Por Robert Kurz
Mas ninguém quer reconhecer o caráter do novo surto de crise. A confiança atávica no capitalismo conduz apenas à busca de culpados. As "práticas nada sérias" dos especuladores e a "política econômica anglo-saxônica" é que devem ser responsabilizadas pelo desastre. Tal explicação míope, com tom anti-semita, já foi mobilizada repetidamente no passado. Há mais de 20 anos que uma onda de crises financeiras acompanha a globalização. Todas as medidas aparentemente bem-sucedidas para evitar uma "fusão nuclear" do sistema financeiro internacional só lograram adiar o problema, mas não solucioná-lo. O atual desenvolvimento rebenta todas as concepções até agora vigentes; de modo nenhum afetou apenas o setor dos créditos hipotecários nos EUA, mas provocou também uma reação em cadeia, que ainda está longe do fim. As causas já não podem continuar a ser localizadas na falha individual e nas deficiências morais dos atores, só podem residir no núcleo da economia real do sistema.
O capitalismo não passa de acumulação de dinheiro como fim em si mesmo, dinheiro cuja "substância" consiste na utilização continuamente ampliada da força de trabalho humana. Simultaneamente, porém, a concorrência conduz a um aumento da produtividade, que torna a força de trabalho supérflua numa escala cada vez maior. Apesar de todas as crises, tal autocontradição parecia resolver-se sempre numa regeneração da absorção maciça de força de trabalho por novas indústrias. O "milagre econômico" depois de 1945 transformou essa capacidade do capitalismo em artigo de fé. Mas, desde os anos 1980, a terceira revolução industrial da microeletrônica trouxe uma racionalização qualitativamente nova, que desvaloriza a força de trabalho humana numa dimensão nunca vista. A "substância" real da valorização do capital derrete-se e não estão à vista novas indústrias com potencial de crescimento auto-sustentado. O neoliberalismo foi apenas a tentativa de gerir com meios repressivos a crise social daí decorrente, por um lado, e de produzir um crescimento "sem substância" do "capital fictício" mediante o inchaço desenfreado do crédito, do endividamento e das bolhas financeiras nos mercados de ações e de imóveis, por outro lado.
Mas essa abertura mundial das comportas monetárias e, sobretudo, a avalanche de dólares produzida pelo Banco Central dos EUA já foram um pecado cometido pelo chamado monetarismo, que postulara como cerne da doutrina neoliberal a redução forçada da massa monetária. Na verdade, a inundação de dinheiro, criado pelo Estado a partir do nada, subsidiou uma inflação de ativos patrimoniais fictícios. O paradoxal "socialismo do dinheiro sem substância" sofre agora seu "Waterloo", como antes já ocorrera com o capitalismo de Estado do Leste Europeu e com a versão keynesiana do crescimento fomentado pelo Estado no Ocidente. A estatização de fato do sistema bancário dos EUA e o plano do Secretário do Tesouro dos EUA para conter a crise com recursos estatais só podem ser avaliados como atos de desespero. Da noite para o dia revelou-se o caráter de capitalismo de Estado da suposta liberdade dos mercados. Já se fala ironicamente em "República Popular de Wall Street". Mas isso não resolve nada. De certa forma, estamos perante o último estágio do capitalismo de Estado que, na melhor das hipóteses, poderá adiar o colapso dos balanços com mais emissões inflacionárias de moeda. Ao contrário de épocas anteriores, agora já não há margem de manobra para novos programas conjunturais, que teriam de se alimentar da mesma fonte.
Com isso também chegou o fim dos EUA como potência mundial. Já não é possível financiar guerras de intervenção com a caixa para despesas postais e o dólar como moeda mundial torna-se obsoleto. Mas não se vê nenhum substituto para os papéis da última potência mundial e do dólar. O ressentimento contra a "dominação anglo-saxônica" não é uma crítica do capitalismo nem merece credibilidade, pois foram os fluxos da exportação de sentido único para os EUA que sustentaram a conjuntura global do déficit. Na Ásia, na Europa e noutros lugares, as capacidades industriais não viviam de ganhos e salários reais, mas, direta ou indiretamente, do endividamento externo dos EUA. No fundo, a economia neoliberal das bolhas financeiras foi uma espécie de "keynesianismo mundial", que agora se extingue como a anterior variante nacional do keynesianismo. Todas as "novas potências" supostamente emergentes estão inseridas de modo economicamente dependente no circuito global do déficit. A sua muito admirada dinâmica foi uma mera aparência, sem desenvolvimento interno próprio. Por isso não haverá em nenhum lugar o retorno a um capitalismo "sério" com postos de trabalho "reais". Em vez disso, é de esperar o efeito dominó de uma repercussão da crise financeira na conjuntura mundial, ao qual nenhuma região poderá escapar. O capitalismo de Estado e o capitalismo concorrencial "livre" revelam-se como as duas faces da mesma moeda. O que está abalado não é um "modelo" passível de ser substituído por outro, mas o modo vigente de produção e de vida, como fundamento comum do mercado mundial.
Original DAS LETZTE STADIUM DES STAATSKAPITALISMUS in www.exit-online.org.
Tradução de Peter Naumann
http://obeco.planetaclix.pt/
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