Murray Rothbard argumenta que «a 'direita' libertária não se opõe à desigualdade». [For a New Liberty, pág. 47]. Em contraste, a «esquerda» libertária se opõe à desigualdade pelos seus efeitos danosos à liberdade individual.
Parte da razão pela qual o «anarco»-capitalismo dedica pouco ou nenhum valor à «igualdade» deriva de como definem esse termo. Murray Rothbard define igualdade como:
«A e B são 'iguais' se são idênticos em cada um de seus respectivos atributos [...], portanto, há um e apenas um modo de dois indivíduos serem realmente 'iguais' em sentido pleno: eles devem ser idênticos em todos seus atributos».
Daí obviamente conclui que os «homens não são uniformes [...] as espécies, o gênero humano, são caracterizados exclusivamente por um alto grau de variedade, diversidade, diferenciação: em suma, desigualdade». [Egalitarianism as a Revolt against Nature and Other Essays, p. 4, p.5]
Em outras palavras, cada indivíduo é único. Algo que nenhum igualitário nunca negou. Com base nesta surpreendente perspicácia, ele conclui que a igualdade é impossível (exceto a «igualdade de direitos») e que a tentativa para alcançar «igualdade» é uma «revolta contra natureza» -- como se qualquer anarquista alguma vez tivesse defendido a noção de igualdade como sendo idêntico!
E assim, por sermos todos únicos, o produto de nossas ações não será idêntico, assim as desigualdades sociais surgem devido a diferenças sociais e não devido ao sistema econômico a que estamos submetidos. Desigualdade de dons implica em desigualdade de resultados e, portanto, desigualdades sociais. Como as diferenças individuais são um fato da natureza, as tentativas de criar uma sociedade baseada na «igualdade» (isto é tornando todo mundo idêntico em termos de posses e assim sucessivamente) é impossível e «antinatural».
Antes de continuar, é importante destacar como Rothbard destrói a linguagem na medida em que constrói seus pontos de vista, e que ele não é o primeiro a abusar da linguagem deste modo particular. Em 1984 de George Orwell, a expressão «todos os homens são criados iguais» poderia ser traduzido em Newspeak, mas faria tanto sentido quanto dizer «todos os homens têm cabelos vermelhos», uma falsidade óbvia (veja «Os Princípios de Newspeak» Apêndice). É bom saber que o «Sr. Libertariano» está roubando idéias do Big Brother, e pela mesma razão: torna o pensamento crítico impossível pela restrição do significado das palavras.
«Igualdade», no contexto da discussão política, não significa «idêntico», normalmente significa igualdade de direitos, respeito, valor, poder e assim sucessivamente. Não insinua tratar identicamente todo mundo (por exemplo, esperar que um homem com oitenta anos faça um trabalho idêntico ao de outro com dezoito anos viola tanto o respeito como a unicidade dos indivíduos). Para os anarquistas, como escreve Alexander Berkman, «igualdade não significa uma igual quantia mas oportunidade igual [...] Não cometa o erro de identificar igualdade na liberdade com igualdade forçada num campo de prisioneiros. A verdadeira igualdade anarquista implica em liberdade, não quantidade. Isso não significa que todo mundo tem que comer, beber, ou usar as mesmas coisas, fazer o mesmo trabalho, ou viver da mesma maneira. Longe disto: na realidade, bem pelo contrário. As necessidades e os gostos individuais diferem, como diferem os apetites. É a oportunidade igual para satisfazê-los que constitui a verdadeira igualdade. Longe de nivelamento, tal igualdade abre a porta para a maior variedade possível de atividades e desenvolvimento. Diante da diversidade do caráter humano, apenas a repressão dessa livre diversidade resulta em nivelamento, uniformidade e monotonia. Aproveitar oportunidades e expressar individualidade significa desenvolver dessemelhanças naturais e variadas [...]. Viver em liberdade, em anarquia, fará mais do que apenas liberar o homem de sua presente escravidão política e econômica. Será apenas o primeiro passo, a preliminar para uma existência verdadeiramente humana». [The ABC of Anarchism, p. 25]
Assim, os anarquistas rejeitam a definição de Rothbardian-Newspeak de igualdade como destituída de sentido dentro da discussão política. Duas pessoas não são idênticas e impor uma «idêntica» igualdade entre eles significaria tratá-los como desiguais, isto é, sem igual valor ou sem lhes dar respeito igual enquanto seres humanos e indivíduos.
Assim o que fazer com a reivindicação de Rothbard? Ele cita Rousseau em seus argumentos «é [...] inútil indagar se há alguma conexão essencial entre as duas desigualdades [social e natural]; seriam apenas questões, em outras palavras, se aqueles que comandam são necessariamente melhores que aqueles que obedecem, e se a força do corpo ou da mente, a sabedoria, ou a virtude são sempre encontradas em determinados indivíduos, proporcionalmente ao poder ou riquezas que eles detêm: essa questão conviria talvez ser discutida por escravos diante de seus senhores, mas seria altamente imprópria a homens razoáveis e livres em busca da verdade». [The Social Contract and Discourses, p. 49]. Aqui há outros pontos em discussão.
A singularidade dos indivíduos sempre existiu mas por um vasto período da história humana vivemos em sociedades muito igualitárias. Realmente, se a desigualdade social fluísse mesmo de desigualdades naturais todas as sociedades seriam marcadas por isto. Este não é o caso. Realmente, considerando um exemplo relativamente recente, muitos que visitaram os Estados Unidos em seu início, notaram sua natureza igualitária, algo que logo mudou com a proliferação do trabalho assalariado e o capitalismo industrial (altamente dependente da ação estatal, diga-se de passagem -- veja seção F.8). Isto implica em que a sociedade onde vivemos (baseada na propriedade, nas relações sociais que ela gera e daí por diante) tem um impacto bem mais decisivo para as desigualdade do que para diferenças individuais. Assim certas bases da direita tenderão a aumentar desigualdades «naturais» (assumindo, por absurdo, que seja a fonte da desigualdade inicial, em vez de, digamos, a violência e a força). Como Noam Chomsky argumenta:
«Presumivelmente é o caso de, em nosso 'mundo real', algumas combinações de atributos conduzir ao sucesso na medida em que respondem 'as demandas do sistema econômico' . . Alguém poderia supor que uma mistura de avareza, egoísmo, falta de preocupação para com os outros, agressividade, e características semelhantes exercem um papel importante [no capitalismo] [...] Seja lá qual for o conjunto correto destes atributos, surge a questão: o que fazer diante do fato, se isso for um fato, de que alguns herdeiros de tal combinação de atributos tendem ao sucesso material? Tudo o que [...] diga respeito às nossas sociedades particulares e arranjos econômicos [...] o poder igualitário aponta na direção de que, em todos os casos, a ordem social mude de forma que o conjunto de atributos que tendem a trazer sucesso nada tenham a ver com essas coisas [avareza, egoísmo, indiferença, agressividade] [...] » [The Chomsky Reader, p. 190]
Assim, talvez, se mudarmos a sociedade então as desigualdades que vemos hoje também desaparecerão. É mais que provável que a diferença natural deu lugar a desigualdades sociais, especialmente desigualdades de propriedade (que tende a aumentar, em vez de diminuir a desigualdade). E como discutimos na seção F.8 estas desigualdades de propriedade foram inicialmente resultado da força, não diferenças em habilidade. Assim, reivindicar que a desigualdade social flui de diferenças naturais é falso pois a maioria das desigualdades sociais surgem pela violência e pela força. Estas desigualdades iniciais foram aumentadas pela base do direito da propriedade capitalista de forma que a desigualdade dentro do capitalismo precisa de coisas como, por exemplo, a existência do trabalho assalariado, em vez de diferenças «naturais» entre indivíduos.
Se nós olharmos para o capitalismo, vemos que nos locais de trabalho e pelas indústrias em geral muitos, senão todos, indivíduos únicos recebem idênticos salários por idêntico trabalho (embora este muitas vezes não seja o caso das mulheres e dos negros, que recebem um salário menor que os homens, e trabalhadores brancos). Semelhantemente, os capitalistas introduziram desigualdades salariais e hierarquias deliberadamente por nenhuma outra razão senão a de dividir (e assim governar) a mão-de-obra (veja seção D.10). Assim, se assumimos que igualitarismo é uma revolta contra a natureza, então muito da vida econômica capitalista está em tal revolta (e quando não está, as «naturais» desigualdades são impostas artificialmente pelos que estão no poder).
Assim, diferenças «naturais» não resultam necessariamente em desigualdade como tais. Diante de um sistema social diferente, as diferenças «naturais» seriam encorajadas e celebradas bem mais do que o são sob o capitalismo (conforme discutimos na seção B.1, a hierarquia assegura o esmagamento da individualidade em vez de seu encorajamento) sem qualquer mudança na igualdade social. O clamor de que diferenças «naturais» geram desigualdades sociais é um posicionamento extremamente distorcido -- assume o direito social com base na propriedade como definitivo e ignora a fonte inicial da desigualdade: a propriedade e o poder. Realmente, a desigualdade de resultado ou recompensa será influenciada mais provavelmente através das condições sociais em vez das diferenças individuais (como seria o caso em uma sociedade baseada no trabalho assalariado ou outras formas de exploração).
Outra razão para o equívoco «anarco»-capitalista sobre igualdade é que eles acham que a «liberdade transtorna os padrões»(veja seção F.2.5, por exemplo). Ou seja, a igualdade só poderia ser mantida restringindo a liberdade individual por trocas ou tributações de renda. Porém, este argumento falha em reconhecer que a desigualdade também restringe a liberdade individual (veja próxima seção, por exemplo) e que o vigamento dos direitos de propriedade capitalista não é o único possível. Afinal de contas, dinheiro é poder e desigualdade pelo poder facilmente resulta em restrições de liberdade e transforma a maior parte das pessoas em compradores em vez de produtores livres. Em outras palavras, uma vez que certo nível de desigualdade é alcançado, a propriedade em vez de promover, conflita com os fins que eventualmente legitimariam a propriedade privada. Além disso, Nozick (em seu argumento de que «a liberdade transtorna os padrões») «produziu [...] um argumento para a propriedade privada irrestrita que usa a propriedade privada irrestrita, e assim ele contorna a pergunta que tenta responder». [Andrew Kerhohan, «Capitalismo e auto-propriedade», de Capitalism, pág. 71]. O trabalhador empregado por um capitalista, por exemplo, não pode livremente trocar as máquinas ou matérias-primas que utiliza, mas Nozick não classifica tal «restrição» aos direitos de propriedade como infração à liberdade (naturalmente, ele nem mesmo considera que a escravidão assalariada por si só restringe a liberdade).
Assim com respeito à reivindicação de que igualdade só poderia ser mantida mediante contínua interferência nas vidas de pessoas, os anarquistas diriam que as desigualdades também as produziram através dos direitos de propriedade capitalista, que envolvem uma extensa e contínua interferência nas vidas das pessoas. Afinal de contas, como Bob Black nota «seu capataz ou supervisor lhe dá mais ordens em uma semana do que a polícia lhe daria por toda uma década» sem falar de outros efeitos da desigualdade como tensão, doença e assim por diante [Libertarian as Conservative]. Assim, dizer que igualdade significa ou pode significar infringir a liberdade, ignora o fato que que a desigualdade também infringe a liberdade. A reorganização da sociedade poderia efetivamente minimizar desigualdades eliminando a fonte principal de tais desigualdades (o trabalho assalariado) através da autogestão (veja seção I.5.12 para uma discussão sobre «ação capitalista» dentro de uma sociedade anarquista). Não temos nenhum desejo de restringir a livre troca (afinal de contas, a maioria dos anarquistas deseja ver o «valor econômico» cedo ou tarde tornar-se uma realidade) mas argumentamos que a livre troca não precisa envolver os direitos de propriedade irrestrita assumidos por Nozick. Conforme discutimos nas seções F.2 e F.3.1, a desigualdade pode facilmente conduzir a situações onde a propriedade privada é usada para justificar sua própria negação, de forma que o direito irrestrito de propriedade chega ao ponto de arruinar significativamente a auto-determinação (que muitos anarquistas usualmente chamam de «liberdade» mais do que de propriedade privada) que muitas pessoas intuitivamente identificam com o termo «propriedade privada».
Assim, para os anarquistas, a oposição «anarco»-capitalista à igualdade desvia-se do essencial e torna-se extremamente pobre. Os anarquistas não desejam tornar a humanidade «idêntica» (o que seria impossível e uma total negação da liberdade e da igualdade), mas construir relações sociais entre indivíduos iguais em poder. Em outras palavras, desejam uma situação onde pessoas interagem juntas sem poder institucionalizado ou hierarquia e são influenciadas «naturalmente» umas pelas outras de forma que diferenças (individuais) entre (social) iguais (sociais) aplicam-se em determinados contextos. Citando Michael Bakunin, «a maior inteligência não seria igual a uma compreensão do todo. Isso resulta [...] na necessidade da divisão e da associação do trabalho. Eu recebo e eu dou -- tal é a vida humana. Cada um dirige e é por seu turno dirigido. Então não há nenhuma autoridade fixa e constante, mas uma troca ininterrupta de mútua, temporária, e, acima de tudo, voluntária autoridade e subordinação». [God and the State, p. 33].
Tal ambiente só pode existir dentro de associações autogeridas, pois o capitalismo (isto é, trabalho assalariado) cria relações muito específicas e instituições de autoridade. É por essa razão que anarquistas são socialistas (isto é, contra o trabalho assalariado, contra a existência de um proletariado ou de uma classe trabalhadora). Em outras palavras, os anarquistas apóiam a igualdade precisamente porque nós reconhecemos que todo o mundo é único. Se falamos com seriedade sobre coisas como «igualdade de direitos» ou «igual liberdade» então as condições devem ser tais que as pessoas possam desfrutar tais direitos e liberdades. Se assumirmos que todos têm o direito de desenvolver plenamente suas capacidades, por exemplo, então a desigualdade de recursos e portanto de poder dentro da sociedade destrói aquele direito simplesmente porque as pessoas não têm os meios para exercitar livremente suas capacidades (elas estão sujeitas à autoridade do chefe, por exemplo, durante as horas de trabalho).
Assim, em contraste direto com o anarquismo, a direita libertariana não se preocupa com nenhuma outra forma de igualdade exceto a «igualdade de direitos». Isto os torna cegos às realidades de vida; em particular, ao impacto do poder econômico e social nos indivíduos dentro da sociedade e das relações sociais de dominação que eles criam. Os indivíduos podem ser «iguais» diante da lei e em direitos, mas eles podem não ser livres devido à influência da desigualdade social, das relações criadas e de como isso afeta a lei e a habilidade do oprimido em usá-la. Por causa disto, todos os anarquistas insistem que a igualdade é essencial para a liberdade, inclusive os de tradição Individualista que os «anarco»-capitalistas tentam cooptar --«Spooner e Godwin insistem que a desigualdade corrompe a liberdade. O anarquismo deles é dirigido tanto contra a desigualdade como contra a tirania» e «ao passo que os simpatizantes do anarquismo individualista de Spooner, [Rothbard e David Friedman] falham em perceber ou convenientemente negligenciam suas implicações igualitárias.» [Stephen L. Newman, Liberalism at Wit's End, pág. 74, pág. 76]
A importância da igualdade é mais completamente discutida na próxima seção. Aqui apenas enfatizamos que sem igualdade social, a liberdade individual é restringida a tal ponto que se torna um escárnio (essencialmente, a liberdade da maioria limitou-se mais a escolher o patrão que o governará do que ser livre dentro e fora de trabalho).
Naturalmente, definir «igualdade» de uma maneira tão restritiva revela a ideologia de Rothbard como pura tolice. Como L.A. Rollins destaca, «O libertarianismo, a defesa da 'sociedade livre' na qual as pessoas desfrutam de 'igual liberdade' e 'direitos iguais', é de fato uma forma específica de igualitarismo. Como tal, o próprio libertarianismo é uma revolta contra natureza. Se pessoas, pela natureza biológica delas, são desiguais em todos os atributos necessários para alcançar, e preservar 'liberdades' e 'direitos' [...] então não há nenhum modo das pessoas poderem desfrutar 'igual liberdade' ou 'direitos iguais'. Se uma sociedade livre é concebida como uma sociedade de 'igual liberdade', então ela não é 'sociedade livre' coisa nenhuma».[The Myth of Natural Law, p. 36]
Sob o capitalismo, liberdade é uma mercadoria como tudo o mais. Quanto mais dinheiro você tem, maior é sua liberdade. Liberdade «igual», no sentido de Newspeak-Rothbardian, não pode existir! No que tange a «igualdade diante da lei», é claro que tal esperança sempre é atirada contra os muros da riqueza e do poder do mercado (veja mais sobre isso na próxima seção). Mo que toca a direitos, naturalmente, tanto o rico como o pobre tem o «igual direito» de dormir sob uma ponte (presumindo que o dono da ponte concorde, claro!); mas o dono da ponte e os sem-teto tem direitos diferentes, e assim não pode ser dito que eles têm «direitos iguais» no sentido de Newspeak-Rothbardian. É desnecessário dizer que pobre e rico não usam «igualmente» o «direito» de dormir sob uma ponte.
Bob Black observa em The Libertarian as Conservative que «o tempo de sua vida é uma mercadoria que você pode vender mas nunca comprá-lo de volta. Murray Rothbard encara o igualitarismo como uma revolta contra natureza, mas o dia dele dura 24 horas, como o de todo mundo».
Pela distorção do significado das palavras no debate político, as vastas diferenças de poder na sociedade capitalista podem ser «responsabilizadas» não por um sistema injusto e autoritário mas pela «biologia» (afinal de contas, somos todos indivíduos únicos). Diferentemente dos genes (embora corporações de biotecnologia estejam trabalhando nisto, também!), a sociedade humana pode ser mudada, pelos indivíduos que fazem parte dela, refletindo as características básicas que todos nós compartilhamos em comum -- nossa humanidade, nossa habilidade para pensar e sentir, e nossa necessidade de liberdade.
F.3.1 Por que desconfiar de pessoas que desprezam a igualdade?
Simplesmente porque aqueles que desprezam à igualdade tendem a acabar com a liberdade da maioria, negando-a de muitos modos importantes. A maioria do «anarco»-capitalistas e libertarianos de direita negam (ou melhor ignoram) o poder de mercado. Rothbard, por exemplo, proclama que o poder econômico não existe; e que aquilo que as pessoas chamam de «poder econômico» é «simplesmente o livre direito de recusar fazer uma troca». [The Ethics of Liberty, pág. 222]. Assim, o conceito fica sem sentido.
Porém, o fato é que existem substanciais centros de poder na sociedade (fontes de poder hierárquico e relações sociais autoritárias) além do estado. A falácia central do «anarco»-capitalismo é a (não declarada) suposição de que os vários atores dentro de uma economia têm poder relativamente igual. Esta suposição foi notada por muitos leitores dos livros deles. Por exemplo, Peter Marshall destaca que «'anarco-capitalistas' como Murray Rothbard assumem que os indivíduos teriam igual poder de barganha em uma sociedade baseada no mercado [capitalista». [Demanding the Impossible, pág. 46]. George Walford também deixa isso claro quando comenta The Machinery of Freedom de David Friedman:
«A propriedade privada concebida pelos anarco-capitalistas é bem diferente do que poderíamos imaginar. É como imaginar uma pessoa agradável, quando ela é de fato sórdida. No anarco-capitalismo não haveria qualquer Seguro Nacional, nenhuma Previdência Social, nenhum Serviço de Saúde Nacional e nem mesmo qualquer coisa parecida com Programas Sociais; não haveria nenhum bombeiro a serviço do público. Seria uma sociedade rigorosamente competitiva: trabalhe, implore ou morra. Na medida em que estudam, as pessoas aprendem que cada deve comprar, pessoalmente, todos os bens e serviços necessários, não apenas comida, roupa e abrigo, mas também educação, serviços médicos, serviços sanitários, justiça, polícia, todas as formas de segurança e seguro, e até mesmo permissão para usar as ruas (pois elas também seriam propriedade privada). Na medida em que lemos essas coisas uma característica curiosa emerge: todo mundo sempre tem dinheiro suficiente para comprar todas estas coisas.
«Não há nenhum eventual cuidado público, hospitais ou hospícios, mas não existe qualquer pessoa morrendo pelas ruas. Não há nenhum sistema educacional público mas não existe nenhuma criança sem educação, nenhum serviço de segurança público mas não há ninguém incapaz comprar os serviços de uma empresa de segurança eficiente, nenhuma lei pública mas ninguém incapaz comprar o uso de um sistema legal privado. Nem existe ninguém capaz de comprar muito mais do que qualquer pessoa; nenhuma pessoa ou grupo possui poder econômico sobre os demais.
«Nenhuma explicação é oferecida. Os anarcocapitalistas simplesmente consideram tais coisas como privilégios de sua sociedade, embora não possuam nenhum instrumento para conter a competição (para isto precisariam exercer autoridade sobre os competidores, apesar de tratar-se de uma sociedade anarcocapitalista), a competição não chegaria ao ponto de ninguém sofrer com ela. Embora proclamem seu sistema como competitivo, onde reina sem controle os interesses privados, eles o apresentam também como um sistema co-operativo, em que nenhuma pessoa ou grupo lucra as custas dos outros». [On the Capitalist Anarchists]
Esta suposição de (relativa) igualdade vem à tona no conceito de propriedade dos «domicílios» de Murray Rothbard (discutido na seção F.4.1). Tais imagens, os «domicílios», retratam um conjunto de indivíduos e famílias que constróem, em um lugar ermo, uma casa para eles, lutando contra os elementos da natureza e assim sucessivamente. Não invoca a idéia de corporações transnacionais que empregam dezenas de milhares das pessoas ou populações sem terra, sem recursos e vendendo o trabalho deles a outros. Realmente, Rothbard defende que não existe poder econômico (pelo menos sob o capitalismo; como nós vimos na seção F.2.1 quando ele traça algumas exceções -- altamente ilógicas). Semelhantemente, o exemplo de David Friedman de uma firme «defesa» pró pena de morte e anti pena de morte previamente pactuada (veja seção F.6.3) presume que as empresas têm igual poder de barganha e iguais recursos -- se não, então o processo de barganha seria muito unilateral e a companhia menor pensaria duas vezes antes de enfrentar a maior na batalha (resultado provável se eles não conseguem chegar em um consenso neste assunto) e chegar a algum compromisso.
Porém, a negação do poder do mercado por parte da direita libertariana é algo surpreendente. A necessidade, não a redundância, da igualdade é requerida apenas se os problemas inerentes do contrato não se tornarem muito óbvios. Se é assumido que alguns indivíduos têm significativamente mais poder que outros, e se eles sempre tiverem interesses egoísticos, então um contrato que crie parceiros iguais é impossível -- o pacto estabelecerá uma associação de senhores e servos. É desnecessário dizer que o forte apresentará o contrato como sendo vantajoso para ambos: o forte não tem que trabalhar (e ficar rico, isto é, mais forte) e o fraco recebe uma renda e assim não passa fome.
Se a liberdade é considerada enquanto função da propriedade então é evidente que os indivíduos que carecem de propriedade (exceto seu próprio corpo, claro) perdem controle efetivo sobre sua própria pessoa e trabalho (que é, importante não esquecer, a base dos direitos naturais iguais que eles defendem). Quando alguém pechincha poder é porque é fraco (que é tipicamente o caso dentro do mercado de trabalho) com o passar do tempo, as trocas tendem a aumentar as desigualdades de riqueza e poder, em vez de contribuir para uma equalização.
Em outras palavras, o «contrato» não repõe poder se a posição de barganha e riqueza dos pretensos contratantes é desigual (pois, se os barganhadores tivessem poder igual dificilmente concordariam em vender o controle do tempo livre entre si). Isto significa que «poder» e «mercado» não são condições antitéticas. Enquanto que, em um sentido abstrato, todas as relações do mercado são voluntárias na prática, este não é o caso dentro de um mercado capitalista. Por exemplo, uma companhia grande tem uma vantagens em relação a pequena e sobre as comunidades que definitivamente se amoldarão ao resultado de qualquer contrato. Por exemplo, uma companhia grande ou uma pessoa rica terão acesso a mais fundos e assim esticarão os litígios e greves até que os recursos dos oponentes deles sejam exauridos. Ou, se uma companhia local estiver poluindo o ambiente, a comunidade local pode aguentar o dano causado com medo de que a indústria (da qual depende) se mude para outra área. Se os membros da comunidade a processasse, então a companhia estaria apenas exercitando seus direitos de propriedade em ameaçar mover-se para outro local. Em tais circunstâncias, ou a comunidade consente «livremente» em suas condições ou enfrenta uma grave ruptura social e econômica. Semelhantemente, «os agentes arrendatários que ameaçaram despedir os trabalhadores agrícolas e inquilinos que recusaram votar em seus tickets reacionários» na eleição espanhola de 1936 estavam apenas exercitando seus legítimos direitos de propriedade quanto eles ameaçaram os trabalhadores e suas famílias com incerteza econômica e angústia. [Murray Bookchin, The Spanish Anarchists, pág. 260]
Se levarmos em conta o mercado de trabalho, é claro que os «compradores» e os «vendedores» da força de trabalho raramente estarão em bases iguais (se eles estivessem, então o capitalismo logo entraria em crise -- veja a seção F.10.2). Na realidade, a competição «no mercado de trabalho inclina-se tipicamente em favor dos empregadores: é um mercado de compradores. E em um mercado de compradores são os vendedores que chegam a um acordo». [Juliet B. Schor, The Overworked American, pág. 129]. Assim a habilidade de recusar essa troca oprime mais pesadamente uma classe do que a outra, assegurando assim que a «livre troca» funcione para assegurar a dominação (e assim a exploração) de uma classe por outra.
A desigualdade no mercado assegura que a maior parte das decisões que saem do mercado sejam tomadas de acordo com as necessidades dos poderosos, não com as necessidades de todos. Foi por isso que o anarquista individualista J.K. Ingalls se opôs à proposta de nacionalização da terra de Henry George. Ingalls estava bem atento no fato de que os ricos podem sobrepujar os pobres nos arrendamentos de terra, assim a desapropriação do proletariado continuaria.
O mercado, portanto, não acaba com o poder ou as amarras -- elas permanecem lá, mas em formatos diferentes. E para uma troca ser verdadeiramente voluntária, ela têm que ter igual poder para aceitar, rejeitar, ou influenciar seus termos. Infelizmente, tais condições são raramente se encontradas no mercado de trabalho ou dentro do mercado capitalista em geral. Assim o argumento de Rothbard de que o poder econômico não existe falha em reconhecer que os ricos podem sobrepujar os pobres em recursos e que uma empresa geralmente tem mais condição de recusar um contrato (com um indivíduo, sindicato ou comunidade) do que vice-versa (e que o impacto de tal uma recusa é tal que encorajará os demais envolvidos a «chegar a um acordo» cedo ou tarde). E em tais circunstâncias, os indivíduos formalmente livres «consentirão» na escravidão para sobreviver.
Como Max Stirner mostrou na década de 1840, a livre competição «não é 'livre', porque eu necessito de coisas para competir».[The Ego and Its Own, pág. 262] Devido a esta desigualdade básica de riqueza (de «coisas») nós achamos que «sob o regime de competição os trabalhadores sempre caem nas mãos dos possuidores [...] dos capitalistas, portanto. O trabalhadores não pode perceber em sua labuta o quanto vale para seu patrão». [Op. Cit., pág. 115]. É interessante notar que até mesmo Stirner reconhece que o capitalismo resulta em exploração. E poderíamos adicionar que aquele valor que o trabalhador não «percebe»vai para as mãos dos capitalistas que o investem em mais «coisas» o que consolida e aumenta a vantagem deles dentro da «livre» competição.
Citando Stephan L. Newman:
«Outro inquietante aspecto da recusa dos libertarianos em reconhecer o poder do mercado é o fracasso deles em confrontar a tensão entre liberdade e autonomia [...] Trabalho assalariado sob o capitalismo é, naturalmente, formalmente trabalho livre. Ninguém é forçado a trabalhar sob a mira de um revolver. Porém, a circunstância econômica tem freqüentemente o efeito da força; compele aquele que é relativamente pobre a aceitar trabalho debaixo das condições ditadas pelos donos e gerentes. O trabalhador individual retém liberdade [isto é, liberdade negativa] mas perde autonomia [liberdade positiva]». [Liberalism at Wit's End, pp. 122-123]
Como aparte, o contexto da citação de Stirner acima é «sob o regime de competição os trabalhadores sempre caem nas mãos dos possuidores, aqueles que detêm algum pedaço dos domínios estatais (e tudo o que é de posse estatal pertence ao Estado e é apenas um feudo do indivíduo), especialmente dinheiro e terra; dos capitalistas, portanto. O trabalhador não pode perceber em sua labuta o quanto vale para seu patrão».
Alguém poderia argumentar que falseamos Stirner truncando a citação, mas achamos que tal reivindicação seria incorreta. A partir de seu livro, é claro que Stirner está considerando um estado «mínimo» («O Estado é um - Estado do cidadão [...] Protege o homem [...] de forma que as propriedades confiadas a ele pelo Estado são desfrutadas e administradas conforme a constituição, quer dizer, leis, do Estado». O Estado «olha com indiferença enquanto pessoas crescem pobres e outras ricas, sereno diante desses altos e baixos. Como indivíduos eles são realmente iguais diante de sua face». [Op. Cit., pág. 115, pág. 252]). Como «os anarco»-capitalistas consideram o sistema deles um sistema de leis e de direitos (particularmente direito de propriedade), sentimos que isso propicia a generalização dos comentários de Stirner do capitalismo como tal ao invés de um «estado mínimo» capitalista. Se nós substituirmos «Estado» por «código de leis libertário» você verá o que queremos dizer. Incluímos este aparte antes que qualquer libertariano direitista reivindique que estamos falseando o argumento de Stirner). [N.T.]
Se consideramos «igualdade perante a lei» é óbvio que isto também tem limitações dentro uma sociedade (materialmente) desigual. Brian Morris comenta o pensamento de Ayn Rand, «sob o capitalismo [...] a política (do estado) e a economia (do capitalismo) estão separados [...] Isso, naturalmente, é pura ideologia, a justificação de Rand é que o Estado 'protege' a propriedade privada, quer dizer, apóia e aprova o poder econômico dos capitalistas através de meios coercitivos». [Ecology & Anarchism, pág. 189]. O mesmo pode ser dito do «anarco»-capitalismo e suas «agências de proteção» e dos «códigos de leis libertarianas em geral». Se dentro de uma sociedade poucos possuem todos os recursos e a maioria é despossuída, então qualquer código de leis que protegem a propriedade privada automaticamente fortalece a classe proprietária. Os trabalhadores sempre estarão desencadeando a força se agirem contra o código, assim «igualdade perante a lei» reforça a desigualdade em poder e riqueza.
Isto significa que um sistema de direitos de propriedade protege as liberdades de algumas pessoas de tal forma que lhes dá um grau inaceitável de poder em cima dos outros. E não basta apenas reafirmar os direitos em questão, temos que avaliar a importância relativa de vários tipos de liberdade e de outros valores que estimamos.
A direita libertariana desconsidera a importância da igualdade porque isso permite ao «anarco»-capitalismo ignorar muitas restrições importantes à liberdade na sociedade. Além disso, permite-lhes passar um pano em cima dos efeitos negativos do sistema deles pintando um quadro irreal de uma sociedade capitalista sem vastos extremos de riqueza e poder (na realidade, eles freqüentemente interpretam a sociedade capitalista em termos de um ideal -- isto é, produção artesanal -- que significa de fato pré-capitalismo, cuja base social foi corroída pelo desenvolvimento capitalista). A desigualdade amolda as decisões que deveríamos tomar com as que tomamos:
«Há um 'incentivo' que sempre está disponível em condições de significativa desigualdade social, e que estimula o 'fraco' a fazer um contrato. Quando a desigualdade social prevalece, surgem questões que consideram a entrada voluntária em um contrato [...] Homens e mulheres [...] são agora juridicamente cidadãos livres e iguais, mas, em condições sociais desiguais, isso não pode ser normatizado pois alguns ou muitos contratos criam relações que incomodamente se parecem mais a um contrato de escravo». [Carole Pateman, The Sexual Contract, pág. 62]
Esta confusão ideológica dos libertarianos direitistas também pode ser vista na oposição que fazem à taxação. Por um lado, eles argumentam que taxação é uma coisa errada porque tira dinheiro daquele que o «ganha» e dando-o ao pobre. Por outro lado, assumem que o «mercado livre» capitalista é uma sociedade mais igualitária! Se a taxação toma do rico e entrega ao pobre, como é que ficaria o igualitarismo «anarco»-capitalista? Tal mecanismo de equalização seria injusto (claro que alguém pode reivindicar que todas as grandes riquezas são puramente resultado da intervenção estatal que deturpa o «mercado livre», mas isso coloca todas suas histórias esfarrapadas em uma posição estranha). Assim, temos um problema, ou temos igualdade relativa ou ela não é real. Ou temos riquezas, e assim poder de mercado, ou ela não é real. É evidente que pela preferência de Rothbard, o «anarco»-capitalismo não ficará sem seus milionários (ou seja, afinal de contas, aparentemente não haveria nenhum não-libertariano objetando coisas como «organização, hierarquia, trabalho assalariado, retirar fundos de libertarianos milionários, e um partido libertariano»). E assim ficamos ao sabor do poder do mercado e de uma vasta ausência de liberdade.
Assim, para uma ideologia que aponta para o igualitarismo como uma «revolta contra a natureza» é bem engraçado retratem o «anarco»-capitalismo como uma sociedade de (relativa) igualdade. Em outras palavras, a propaganda deles está baseada em algo que nunca existiu, e nunca existirá, isto é, uma sociedade capitalista igualitária.
[N.T.] Para um maior aprofundamento talvez seja de interesse ver a crítica de Jared James sobre as posições «municipalistas» de Murray Bookchin.
F.3.2 E quanto ao apoio «anarco»-capitalista à caridade?
Cegos ao impacto da desigualdade em termos de poder econômico e social, a maioria dos libertarianos direitistas argumentam que os muito pobres poderiam depender da caridade no sistema deles. Mas tal reconhecimento da existência da pobreza não reflete a consciência da necessidade de igualdade ou do impacto da desigualdade nos acordos feitos. O que ocorre é exatamente o contrário, apenas assumem a existência de uma grande desigualdade -- ora, em uma sociedade de relativa igualdade, pobreza não existiria, nem mesmo a caridade seria necessária.
Ignorando o fato que a ideologia deles dificilmente promoverá uma perspectiva caridosa, vamos considerar quatro pontos. Primeiro, a caridade não será suficiente para contrabalançar a existência e o impacto de vastas desigualdades de riqueza (portanto, de poder). Segundo, é provável que tal caridade se interesse em «melhorar» a qualidade moral dos pobres e assim, divida-os em pobres «merecedores» (isto é, obedientes) e pobres «indignos» (isto é, rebeldes). A caridade estará disponível aos primeiros, aos que aceitam que outrém coloque o nariz em suas vidas. Deste modo, a caridade poderia se tornar outra ferramenta do poder econômico e social, veja este extrato de The Soul of Man Under Socialism escrito em 1891 por Oscar Wilde:
«Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quanto ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.
«Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O progresso é uma consequência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve -- o que para muitos é uma forma de roubo.
«Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza anterior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos. devemos ter pena deles mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma de atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concordar com a sua continuidade.
«Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoas intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura na América não foi uma consequência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares, que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema. Foram eles, sem dúvida, que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação. Para o pensador, o fato mais trágico da Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendrée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo».
Terceiro, é improvável que a caridade possa substituir todos os gastos sociais administrados pelo estado -- as doações caridosas representariam dez vezes mais esses gastos (e tendo em vista os libertarianos direitistas serem contra as taxas estipuladas pelo governo para ajudar os pobres, parece improvável que doariam tal quantia). E, por último, a caridade é um reconhecimento implícito de que, sob o capitalismo, ninguém tem o direito de viver -- é um privilégio que você tem que pagar. A opção da caridade é por si só abjeta. E, evidentemente, em um sistema projetado para afiançar a vida e a liberdade de cada pessoa, como pode ser julgado aceitável deixar a vida e a proteção até mesmo de uma única pessoa aos caprichos caridosos dos outros? (Talvez argumentem que as pessoas tem direito à vida, mas não o direito de ser um parasita. Isto ignora o fato de algumas pessoas não poderem trabalhar -- os bebês e algumas pessoas deficientes -- e que, em uma economia capitalista, muitas pessoas nem sempre encontram trabalho. É este reconhecimento de que os bebês não podem trabalhar que incita muitos libertarianos direitistas a transformá-los em propriedade? Claro que gente rica que nunca realizou trabalho algum em suas vidas nunca é classificada como parasitas, até mesmo se herdassem todo seu dinheiro). Diante de tudo isso não foram por acaso as palavras de Proudhon:
«Até mesmo as instituições caridosas servem maravilhosamente os fins daqueles que detém autoridade.
«Caridade é a mais forte cadeia pela qual o privilégiado e o Governo, sob a desculpa da proteção, sujeitam as classes mais baixas. Com caridade, mais adocicada aos corações dos homens, mais inteligível ao homem pobre do que as confusas leis de Economia política, pode-se ministrar com justiça.» [The General Idea of the Revolution, pp. 69-70]
Conforme percebemos, o (incidental) reconhecimento da pobreza por parte dos libertarianos direitistas não significa o reconhecimento da existência do poder de mercado. Eles nunca perguntam para eles mesmos como pode alguém chegar ao ponto de ter que vender seu trabalho (e sua liberdade) para poder sobreviver.
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