente, a força produtiva de um trabalho útil, concreto, e, de fato, apenas determina o grau de eficácia de uma atividade produtiva, com objetivo determinado, durante um certo espaço de tempo.» Este texto apenas define mais claramente a força produtiva (ou produtividade) do trabalho.

[13] Cfr. Shakespeare, Henrique IV, I parte, III ato, cena III.

[14] Na ed. francesa esta nota vem manifestamente deslocada, no inicio do § 3º.

[15] O texto desta nota, que não consta da ed. francesa, é a reprodução, resumida, da primeira parte de outra nota da ed. francesa. Incluímos os dois textos. Ver infra, nota 30.

[16] Estes dois últimos períodos têm redação diferente no alemão: «Na relação de valor do tecido, o casaco figura como qualitativamente igual àquele, como coisa da mesma natureza, dado que é um valor. Ele figura aqui, pois, como uma coisa na qual o valor se manifesta ou que na sua forma natural, palpável, representa valor».

[17] «Paris vale bem uma missa». teria dito Henrique IV em 1583 ao converter-se ao catolicismo.

[18] Na análise que precede, Marx refere-se à obra de Aristóteles, Ética a Nicómaco, livro V. Cap. V.

[19] Cfr. de Marx: Miséria da Filosofia-Resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon (1847). Cap. 1 e Contribuição para a Crítica da Economia Política, ed. portuguesa (Lisboa 1971) p.73 (nota 44) e pp. 91 seg.

[20] Cfr. Goethe, Fausto, 1ª. Parte «Quarto de estudo».

[20a] Na ed. francesa: «Forme monnaie ou argent». Em nota justlfica-se: «A tradução exata das palavras alemãs Geld e Geldform apresenta uma dificuldade. A expressão «forme-argent» pode aplicar-se indistintamente a todas as mercadorias, salvo os metais preciosos [pois argent significa dinheiro e prata]. Não se poderá dizer, por exemplo, sem provocar confusão no espírito dos leitores: «forme-argent de l'argent», ou «l'or devient argent». De resto, a expressão «forme-monnaie» apresenta um outro inconveniente, pois em francês a palavra monnaie é frequentemente utilizada no sentido de moedas (…) ». Evidentemente, tal perigo não existe no português. Por isso traduziremos sempre Geld, etc, por dinheiro, etc, e utilizaremos o termo moeda para traduzir o alemão Münze (no francês traduzido, segundo os casos, por numeraire ou espèces).

[21] «Para encorajar os outros». - Depois da derrota das revoluções de 1848-49 na Europa e durante o período de reação e de «calmaria» que se lhe seguiu, houve um grande entusiasmo, nos círculos das classes altas, pelo espiritismo, incluindo o jogo da «mesa dançante». Ao mesmo tempo, na China, a partir de 1850, dava-se o levantamento dos camponeses, conhecido pela Revolta dos Tai-ping.

[22] Também em Portugal as palavras jeira e jornal designaram medidas da terra, quantidade de terra trabalhada durante um dia por um homem ou por uma junta de bois. O seu uso subsiste em muitas regiões do pais.

[23] «Paralelogramos de Owen». Owen, «socialista utópico» inglês (m. em 1858) propugnava a criação de colônias segundo os seus planos de reforma social, e tentou provar que a forma mais conveniente para elas seria a do paralelogramo ou a do quadrado.

[24] Na ed. francesa esta nota e a seguinte estão traduzidas mais ou menos livremente e sem referência à Contribuição. Aproximamos o texto do original.

[25] Este parágrafo contém uma das poucas passagens em que Marx esboça os traços da sociedade futura, e mesmo assim não como antecipação mas apenas como hipótese de trabalho. Note-se, contudo, a referência, também rara nos textos clássicos do marxismo, à planificação como característica da sociedade socialista.

[26] Segundo o filósofo grego Epicuro os deuses habitavam o intermundos, o espaço entre os mundos, não tendo influência sobre a vida do mundo e dos homens.

[27] Na ed. alemã a presente nota começa a partir daqui. O texto precedente constitui, resumido, a nota 17a, também incluída nesta edição.

[28] Na ed. francesa esta nota vem colocada no final do § 3, al. D. Parece deslocada aí.

[29] Redação diferente destes dois períodos na ed. alemã: «Uma vez que a forma-mercadoria é a forma mais geral e mais elementar da produção burguesa - razão por que surgiu cedo, embora não da maneira dominante e caracteristica de hoje - daí que pareça relativamente fácil aperceber o seu caráter fetichista. No caso de formas mais concretas até essa aparência de simplicidade desaparece».

[30] Shakespeare, Much Ado for Nothing, ato III, cena III.

in Centelha - Promoção do Livro, SARL, Coimbra, 1974

Tradução de J. Teixeira Martins e Vital Moreira

http://www.geocities.com/Paris/rue/5214