domingo, 21 de junho de 2009

Irã protesta: testemunha ocular conta

Manifestante iraniano descreve revolta em Teerã e revela como o movimento de oposição continua sendo um desafio à reeleição de Mahmoud Ahmadinejad



Teerã, 4:30 hora local, Enghelab Street

Costumo reunir meus alunos aos sábados para uma aula particular. Cozinhamos, comemos juntos e em seguida conversamos sobre filosofia. Mas desta vez não houve aula. Apenas tentamos manter a nossa moral. Estávamos bem determinados, mas com medo. É como posso descrever a maioria dos que vieram participar da aula de hoje. Nos sentimos muito vulneráveis, mais do que nunca, mas ao mesmo tempo estávamos conscientes do nosso poder. Não importa o quão influentes fôssemos coletivamente, muito pouco poderíamos fazer pela nossa proteção hoje. Nós só podíamos levar nossos ossos e carne para a rua e expô-los a cassetetes e balas. Dois diferentes sentimentos misturados lutam dentro de você. Viver ou permanecer vivo, essa é a questão.

Então chegou outra estudante para almoçar conosco, mas não veio para a aula. Ela está muito assustada, finge manter controle e depois explode em lágrimas. Ela diz que odeia ver pessoas sofrendo. Dizemos-lhe que sofreram durante anos. Ela diz que não quer que as pessoas morram. Digo-lhe que milhares de pessoas morrem anualmente nas estradas no Irã, pelo menos desta vez, seria por uma boa causa. Ela diz que somos uma elite, que podemos nos guardar para melhores momentos, que poderíamos ser mais úteis. Respondemos que não não há diferença entre as pessoas com tal condição e que não poderíamos fazer mais do que fazemos. Fazemos o que está a nosso alcance. Também temos nossos próprios medos.

Assim que terminamos o almoço sentamos para ler poemas de Mirzadeh Eshghi. Ele foi um anarquista revolucionário à época da Revolução Constitucional de 1906-11, morto pela franqueza de seu discurso. Sua decisão enquadra-se na nossa situação. Quando enviei três poemas dele para alguns amigos depois do discurso de quinta-feira, muitos me ligaram perguntando se eu não estava me expondo demais. Então eu coloquei uma observação ao lado do meu nome no Gmail: "Você teme cabeças degoladas?" Citação de um outro poeta que não me lembro. Poemas desempenham um papel importante por aqui. No início, pensei que talvez fosse demasiado romântico enviar poesia para os outros numa situação dessas, mas depois, pensei comigo mesmo, concluí que nada influencia mais os iranianos que a poesia. Nestes dias, tudo é cercado de influência e de medo.

Os poemas que lemos são amargos, irônicos e extremamente ridículos. Você escreve poesia quando a tristeza é maior do que você pode tolerar. Você ri. Bom, vamos lá. Faltam quinze para as quatro. Mas a hora seguinte se mostrará mais engraçada do que esperávamos.

No ônibus, todo mundo segue para o mesmo destino. Todas as ruas para Enghlab estão bloqueadas. Os guardas nos dizem onde podemos ou não ir. Eles nos indicam uma rua estreita que conduz ao Enghlab. Entrei em pânico: porque eles só deixaram esta rua livre? Eles querem que a gente vá por ela para nos cercar? Duas manifestações foram realizadas em Enghelab e Azadi nos últimos dias, que significam respectivamente, revolução e liberdade. Eu digo a meus alunos, "Estamos reciclando palavras". Enghlab está ocupada, bem ocupada, mas lá não há exatamente uma manifestação. As pessoas mostram o sinal V com os dedos, a pé, em silêncio. Na frente da Universidade de Teerã, você vê os alunos forçando as grades do lado de dentro como numa prisão. Eles gritam. Mas você não consegue ouvir direito o que eles dizem. Na frente dos alunos sobre a calçada, do outro lado do bar, há duas colunas da polícia de choque e uma fileira de milicianos Basij empunhando cartazes com insultos aos manifestantes dos dias anteriores. Um diz: "A decisão cabe ao MI6". Uma hora mais tarde, quando a rua já não estava tão lotada, fui até o cara com o cartaz e perguntei-lhe: "O que é MI6?"

"Britain's intelligent service", ele respondeu. "É diferente da Scotland Yard?" Perguntei. "Não, é a mesma coisa." "Dá para ver", eu disse. As ruas estavam cheias de gente. Caminhamos para cima e para baixo. Formávamos um grupo de quatro. Encontramos amigos, mas não nos juntamos a eles. Não queríamos mudar o humor alterando nossa companhia, estávamos bem assim.

Em seguida, vem a atração do dia. Dois veículos com jatos de água. São enormes, do tamanho de um automóvel, mas mais alto e com janelas vedadas e dois canhões de água em cima de cada um. Nós rimos. Eles não sabem como usá-lo. Eles atiram nas janelas do segundo andar, na tropa de choque e no povo, eles atingem todo mundo, incluindo algumas meninas em manteaus apertados. Está mais para Zurique do que para Teerã. Uma máquina está emperrada. Eles não sabem como operá-la. É um dia quente, o sol quente está intolerável e as pessoas se sentem bem com a água refrescante. Grande parte do tempo os jatos não são muito poderosos. É como se estivessem regando grama. Isso tudo apenas não se encaixa no horror que paira no ar, a agressividade com que as pessoas são atingidas com bastões. Um belo dia. Os dias foram bonitos durante toda a semana, aí você vê como a natureza é irônica.

Eles empurram a multidão para frente e para trás, revistam aqui e alí mas logo percebem há gente por toda parte. Ouvimos tiros de revólver, mas as pessoas não correm. São de festim. Ninguém é atingido.

Então, em um par de minutos, a multidão vai embora, a tropa de choque sai dali, e os estudantes dispersam. Não entendi porquê. Privado de comunicação, você nunca vê a grande perspectiva. Talvez estejam atacado a universidade pela outra entrada.

Ouvimos dizer que há uma multidão na Praça Azadi e começamos a sair. À medida que pulávamos as grades, um estudante, com o rosto coberto, sorri amargamente, "Eles zuaram com o dormitório à noite".

Continuamos a caminhar. Tivemos uma sensação horrível. Há uma manifestação em algum lugar mas não conseguimos chegar lá. É a única forma de se sentir melhor. Desejávamos estar no meio da multidão. Até agora tudo foi brincadeira, mas precisamos gritar. Nosso grito está preso na garganta.

Então, na Praça Towhid a cena muda drasticamente. As ruas que dão acesso para Azadi estão bloqueadas. Mas desta vez, as pessoas não mudam seu caminho. Eles seguem em frente e vão para o confronto. Há um chuveiro de pedras. Gás lacrimogêneo. Fogo. Há engarrafamento e as pessoas estão nas calçadas. A cena de batalha é enorme. Nós não podemos ver os limites, mas se estende pelas ruas próximas. Uma aluna minha caminha mais depressa do que eu. Sua mãe conseguiu convencê-la de ficar em casa por dois dias, mas agora, finalmente concordou em deixá-la sair no dia mais perigoso. As pessoas estão gritando, "Abaixo a ditadura". A tropa de choque também atira pedras de volta. As pessoas não fogem mais. Eu também peguei um tijolo quebrado e joguei na polícia. Estou espantado. Nunca pensei que faria isso. Mas eu preciso prática: foi um tiro muito ruim. Pego um outro, do tamanho de uma romã e guardo comigo escondido na palma da mão. Minha sensação é uma mistura de professor universitário com hooligan.

Para avançar tivemos de passar pelo gás lacrimogêneo. Pedimos a um carro para nos dar uma carona. Depois, veio o ataque. Eles não querem ser vistos como inimigos do povo, eles querem mostrar que tudo está bem e que estão perseguindo apenas baderneiros. Mais a frente vejo uma mulher sendo espancada. Ela está horrorizada e histérica, mas não tanto quanto o agente da polícia da tropa de choque que a enfrenta. Ela grita, "Onde posso ir? Diga-me. Fui por aqui e você me bateu, fui por alí e você me bateu novamente. Onde posso ir?" Absolutamente atordoado, brandindo seu bastão, o agente diz. "Raios! Raios! Por que diabos deveria saber?" Então eu me pergunto até que ponto esses agentes podem tolerar esse stress? Quantos dentre eles estariam dispostos a dar suas vidas por alguém como Ahmadinejhad?"

O condutor diz-nos que embora não tendo votado, saiu às ruas todos esses dias para bater nos Basijis. Em cada passagem ele é orientado pela polícia a seguir numa direção diferente da que ele quer e depois de um tempo percebemos que estávamos rodando em círculos. Vimos os policiais amontoando pessoas em um furgão usado para levar carne congelada.. Depois de alguns minutos mais tarde, uma nova cena inesperada. Saímos dali. Aquilo virou um verdadeiro campo de batalha. E desta vez, dos grandes. Colunas de fumaça por todo lado. Você dificilmente conseguia ver o asfalto. Ficou coberto com tijolos e pedras. Aqui as pessoas mostraram seu lado superior. A rua é composta por três pistas, a do meio estava com barreiras por causa da construção do metrô. Os trabalhadores ultrapassaram a barreira e mostraram o sinal de V com os dedos. Aí passaram a jogar pedra e madeira para a rua para fornecer armamento necessário aos manifestantes. Digo a mim mesmo, "Olha esses pobres, aqueles a quem Ahmadinejhad sempre se refere". Mas o nome do presidente não está mais na moda. Desta vez, o líder virou alvo dos slogans, algo inédito depois de três décadas. É um belo pôr-do-sol, com raios de luz penetrando nas nuvens. Sentimo-nos seguros entre as pessoas que se deslocavam para a frente e para trás rechaçando os ataques os policiais da tropa de choque.

Duas motos dos Basijis ardem em chamas. Os manifestantes aprenderam como fazer isso rápido. Eles deitam a moto de lado, ateiam uma pequena chama que logo se espalha a onto de tornar-se inextinguível. Fomos até uma ponte para pedestres e olhamos as pessoas gritando, "Abaixo Khamenei" mas essas coisas boas não duraram muito. Um Basiji é capturado e logo some debaixo das pancadas da multidão. Parecia o Coliseu romano, as pessoas que estavam na ponte gritavam, "Bate!" Eu gritava com eles, até ser alertado pela minha consciência. O que está acontecendo comigo? Dava para ver um grupo de dez desferindo socos e pontapés.

Em Gisha, houve uma cena semelhante. Novamente os manifestantes tomam o cruzamento e ouve-se um buzinaço. Várias motos ardem em chamas. De repente algo me impressiona. Noto algo vermelho, que mais tarde se revela ser um homem, com idade em torno de 50, com a cabeça coberta de sangue, agachado, as pessoas passam por ele como se fosse uma lata de lixo. Em seguida, vem um cara com uma longa vara para atingir o já batido Basiji. As pessoas apressam-se para detê-lo. Ele está furioso, "Por que não posso bater nele? Eles espancam as menininhas! Eles atacam todos! Bastardo! Eu gritei para ele, "Mas nós não somos bestas! Não somos como eles!" Alguém pega o Basiji e o arrasta para longe da multidão. Penso, porém, o sacana mereceu. Imagine alguém sair de sua casa pela manhã, só para bater em pessoas que nem conhece." Eu não reconheço mais em mim os meus sentimentos.

Você pode pegar qualquer carro para voltar para casa. Agora as pessoas confiam umas nas outras. Uma mulher sentada no banco de trás ao meu lado diz: "Não se trata mais de Mousavi ou de resultados eleitorais. Temos sofrido durante trinta anos. Nós não vivemos uma vida." Um homem velho ao lado dela me oferece pão fresco. Elas contam piadas sobre os valores políticos e riem em voz alta. Sentem-se vitoriosos. "Há trinta anos estou esperando por esse momento. Agora me sinto aliviado." Ela escreve o meu número de telefone para enviar-me notícias em primeira mão. "Envie-o para The Guardian!", pede ela.

Pode deixar. Eu prometo.

Extraído de guardian.co.uk, domingo, 21 jun 2009 12,35 BST

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