A.2 O Que Pretende o Anarquismo?
A2Int Introdução
A.2.1 Qual a Essência do Anarquismo?
A.2.2 Por Que os Anarquistas Enfatizam a Liberdade?
A.2.3 Os Anarquistas Estão de Acordo com a Organização?
A.2.4 Os Anarquistas São a Favor da Liberdade «Absoluta»?
A.2.5 Por Que os Anarquistas São a Favor da Liberdade?
A.2.6 Por Que a Solidariedade é tão Importante para os Anarquistas?
A.2.7 Por Que os Anarquistas Defendem a Autolibertação?
A.2.8 É Possível ser Anarquistas sem Opor-se à Hierarquia?
A.2.9 Que Tipo de Sociedade os Anarquistas Desejam?
A.2.10 O Que Significa e o que se Obterá com a Abolição da Hierarquia?
A.2.11 Por Que os Anarquistas São a Favor da Democracia Direta?
A.2.12 O Consenso é uma Alternativa à Democracia Direta?
A.2.13 Os Anarquistas São Individualistas ou Coletivistas?
A.2.14 Por Que o Voluntariado não é Suficiente?
A.2.15 E Quanto à Natureza Humana?
A.2.16 O Anarquismo Requer Pessoas «Perfeitas» para poder Funcionar?
A.2.17 As Pessoas não Seriam por Demais Estúpidas Para que Uma Sociedade Livre Possa Funcionar?
A.2.18 Os Anarquistas Apóiam o Terrorismo?
A.2.19 Qual é a Visão Ética dos Anarquistas?
INTRODUÇÃO
Estes versos de Percy Bysshe Shelley nos dão uma idéia do que o anarquismo pretende na prática e os ideais que o movem:
O homem de alma virtuosa não manda, nem obedece
o poder, que qual peste assoladora contamina tudo quanto toca,
E a obediência, a maldição de todo engenho, virtude, liberdade, verdade, faz dos homens escravos, e do esqueleto humano
um autômato mecanizado.
Como sugerem os versos de Shelley, os anarquistas dão grande prioridade à liberdade, desejando-a para si e para os demais. Também consideram a individualidade -- aquilo que faz de cada um uma pessoa única -- como um aspecto muito importante da humanidade. Reconhecem, sem embargo, que a individualidade não existe em um vazio sem que haja um fenômeno social. Fora da sociedade, a individualidade é impossível, posto que cada um necessita dos demais para desenvolver-se, expandir-se e crescer.
Ademais, ha um efeito recíproco entre o desenvolvimento individual e o social: os indivíduos crescem dentro de (e são formados por) uma sociedade particular, ao mesmo tempo em que ajudam a moldar e a mudar aspectos dessa sociedade (assim como a si mesmos e a outros indivíduos) com suas ações e pensamentos. Uma sociedade que não está baseada em indivíduos livres, em suas esperanças, seus sonhos e idéias resultariam ocos e mortos. Assim, pois, "a formação de um ser humano [...] é um processo coletivo, um processo em que a comunidade e o individuo, ambos, participam" [Murray Bookchin, A Crise Moderna, p. 79]. Consequentemente, qualquer teoria política que se baseia puramente no social ou no individual é falsa.
Para desenvolver a individualidade em seu grau máximo, os anarquistas consideram essencial criar uma sociedade baseada em três princípios: liberdade, igualdade e solidariedade, que são interdependentes.
A liberdade é essencial pra o completo florescer da inteligência, a criatividade e a dignidade humana. Estar sob a dominação de outro é ser privado da oportunidade de pensar e agir por si mesmo, que é a única maneira de crescer e desenvolver a própria individualidade. A dominação também sufoca a inovação e a responsabilidade pessoais, levando à conformidade e à mediocridade. Assim, pois a sociedade que eleva ao máximo o crescimento do indivíduo necessariamente estará baseada na associação voluntaria não na coerção e na autoridade. Citando Proudhon, "todos associados e todos livres". Ou como assinala Luigi Galleani, o anarquismo é "a autonomia do individuo dentro da livre associação" [A FINALIDADE DO ANARQUISMO, p. 35] (Ver Seção A.2.2 Por que os anarquistas dão importância à liberdade?).
Se a liberdade é essencial para o completo desenvolvimento da individualidade, a igualdade é essencial para que exista a verdadeira liberdade. Não pode haver liberdade real em uma sociedade hierárquica de classes estratificadas, minada por grandes desigualdades de poder, riqueza e privilegio. Posto que em tal sociedade somente uns poucos -- aqueles no alto da hierarquia -- são relativamente livres, enquanto o resto são meio escravos. Daí que sem igualdade, a liberdade se converte em uma burla -- na melhor das hipóteses "liberdade para eleger o amo (chefe)", como sob o capitalismo. Ademais, inclusive as elites sob estas condições não são realmente livres, posto que têm que viver em uma sociedade atrasada, feia e esterilizada pela tirania e pela alienação da maioria. E posto que a individualidade se desenvolve em toda sua potencia somente com o mais amplo contato com outros indivíduos livres, os membros da elite são restringidos em suas possibilidades de desenvolvimento pela escassez de indivíduos livres com quem relacionar-se. (Ver também a seção A.2.5 Por que os anarquistas são a favor da igualdade?).
Finalmente a solidariedade significa ajuda mutua: trabalhar voluntaria e cooperativamente com outros que compartilham os mesmos fins e interesses. Mas sem liberdade nem igualdade, a sociedade se converte em uma pirâmide de classes em competência baseada na dominação dos de baixo pelos de cima. Em tal sociedade, segundo sabemos, o lema é "dominar ou ser dominado", "cada um por si". Assim, o "individualismo robusto" se promove à custa do sentimento comunitário, onde os de baixo se ressentem dos de cima e os de cima temem aos de baixo. Sob estas condições, não pode haver solidariedade social, sem uma forma parcial de solidariedade das classes cujos interesses são contrários, o que debilita a totalidade da sociedade. (Ver mais sobre o tema em: seção A.2.6 Por que a solidariedade é importante para os anarquistas?).
É bom lembrar que solidariedade não significa altruísmo. Errico Malatesta deixou claro:
"todos somos egoístas, todos buscamos a satisfação própria. Mas o anarquista encontra sua maior satisfação na luta pelo bem de todos, por alcançar uma sociedade em que ele (sic) possa ser um irmão entre irmãos, entre gente sadia, inteligente, educada e alegre. Contudo aquele que se adapta aquele que está satisfeito em viver entre escravos e obter ganhos do trabalho de escravos, não é, nem pode ser, anarquista" [VIDA E IDÉIAS, p.23].
Para os anarquistas, a verdadeira riqueza são os seres humanos e o planeta em que vivemos.
Ademais, honrar a individualidade não quer dizer que os anarquistas sejam idealistas, crendo que as pessoas ou as idéias se desenvolvem fora da sociedade. A individualidade e as idéias crescem e se desenvolvem dentro da sociedade, como resposta aos intercâmbios e experiências materiais e intelectuais, que as pessoas analisam e interpretam de uma forma ativa. O anarquismo é, portanto, uma teoria materialista, que reconhece que as idéias se desenvolvem e crescem a partir do intercambio social e da atividade mental do individuo (ver Deus e o Estado de Mikhail Bakunin para uma discussão clássica do materialismo versus o idealismo).
Isto significa que uma sociedade anarquista será a criação de seres humanos, não de alguma deidade ou outro principio transcendental, já que:
"Nada se ajusta por si só, menos ainda as relações humanas. São os homens (sic) os que fazem os acordos, e o fazem segundo suas atitudes e entendimento das coisas" [Alexander Berkman O ABC do Anarquismo, p. 42].
Por conseguinte, o anarquismo se baseia no poder das idéias e na habilidade das pessoas para atuar e transformar suas vidas segundo o que consideram correto. Em outras palavras, na liberdade.
A.2.1 QUAL É A ESSENCIA DO ANARQUISMO?
Conforme vimos, "an-archia" implica "sem autoridade (hierárquica)". Os anarquistas não são contra as "autoridades" no sentido de especialistas que são particularmente eruditos, destros ou sábios, se bem que crêem que tais autoridades não deveriam ter poder coercitivo sobre outros para obrigar-lhes a seguir suas recomendações (ver a seção B.1 para ampliar esta distinção). Em resumo, anarquismo é antiautoritarismo.
Os anarquistas são antiautoritários porque crêem que nenhum ser humano deve dominar a outro. O domínio é intrinsecamente degradante e deprimente, posto que somente a vontade e o juízo do dominado e a vontade e o juízo do dominador, destruindo assim a dignidade e o amor próprio que vem apenas da autonomia pessoal. Alem do mais, a dominação torna possível e geralmente leva à exploração, que é a raiz da desigualdade, da pobreza e da crise social.
Ao mesmo tempo que os autoritários, os anarquistas reconhecem que os seres humanos tem uma natureza social e uma influencia mutua. Não podemos escapar da "autoridade" desta influencia mutua, posto que, como nos recorda Bakunin:
"A abolição desta influencia mutua seria a morte. E quando defendemos a liberdade das massas, não estamos de nenhuma maneira sugerindo a abolição de nenhuma das influencias naturais que os indivíduos ou grupos de indivíduos exercem sobre elas. O que queremos é a abolição das influencias artificiais, privilegiadas, legais, oficiais" -- em outras palavras, essas que nascem da autoridade hierárquica [citado por Malatesta, em Anarquia]
A.2.2 PORQUE OS ANARQUISTAS ENFATIZAM A LIBERDADE?
Um anarquista pode ser considerado, segundo Bakunin, como "um apaixonado amante da liberdade, considerando-a como a única condição sob a qual a inteligência, a dignidade e a felicidade humana podem desenvolver-se e crescer [...]" [A Comuna De Paris e a Idéia do Estado]. Dado que os seres humanos são criaturas pensantes, negar-lhes a liberdade é negar-lhes a oportunidade de pensar por sua conta, que é negar-lhes a própria existência como seres humanos. Para os anarquistas, a liberdade é o resultado de nossa humanidade, porque:
"O próprio fato [...] de que uma pessoa tenha consciência de si mesma, de ser diferente dos demais, cria o desejo de atuar livremente. A ânsia de liberdade e auto-expressão é uma característica dominante muito fundamental" [Emma Goldman, Fala Emma, a Vermelha, p. 393].
Por esta razão, o anarquismo "propõe resgatar o amor próprio e a independência do individuo de todo freio e invasão da autoridade. Apenas em liberdade o homem (sic) pode crescer em toda sua estatura. Apenas em liberdade aprenderá a pensar e a mover-se, e a dar o melhor de si mesmo. Apenas em liberdade compreenderá a verdadeira força dos laços sociais que unem aos homens, e que são a verdadeira base de uma vida social normal" [Ibid., p. 59].
Como assinalamos anteriormente, a liberdade é a precondição para o máximo desenvolvimento do potencial individual, o qual é também um produto social que pode ser alcançado apenas e através da comunidade. Uma comunidade livre, saudável, produzirá indivíduos livres, que por sua vez moldarão a comunidade e enriquecerão as relações sociais entre os seres que a compõem. As liberdades, ao serem produzidas socialmente, "não existem porque foram estabelecidas legalmente em um papel, mas somente quando se converterem em um hábito congênito de um povo, e quando qualquer tentativa de impedi-las choque com a resistência violenta da população [...] Cada um ganha o respeito dos demais quando cada um sabe defender sua dignidade de ser humano. Isto é verdade não somente na vida privada; sempre foi assim também na vida política" [Rudolf Rocker, Anarcosindicalismo]
Resumindo, a liberdade se desenvolverá somente no seio da sociedade, não em oposição a ela. Murray Bookchim disse: "Toda liberdade, independência, e autonomia que o povo desfrutou em um dado período histórico é o produto de velhas tradições sociais e [...] desenvolvimento coletivo -- o qual não impede que os indivíduos joguem um papel importante nesse desenvolvimento, realmente estão obrigados em última instancia a fazê-lo se querem ser livres" [Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo]
Todavia a liberdade requer um âmbito social adequado para crescer e desenvolver-se. Tal âmbito tem que ser descentralizado e baseado na gestão direta da obra por aqueles que a realizam. Centralização quer dizer autoridade coercitiva, enquanto que auto-gestão é a essência da liberdade.
O capitalismo, por outro lado, se baseia na autoridade centralizada, cujo propósito é manter a gestão do trabalho fora do alcance dos que trabalham. Ou seja, "que a verdadeira, plena e final libertação dos trabalhadores só é possível sob uma condição: a apropriação do capital, a saber, das matérias primas e das ferramentas de trabalho, incluindo a terra, pelo corpo coletivo dos trabalhadores" [Mikhail Bakunin, em Dolgoff, ed., Bakunin Sobre Anarquismo, p.255].
Daí que, como sustenta Noam Chomsky, um "anarquista consequente deve opor-se à propriedade privada dos meios de produção e à escravidão assalariada que é um dos componentes do sistema, como incompatíveis com o principio de que o trabalho deve ser empreendido livremente e sob o controle dos produtores" [Notas Sobre o Anarquismo].
Assim, pois, para os anarquistas liberdade quer dizer uma sociedade não autoritária na qual os indivíduos praticam a auto-gestão, i.e. governam a si mesmos. As consequencias disto são importantes. Primeiro, isso implica que uma sociedade anarquista não será coercitiva, ou seja, uma sociedade onde a violência ou a ameaça de violência não será usada para "convencer" o individuo a fazer algo. Segundo, que os anarquistas apóiam firmemente a soberania individual, e que, em função deste apoio, também se opõem às instituições baseadas na autoridade coercitiva, ou seja, a hierarquia. E finalmente, isso implica que a oposição anarquista ao "governo" quer dizer somente que se opõe às organizações centralizadas, hierárquicas, burocráticas, ou seja, o governo. Não se opõe ao autogoverno através de confederações de organizações descentralizadas, de base. Não se opõe à democracia direta. Opõe-se à delegação de poder a "representantes". A autoridade é o oposto à liberdade, de forma que qualquer organização baseada na delegação de poder é uma ameaça à liberdade e à dignidade do povo submetido a esse poder.
Os anarquistas consideram a liberdade como o único entorno social dentro do qual a dignidade humana e a diversidade podem florescer. Sob o capitalismo e o estadismo, pelo contrario, não há liberdade para a maioria, uma vez que a propriedade privada e a hierarquia asseguram que a inclinação e o juízo da maioria dos indivíduos estarão subordinados à vontade do patrão, restringindo gravemente sua liberdade e impossibilitando "o completo desenvolvimento dos poderes materiais, intelectuais e morais latentes em cada pessoa" [Bakunin, Op. Cit.] (Ver a Seção B para uma discussão mais aprofundada sobre a natureza hierárquica e autoritária do capitalismo e estadismo.)
A.2.3 OS ANARQUISTAS ESTÃO DE ACORDO COM A ORGANIZAÇÃO?
Sim. Sem a associação, uma vida verdadeiramente humana é impossível. A liberdade não pode existir sem sociedade nem organização. Como indica George Barret em Objeções ao Anarquismo:
"Para alcançar o sentido pleno da vida devemos cooperar, e para cooperar temos que chegar a acordos com nossos semelhantes. Supor que tais acordos significam limitações à liberdade é na verdade um absurdo; ao contrario, [eles] são um exercício de nossa liberdade.
"Se vamos inventar um dogma sustentando que chegar a acordos é prejudicar a liberdade, então a liberdade imediatamente se transforma em tirania, posto que proíbe aos homens os mais ordinários prazeres cotidianos. Por exemplo, eu não posso passear com um amigo, pois vai contra o principio da liberdade se concordamos estar em certo lugar em determinada hora para uma reunião. Não posso nem sequer estender minha influencia alem de mim mesmo, porque para fazê-lo tenho que cooperar com alguém mais, e a cooperação leva consigo um acordo, e isso vai contra a liberdade. Se verá de imediato que este argumento é absurdo. Eu não limito minha liberdade, simplesmente a pratico, quando entro em acordo com um amigo para dar um passeio".
Quanto à organização, os anarquistas pensam que "longe de criar autoridade, é a única cura para ela e o único meio pelo qual cada um de nós se acostumará a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo, e cessará de ser um instrumento passivo nas mãos dos dirigentes" [Errico Malatesta, Vida e Ideias].
O fato de que os anarquistas serem favoráveis à organização pode parecer a principio estranho, mas isso se deve a que vivemos em uma sociedade na qual virtualmente todas as formas de organização são autoritárias, fazendo-as parecer como as únicas formas possíveis. O que quase nunca se reconhece é que este modo de organização tem sido condicionado historicamente, surgido de uma classe particular de sociedade -- cujos motivos principais são a dominação e a exploração. Segundo os arqueólogos e antropólogos, este tipo de sociedade existe apenas há 5.000 anos, tendo surgido com os primeiros estados primitivos baseados na conquista e na escravidão, onde o trabalho dos escravos criava um excedente que sustentava a classe dominante.
Anteriormente, por centenas de milhares de anos, as sociedades humanas e proto-humanas eram o que Murray Boochkin chamou "orgânicas", ou seja, baseadas em formas cooperativas de atividade econômica involucrando o apoio mutuo, o livre acesso aos recursos de produção e o compartilhamento dos frutos do trabalho comunal de acordo com as necessidades de cada um. Embora tais sociedades provavelmente tivessem categorias baseadas na idade, não havia hierarquias no sentido de relações de dominio-subordinação institucionalizadas, impostas por sansões coercitivas resultantes da estratificação de classes e provocando a exploração econômica de uma classe por outra [ver Murray Bookchin, Ecologia da Liberdade].
Há que se notar, todavia, que os anarquistas não anseiam por um retorna "à idade da pedra". Simplesmente notamos que posto que o modo de organização hierárquico seja um desenvolvimento relativamente recente no curso da evolução humana, não há razão para supor que de alguma forma está "destinado" a ser permanente. Não cremos que os seres humanos estejam geneticamente "programados" para uma conduta autoritária, competitiva e agressiva, por não haver provas convincentes que apóiem esta premissa. Ao contrario, tal conduta está condicionada socialmente, ou aprendida, e como tal, pode ser desaprendida [ver Ashley Montagu, A Natureza da Agressividade Humana]. Não somos nem fatalistas nem deterministas genéticos, pois cremos no livre arbítrio, que significa que as pessoas podem mudar a maneira de fazer as coisas, incluindo a forma como organizam a sociedade.
Não cabe duvida que a sociedade necessite ser organizada melhor, posto que no presente a maior parte da riqueza -- que é produzida pela maioria -- e o poder estão distribuídos entre uma pequena minoria elitista no topo da pirâmide social, causando privações e sofrimentos aos demais, particularmente aos que estão mais embaixo. Desta maneira, esta elite que controla os meios de coerção através de seu controle do estado (ver Seção B.2.4), pode assim submeter a maioria e ignorar seus sofrimentos -- um fenômeno que ocorre em menor escala em todas as hierarquias. Não é de estranhar, pois, que as pessoas nas estruturas autoritárias e centralizadas cheguem a odiar essas elites como uma negação de sua liberdade. Alexander Berkman disse:
"A sociedade capitalista está tão mal organizada que todos seus membros sofrem: da mesma forma que quando alguém tem uma dor em alguma parte, todo o corpo dói e adoece [...], nenhum membro de uma organização ou sindicato pode ser impunemente discriminado, suprimido ou ignorado. Fazer isso seria como ignorar uma dor de dente; te sentirias completamente enfermo" [Alexander Berkman. ABC Do Comunismo Anárquico, p. 53].
Dessa forma, isto é precisamente o que ocorre na sociedade capitalista, o que resulta em estar realmente "completamente enferma".
Por estas razões, os anarquistas rechaçam as formas autoritárias de organização e em seu lugar apóiam associações baseadas em acordos voluntários. O acordo voluntário é importante porque, segundo Berkman, "apenas quando cada um é uma unidade livre e independente, cooperando com os demais de boa vontade devido a seus interesses mútuos, poderá o mundo funcionar com êxito e chegar a ser poderoso" [Op. Cit., p. 53]. Na esfera "política" isto quer dizer democracia direta e confederação, que são a expressão e o meio ambiente da liberdade. A democracia direta (ou participativa) é essencial posto que a liberdade e a igualdade implicam na necessidade de foros onde as pessoas possam discutir e debater entre iguais e que permitam o livre exercício do que Murray Bookchin chama "o papel criativo da dissensão".
As idéias anarquistas sobre a organização libertária e a necessidade da democracia direta e de uma confederação serão discutidas a fundo nas seções A.2.9 e A.2.10.
A.2.4 OS ANARQUISTAS SÃO A FAVOR DA LIBERDADE "ABSOLUTA"?
Não. Os anarquistas não crêem que cada qual possa fazer "o que vier na telha", já que certas ocasiões invariavelmente trazem consigo a negação da liberdade dos outros.
Por exemplo, os anarquistas não apóiam a "liberdade" de violar, explorar, ou obrigar aos demais. Tampouco toleramos a autoridade. Ao contrario, posto que a autoridade é um atentado contra a liberdade, a igualdade e a solidariedade, (sem mencionar a dignidade humana), os anarquistas reconhecem a necessidade de recusá-la e destruí-la.
O exercício da autoridade não é liberdade. Ninguém tem o "direito" de mandar nos demais. Conforme assinala Malatesta, o anarquismo apóia "a liberdade para todos [...] com o único limite da igual liberdade dos demais; o que não significa [...] que reconheçamos, nem pretendamos respeitar, a "liberdade" para explorar, oprimir, mandar, o que é opressão e certamente não é liberdade. “[Errico Malatesta, Vida e Idéias, p. 53].
Na sociedade capitalista, a resistência a todas as formas de autoridade hierárquica é a marca da pessoa livre -- tanto no privado (o patrão) como no público (o Estado). Como disse Henry David Thoreau em seu ensaio Desobediência Civil (1847):
"A desobediência é a verdadeira base da liberdade. Os obedientes são necessariamente escravos."
A.2.5 POR QUE OS ANARQUISTAS SÃO A FAVOR DA LIBERDADE?
Como dizíamos em A.2, os anarquistas se dedicam à igualdade social porque apenas neste contexto pode florescer a liberdade individual. Embora muita besteira tenha sido escrita sobre "igualdade", e muito do que se crê sobre ela é realmente estranho. Antes de discutir o que os anarquistas querem dizer por igualdade, devemos apontar o que não queremos dizer.
Os anarquistas não crêem na "igualdade de dotação", que não somente não existe, mas que seria muito indesejável se se pudesse conseguir. Cada um é único. As diferenças humanas determinadas biologicamente não só existem como são "motivo de regozijo, não de medo nem de pesar". Por quê? Porque "a vida entre clones não valeria a pena, posto que a pessoa só sentiria alegria ao ver que outros têm habilidades diferentes das suas" [Noam Chomsky Red and Black Revolution, No. 2].
O fato de alguns sugerirem seriamente que os anarquistas ao dizerem "igualdade" querem dizer que todo mundo deve ser idêntico é um triste reflexo do estado da cultura intelectual de hoje e da corrupção das palavras -- corrupção que se usa para desviar a atenção para longe do sistema injusto e autoritário e direcionar as pessoas para discussões sobre biologia.
Tampouco são os anarquistas favoráveis à chamada "igualdade de resultados". Não temos desejo de viver em uma sociedade onde todo mundo recebe os mesmos bens, vive no mesmo tipo de casa, veste o mesmo uniforme, etc. Parte do motivo da rebelião anarquista contra o capitalismo e o estatismo é a padronização de tão grande parte da vida (ver George Reitzer The McDonaldisation Of Society sobre porque o capitalismo conduz à padronização e à conformidade].
A "igualdade de resultados" só pode ser estabelecida e mantida à força, o que, em todo caso NÃO seria igualdade, posto que alguns teriam mais poder que outros! "Igualdade de resultados" é particularmente detestada pelos anarquistas, já que reconhecemos que cada individuo tem diferentes necessidades, habilidades, desejos e interesses. Obrigar todos a consumir o mesmo seria uma tirania. É obvio, pois, que se uma pessoa necessita tratamento médico e outra não, as duas não receberiam "o mesmo" cuidado médico. O mesmo se passa com outras necessidades humanas.
Para os anarquistas, estes "conceitos" de "igualdade" não tem sentido. A igualdade, na teoria anarquista, não significa negar a diversidade ou unicidade individual. Como observou Bakunin: "uma vez tendo a igualdade triunfado e sido bem estabelecida, será que não haverá mais nenhuma diferença em talentos e em graus de aplicação dos diferentes indivíduos? Haverá diferenças, não tantas como existem hoje, quiçá, mas sempre haverá diferenças. Disso não cabe dúvida. Isto é uma verdade proverbial que provavelmente nunca deixará de ser verdade -- que nenhuma árvore jamais produza folhas exatamente idênticas. Quanto mais sobre os homens, sendo os homens criaturas muito mais complicadas que as folhas. Mas tal diversidade, longe de constituir uma aflição é [...] uma das vantagens da humanidade. Graças a ela, a raça humana é um todo coletivo donde cada ser humano complementa o resto e necessita dela; pois esta variação infinita nos seres humanos é a verdadeira causa e a base principal de sua solidariedade -- um argumento muito importante a favor da igualdade" [Integral Education].
Para os anarquistas, igualdade quer dizer igualdade social, ou, usando um termo de Murray Bookchin, a "igualdade de desiguais". Isto significa que as relações sociais hierárquicas são abolidas em favor daqueles que fomentam a participação e estão baseadas no princípio de "uma pessoa, um voto". Portanto, a igualdade social no trabalho, por exemplo, quer dizer que cada um tem a mesma voz nas decisões acerca de como se desenvolve e se encaminha o trabalho. Os anarquistas crêem firmemente na máxima "aquilo que afeta a todos é decidido por todos".
Isto não quer dizer, contudo, que a perícia seja ignorada e que todo mundo decida tudo. No tocante à perícia, diferentes pessoas têm diferentes interesses, talentos, habilidades, assim, pois é óbvio que queiram estudar diferentes coisas e fazer diferentes tipos de trabalho. Também é óbvio que quando uma pessoa está enferma consulta com um médico -- um especialista -- que ministra seu próprio trabalho sem ter que ser dirigido por um comitê. Sentimos ter que expor e esclarecer estas questões, pois cada vez mais gente se empenha a dizer disparates. É ponto pacífico que um hospital gerido de uma maneira socialmente igualitária, não colocará seu pessoal não-médico para votar sobre como os doutores devem fazer uma operação!
De fato, a igualdade social e a liberdade individual são inseparáveis. Sem a autogestão coletiva das decisões que afetam a um grupo (igualdade) para complementar a autogestão individual das decisões que afetam o individuo (liberdade), uma sociedade livre é impossível. Sem ambas, alguns teriam poder sobre outros, fazendo decisões por eles (i.e. governando-os), e dessa maneira alguns seriam mais livres que outros.
A Seção D.3 ("Por que os 'anarcocapitalistas' geralmente dão pouco ou nenhum valor à "igualdade" e o que querem eles dizer com essa terminologia?") elabora as idéias anarquistas sobre a igualdade em mais detalhes.
A.2.6 POR QUE A SOLIDARIEDADE É IMPORTANTE PARA OS ANARQUISTAS?
A solidariedade, ou o apoio mútuo, é uma idéia chave do anarquismo. É o laço de união entre o individuo e a sociedade, o meio através do qual os indivíduos trabalham juntos para satisfazer seus interesses comuns de forma a apoiar e nutrir a liberdade e a igualdade. Para os anarquistas, o apoio mutuo é um traço fundamental da vida humana, uma fonte de força e felicidade e um requisito principal para uma plena existência humana.
Erich Fromm, famoso psicólogo e humanista socialista, disse que "o desejo humano de praticar a união com os demais tem suas raízes nas condições específicas de existência que caracteriza a espécie humana e é um dos mais fortes motivos da conduta humana" [To Be or To Have, p. 107]
Portanto os anarquistas consideram o desejo de formar "vínculos" (usando o termo de Max Stirner) com outros como uma necessidade natural. Estas ligações, ou associações, devem ser baseadas na igualdade e na individualidade para que sejam totalmente satisfatórias para aqueles que as compõem -- i.e. devem ser organizadas de maneira anarquista, i.e., voluntárias, descentralizadas e não-hierárquicas.
A solidariedade -- a cooperação entre indivíduos -- é necessária para a vida e está longe de ser uma negação da liberdade. "Quê resultados maravilhosos tem obtido esta singular força da individualidade humana quando se fortalece com a cooperação com outros indivíduos", observa Emma Goldman. "A cooperação -- em contraposição às lutas intestinais e à dissensão -- tem funcionado a favor da sobrevivência e da evolução das espécies [...] Só o apoio mútuo e a cooperação voluntária [...] podem criar as bases de uma vida individual e associativa livre" [Habla Emma La Roja, p. 95].
Solidariedade quer dizer associar-se mutuamente como iguais para satisfazer necessidades e interesses comuns. As formas de associação que não estão baseadas na solidariedade (aquelas baseadas na desigualdade) esmagarão a individualidade dos que estão sujeitos a elas. Como indica Ret Marut, a liberdade necessita da solidariedade, em reconhecimento dos interesses comuns:
"O mais nobre, puro e verdadeiro amor da humanidade é o amar-se a si mesmo: eu quero ser livre!, eu quero ser feliz! eu quero desfrutar de todas as coisas belas do mundo. Mas minha liberdade está assegurada somente quando os demais ao meu redor são livres. Eu só posso ser feliz quando as pessoas ao meu redor são felizes. Eu só posso estar alegre quando as pessoas que vejo e conheço vêem o mundo com os olhos da alegria, e só posso encher minha taça de pura felicidade quando estiver seguro em minhas convicções que os demais, também, podem encher seu copo da mesma forma que eu. E por essa razão, é por tratar-se de minha própria satisfação, de meu próprio eu, quando me sublevo contra todo perigo que ameaça minha liberdade e felicidade [...]" [Ret Marut (alias B. Traven), The Brickburner magazine]
Na prática, solidariedade quer dizer que reconhecemos, como o slogan do Industrial Workers of the World, que "uma afronta a um é uma afronta a todos".
Sob uma sociedade hierárquica, a solidariedade é importante não apenas pela satisfação que nos dá, mas também porque é necessária para resistir aos que estão no poder. Estando unidos, aumentamos nossa força para conseguir o que queremos. Em larga escala, organizados em grupos, juntos poderemos começar a gerir nossos próprios assuntos coletivos e assim suprimir os patrões de uma vez por todas. "os vínculos [...] multiplicarão os bens do individuo e assegurarão sua propriedade ameaçada" [Max Stirner El Unico Y Su Propiedad, p. 258]. Atuando com solidariedade, podemos dessa forma substituir o sistema em vigor por um mais de nosso agrado. Há poder na "união".
A solidariedade é, pois, o meio pelo qual podemos obter e assegurar nossa própria liberdade. Concordamos trabalhar juntos para não ter que trabalhar para outro. Concordando compartilhar com os demais aumentamos nossas opções para desfrutar mais, não menos. O apoio mútuo é em meu próprio interesse -- ou seja, eu me dei conta de que é vantajoso para eu chegar a acordos com os demais com base no respeito mutuo e na igualdade social; pois que se eu domino alguém, isto significa que as condições que permitem o domínio existem, assim, pois muito provavelmente eu também serei dominado algum dia.
Segundo a visão de Max Stirner, a solidariedade é o meio pelo qual asseguramos que nossa liberdade seja reforçada e defendida contra aqueles no poder que nos querem dominar: "Então tu mesmo não conta para nada?" ele pergunta. "Estas disposto a permitir que façam de ti o que bem entenderem? Defende-te e ninguém te tocará. Se há milhões de pessoas atrás de ti, então és uma potencia formidável e ganharás sem dificuldade" [Ibid.].
Por conseguinte, a solidariedade é importante para os anarquistas porque é o meio pela qual a liberdade pode ser criada e defendida contra o poder. A solidariedade é força e um produto de nossa natureza de seres sociais. Não obstante, a solidariedade não deveria ser confundida com "rebanhismo" que implica em seguir um líder passivamente. Para que seja efetiva, a solidariedade tem que ser criada por gente livre, cooperando juntos como iguais. O "grande nós" não é solidariedade, mesmo que o desejo do "rebanho" seja um produto de nossa necessidade de união e solidariedade. É uma "solidariedade" pervertida pela sociedade hierarquizada, que condiciona as pessoas a obedecer a líderes cegamente.
A.2.7 POR QUE OS ANARQUISTAS DEFENDEM A AUTOLIBERTAÇÃO?
A liberdade, por sua própria natureza, não pode ser concedida. Um indivíduo não pode ser libertado por outro, mas deve romper suas próprias cadeias através de seu próprio esforço. Consequentemente, o esforço próprio pode ser parte de uma ação coletiva, e em muitos casos assim há de ser para alcançar seus fins. Como assinala Emma Goldman:
"A história nos diz que cada classe (ou grupo, ou individuo) alcançou a verdadeira libertação de seus amos por seus próprios esforços" [Habla Emma La Roja p. 142]
Os anarquistas durante muito tempo têm argumentado que o povo somente pode libertar-se através de suas próprias ações. Os vários métodos anarquistas propostos para facilitar este processo serão discutidos na Seção J ("QUE FAZEM OS ANARQUISTAS?") e não discutiremos isso aqui. Não obstante, todos estes métodos se baseiam no povo organizando-se, delineando suas próprias agendas, e atuando de forma que os fortaleça e eliminando sua dependência de líderes que façam as coisas por eles. O anarquismo se baseia no povo "atuando por si mesmo" (fazendo o que os anarquistas chamam "ação direta").
A ação direta tem um efeito potenciador e libertador sobre aqueles comprometidos com ela. A auto-atividade é o meio pelo qual a criatividade, a iniciativa, a imaginação e o pensamento crítico dos que estão sujeitos à autoridade podem desenvolver-se. É o meio através do qual a sociedade pode caminhar. Como indica Errico Malatesta "Entre o homem e a sociedade à sua volta há uma ação recíproca. Os homens fazem da sociedade o que ela é e a sociedade faz dos homens o que eles são, e o resultado é, portanto uma espécie de circulo vicioso [...]
Afortunadamente a sociedade existente não foi criada pela vontade inspirada de uma classe dominante, que conseguiu reduzir todos seus sujeitos a instrumentos passivos e inconscientes [...] É o resultado de milhares de lutas intestinas, de mil fatores humanos e naturais [...]" [Vida E Ideas, p. 188].
A sociedade, enquanto molda os indivíduos, é por sua vez criada por eles, através de suas ações, pensamentos e ideais. O ataque a instituições que limitam a liberdade de alguém é mentalmente liberador, uma vez que põe em marcha o processo de colocar em dúvida as relações autoritárias em geral. Este processo nos dá a intuição sobre o funcionamento da sociedade, alterando nossas idéias e criando novos ideais. Citando outra vez Emma Goldman: "A verdadeira emancipação começa [...] na alma da mulher" E do homem também, acrescentamos. É somente aqui que podemos "iniciar [nossa] regeneração interna, desfazendo-nos do peso dos prejuízos, das tradições e dos costumes" [Op. Cit., p. 142]. Mas este processo deve ser autodirigido, pois como assinala Max Stirner, "o homem que é posto em liberdade não é mais que um alforriado [...] um cão arrastando uma corrente" [Max Stirner, El Unico Y Su Propiedad p. 168].
Em uma entrevista durante a revolução espanhola, o militante anarquista espanhol Durruti disse "Trazemos um mundo novo em nossos corações". Apenas a autoatividade e a autolibertação nos permite criar tal visão em nossos corações e nos da segurança para tratar de realizá-la no mundo real.
Os anarquistas, não obstante, não crêem que a autolibertação deva esperar para o futuro, depois da "gloriosa revolução". O povo é político, e dada a natureza da sociedade, a forma como atuamos aqui e agora terá influencia sobre o futuro de nossa sociedade e de nossas vidas. Por conseguinte, inclusive em sociedades preanarquistas os anarquistas devem criar, como disse Bakunin, "não apenas idéias mas também os fatos do próprio futuro". Podemos fazê-lo criando relações sociais e organizações alternativas, atuando como pessoas livres em uma sociedade não livre. Apenas através de nossas ações aqui e agora podemos assentar os alicerces de uma sociedade livre.
A revolução é um processo, não um ato, e cada "ação revolucionária espontânea" é, geralmente, resultante (e baseada) no trabalho paciente de muitos anos de organização e educação do povo por pessoas com idéias "Utópicas". O processo de "criar um mundo novo dentro da casca do velho" (usando outra expressão da IWW) construindo instituições e relações alternativas, é apenas um componente do que deve ser uma grande tradição de compromisso e de militância revolucionários.
Malatesta esclareceu isso "fomentar todo tipo de organizações populares é a consequencia lógica de nossas idéias básicas, e, portanto deveria ser uma parte integral de nosso programa [...] os anarquistas não querem emancipar ao povo; querem que o povo se emancipe a si mesmo [...], queremos que a nova forma de vida surja do povo e que corresponda a seu estado de desenvolvimento e que avance conforme ele avança" [Vida e Ideas, p.90]
A.2.8 É POSSIVEL SER ANARQUISTA SEM OPOR-SE À HIERARQUIA?
Não. Vimos que os anarquistas detestam o autoritarismo. Se alguém é antiautoritário, ele deve opor-se a todas as instituições hierárquicas, já que elas encarnam o principio da autoridade. O argumento (se é que se necessita) é o seguinte:
A hierarquia é uma organização piramidal composta por uma série de graduações, categorias ou cargos de poder crescente, prestigio e (normalmente) remuneração. Os eruditos que estudam a forma hierárquica afirmam que os dois principais ideais que ela encarna são o domínio e a exploração. Por exemplo, em seu artigo "O quê os chefes fazem?" (Review of Radical Political Economics, 6, 7), um estudo da feitoria moderna, Steven Marglin falou que a principal função da hierarquia corporativa não é uma maior eficiência na produtividade (como dizem os capitalistas), mas um maior controle sobre os trabalhadores, sendo o propósito de tal controle uma exploração mais efetiva.
Em uma hierarquia o controle se mantêm através da coerção, ou seja, da ameaça de sanções negativas de toda espécie: física, econômica, psicológica, social, etc. Tal controle, inclusive a repressão do protesto e da rebelião, necessita da centralização: um conjunto de relações de poder no qual o controle máximo é exercido por uns poucos no cume (em particular o cérebro da organização), enquanto que aqueles das categorias médias tem muito menos controle e a maioria abaixo não tem nenhum.
Posto que o domínio, a coerção e a centralização são aspectos essenciais do autoritarismo, e dado que esses traços formam parte das hierarquias, toda instituição hierárquica é autoritária. Mais ainda, para os anarquistas, qualquer organização marcada pela hierarquia, pelo centralismo e pelo autoritarismo é quase-estatal, ou "estadista". E como os anarquistas se opõem ao estado e às relações autoritárias, aquele que não busque desmantelar todas as formas de hierarquia não pode ser chamado anarquista.
Sentimos a necessidade de enfatizar este ponto, pois alguns apologistas do capitalismo, pretendendo apropriar-se do termo "anarquista" por razão de sua associação com a liberdade, recentemente tem reivindicado que é possível ser capitalista e anarquista ao mesmo tempo (enquanto anarcocapitalista). Ora, uma vez que o capitalismo se baseia na hierarquia (sem mencionar o estadismo e a exploração), "anarco"-capitalismo é uma contradição. (Mais sobre este assunto na Seção F).
A.2.9 QUE TIPO DE SOCIEDADE OS ANARQUISTAS DESEJAM?
Os anarquistas querem uma sociedade descentralizada, baseada na livre associação. Consideramos esta forma de sociedade a melhor para elevar ao máximo os valores que delineamos anteriormente -- a liberdade, a igualdade, a solidariedade. Apenas por meio de uma descentralização racional do poder, estruturalmente e territorialmente, a liberdade individual pode ser fomentada. A delegação de poderes nas mãos de uma minoria é uma negação da liberdade e da dignidade individual. Em vez de usurpar a gestão de seus próprios assuntos das mãos do povo, os anarquistas ajudam organizações que minimizam a autoridade, mantendo o poder na base, nas mãos dos afetados pelas decisões alcançadas.
A livre associação é a pedra angular da sociedade anarquista. Os indivíduos devem ser livres para unirem-se da forma como julgue conveniente, uma vez que esta é a base da liberdade e da dignidade humana. Contudo, tais livres convênios devem basear-se na descentralização do poder, de outro modo ele será uma farsa (como no capitalismo), pois que somente a igualdade outorga o contexto social necessário para o desenvolvimento e o crescimento da liberdade. Portanto os anarquistas apóiam os coletivos diretamente democráticos, baseados em "uma pessoa, um voto" (ver a Seção A.2.11 Por que os anarquistas apóiam a democracia direta? que analisa a racionalidade da democracia direta como o complemento político do livre acordo).
Em outras palavras, os coletivos seriam regidos por assembléias em massa de todos seus membros, com os assuntos puramente administrativos geridos por comitês eleitos para o caso. Estes comitês comunais seriam formados por delegados temporários revogáveis que executariam seus trabalhos sob vigilância da assembléia que os elegeu. Se os delegados atuarem contrários ao seu mandato ou tratarem de estender sua influencia ou trabalho alem do decidido pela assembléia (i.e. se empenham a tomar decisões políticas), poderiam ser instantaneamente revogados e suas decisões canceladas. Deste modo, a organização permanece na união de indivíduos que a formou.
Estes coletivos igualitários, formados por livres acordos, por sua vez se associam livremente em confederações. Tal confederação livre se formaria de baixo para cima, as decisões fluindo desde as simples assembléias para cima. As confederações seriam geridas de maneira semelhante aos coletivos. Regularmente haveria conferencias locais regionais, "nacionais" e internacionais nas quais todos os assuntos importantes e os problemas que afetam aos coletivos seriam discutidos. Alem disso, os princípios fundamentais e as idéias da sociedade seriam debatidos e as decisões políticas seriam tomadas, postas em vigor, revistas e coordenadas.
Formar-se-iam comitês de ação, caso necessário, para coordenar e administrar as decisões das assembléias e seus congressos, sob estrito controle desde baixo segundo discutimos antes.
Mais importante ainda, as assembléias comunais básicas podem anular qualquer decisão tirada pelas confederações e desfiliarem-se de uma confederação. Alem disso, podem convocar conferencias confederais para discutir novos assuntos e para informar aos comitês de ação acerca de novos desejos e para instruí-los sobre o que fazer com respeito às novas exigências e idéias.
Organizados desta maneira, a hierarquia é abolida, já que o povo controla tudo desde a base da organização, não seus delegados. Somente esta forma de organização pode substituir ao governo (iniciativa e o fortalecimento de uns poucos) pela anarquia. Esta forma de organização existiria em todas as atividades que requerem trabalho de grupo e a coordenação de muita gente. Seria como disse Bakunin, o meio "para integrar indivíduos dentro de estruturas que eles poderiam compreender e controlar". As iniciativas individuais seriam geridas pelo próprio individuo.
A.2.10 O QUE SIGNIFICARÁ E O QUE SE OBTERÁ COM A ABOLIÇÃO DA HIERARQUIA?
A criação de uma nova sociedade baseada em organizações libertarias terá um incalculável efeito na vida diária. O fortalecimento de milhões de pessoas transformará a sociedade de uma forma que hoje em dia apenas podemos imaginar. Contudo, há muitos que consideram estas formas de organização impraticáveis e condenadas ao fracasso.
Contra os que dizem que tais organizações não autoritárias (confederadas) somente causarão confusão e desunião, os anarquistas sustentam que a forma de organização estadista, centralizada e hierárquica produz indiferença em vez de compromisso, dureza de coração em lugar de solidariedade, uniformidade em vez de unidade, e elites privilegiadas em lugar de igualdade. Mais importante, tais organizações destroem a iniciativa individual e a ação independente e o pensamento crítico. (Mais sobre hierarquia, ver a Seção B.1 "Por que os anarquistas são contra a autoridade e a hierarquia" e seções afins).
Que a organização libertária é capaz de funcionar e se baseia (e fomenta) na liberdade se demonstrou no movimento anarquista espanhol. Fenner Brockway, secretário do Independent Labour Party britânico, visitando Barcelona durante a revolução de 1936, notou que "a grande solidariedade que existia entre os anarquistas se devia a que cada indivíduo dependia de suas próprias forças e não de liderança [...] As organizações devem, para ter êxito, ser combinadas com gente de pensamento livre; não uma massa, mas indivíduos livres" [citado por Rudolf Rocker, Anarcosindicalismo, p. 58]
Como já foi demonstrado abundantemente, as estruturas centralizadas limitam a liberdade. Como Proudhon anotou: "o sistema centralista é muito bom com relação ao tamanho, à simplicidade e à construção; falta-lhe apenas uma coisa -- o individuo deixa de pertencer-se a si mesmo em tal sistema, não pode apreciar seu próprio valor, sua vida, e ninguém se dá conta dele" [citado em Paths in Utopia, Martin Buber, p.33].
Os efeitos da hierarquia podem ser vistos ao derredor. Não funciona. A hierarquia e a autoridade existem por todas as partes, no trabalho, em casa, na rua. Como disse Bob Black, "Se passas a maior parte de tua vida recebendo ordens ou beijando cús, se te costumas à hierarquia, te converterás em passivo-agressivo, sado-masoquista, servil e estúpido, e levarás esse peso a todos os aspectos do resto de tua vida." [The Libertarian as Conservative].
Isto significa que o fim da hierarquia trará consigo uma transformação massiva na vida cotidiana. Implicará a criação de organizações centradas no individuo dentro das quais todos poderão exercitar suas habilidades ao máximo.
Somente a autodeterminação e o livre acordo em cada nível da sociedade poderá desenvolver a responsabilidade, a iniciativa, a inteligência e a solidariedade dos indivíduos e a completa sociedade. Unicamente uma organização anarquista permite acesso e utilização do vasto talento que existe dentro da humanidade, enriquecendo a sociedade através do mesmo processo que enriquece e desenvolve o individuo. Somente envolvendo a todos no processo de imaginar, planejar, coordenar e implementar as decisões que os afetam poderá florescer a liberdade e poderá desenvolver-se e ser protegida a individualidade. A anarquia desatará a criatividade e o talento das massas populares escravizadas pela hierarquia.
A anarquia beneficiará inclusive aqueles que dizem beneficiar-se pelo capitalismo e suas relações autoritárias. Os anarquistas "sustentam que ambos, os que mandam e os que são mandados são deformados pela autoridade; ambos, exploradores e explorados são estropiados pela exploração" [Piotr Kropotkin, Act for Yourself, p. 38] É assim porque "em qualquer relação hierárquica tanto o dominador quanto o dominado pagam um preço. O preço pago pela 'glória de mandar' é verdadeiramente pesado. Cada tirano se ressente de suas obrigações. Ele está condenado a arrastar o peso morto do dormente potencial criativo de seus subordinados pelo caminho de sua incursão hierárquica" [The Right to be Greedy, For Ourselves].
A.2.11 POR QUE OS ANARQUISTAS SÃO A FAVOR DA DEMOCRACIA DIRETA?
Para os anarquistas, o voto democrático direto sobre decisões políticas dentro das associações livres é o contraponto político do livre acordo. A razão é que "muitas formas de dominação podem ser empreendidas de 'uma maneira livre, não-coercitiva [...] e é ingênuo [...] pensar que a mera oposição ao controle político em si nos levará ao final da opressão" [John P. Clark, Max Stirner's Egoism, p.93].
Uma vez que uma pessoa se associa a uma comunidade ou a um posto de trabalho, ele ou ela se converte em um/uma "cidadã" (por falta de melhor palavra) dessa associação. A associação se organiza em torno de uma assembléia de todos seus membros (no caso de grandes centros de trabalho e aglomerações, este pode ser um subgrupo funcional como uma fábrica ou um bairro). Nesta assembléia, em acordo com outras, se define o conteúdo de suas obrigações políticas. Atuando dentro da associação, as pessoas exercem juízos críticos e escolhem, ou seja, gerenciam suas atividades. Isso significa dizer que a obrigação política não se restringe a uma entidade aparte e acima do grupo ou sociedade, tal como o estado ou a empresa, sem os "concidadãos".
Mesmo que o povo em assembléia legisle coletivamente as regras que governam sua associação, e estão sujeitos a elas como indivíduos, também são superiores a elas no sentido de que essas regras sempre podem ser modificadas ou abolidas. Coletivamente, os "cidadãos" associados constituem a autoridade política, mas como esta autoridade está baseada em relações horizontais entre eles e a elite, a "autoridade" é não-hierárquica ("racional" ou "natural", ver Seção B.1 "Por que os anarquistas são contra a autoridade e a hierarquia").
Claro que se poderia alegar que se estás em minoria, serás governado por outros. Contudo, o conceito de democracia direta tal como descrevemos não está necessariamente ligado ao conceito de governo da maioria. Se alguns se encontram em minoria em uma votação particular, essa pessoa tem então que escolher se consente ou se nega a reconhecer a decisão como obrigatória. Negar à minoria a oportunidade de exercer seu juízo e sua escolha é infringir em sua autonomia e impor-lhe uma obrigação que não aceitou livremente. A imposição à força da vontade majoritária é contrária ao ideal da obrigação auto-assumida, e por isso é contrária à democracia direta e à livre associação. Portanto, longe de ser uma negação da liberdade, a democracia direta dentro do contexto da livre associação e a obrigação autoassumida é a única maneira de alimentar a liberdade. Alem do mais, uma minoria, se permanece dentro da associação, pode apelar seu caso e tratar de convencer a maioria de seu erro.
Os laços entre as associações seguem o mesmo modelo que as associações. Em vez de indivíduos unidos em uma associação, temos associações unidas em confederações. Os enlaces entre associações dentro de uma confederação são da mesma natureza horizontal e voluntária que nas associações, com os mesmos direitos de "voz e saída" de seus membros. O funcionamento de tal confederação se perfila na Seção A.2.9 (Quê tipo de sociedade desejam os anarquistas?) e se discute em maior detalhe na Seção I (Como o anarquista gostaria que fosse a sociedade?).
A.2.12 O CONSENSO É UMA ALTERNATIVA À DEMOCRACIA DIRETA?
O consenso, embora constitua a "melhor" opção para a tomada de decisões, visto que todos estão de acordo, também tem seus problemas. Como aponta Murray Bookchin ao descrever suas experiências de consenso, este pode ter consequencias autoritárias, já que "para [...] criar pleno consenso em uma decisão os dissidentes minoritários são muitas vezes sutilmente pressionados ou psicologicamente forçados a declinar seu voto em um assunto problemático, visto que sua dissidência constituiria o veto por uma pessoa. Esta prática, chamada 'ficar de lado' no processo de consenso americano, muitas vezes acarreta a intimidação dos dissidentes, até ao ponto de se subtrair por completo o processo de tomada de decisões, antes de fazer uma honrosa e continuada expressão de seu desacordo com o voto, inclusive como minoria, de acordo com seus pontos de vista. Havendo-se retirado, sacrificando sua identidade política, para que possa tomar-se uma decisão [...]. O consenso se obteve finalmente apenas depois que os membros dissidentes se anulassem como participantes no processo.
"A nível mais teórico, o consenso silenciou o aspecto mais vital do diálogo, a dissensão. A dissensão em curso, o diálogo apaixonado que ainda persiste inclusive depois que a minoria acede temporariamente à decisão majoritária, [...] [pode ser] substituído [...] por enfadonhos monólogos, e pelo apolêmico e soporífero tom do consenso. Na tomada de decisões majoritárias, a minoria derrotada pode entrar com um recurso para anular uma decisão na qual haviam sido derrotados; são livres para articular persistente e abertamente desacordos razoáveis e potencialmente persuasivos. O consenso, por sua parte, não honra nenhuma minoria, as emudece a favor do "uno" metafísico do "grupo consensual" ["What Is Communality: The Democratic Dimension of Anarchism].
Bookchin não "nega que o consenso possa ser uma forma apropriada de tomada de decisões em pequenos grupos de pessoas que estão muito familiarizados uns com os outros". Ainda assim nota que na prática, sua experiência lhe ensinou que "quando grupos maiores resolvem tomar decisões através do consenso, geralmente são forçados a tirar o mais baixo denominador comum intelectual ao domar decisões: a menos polêmica ou inclusive a mais medíocre das decisões que uma assembléia de certo tamanho pode alcançar é a aceita, precisamente porque cada um tem que estar de acordo com ela do contrario tem que abster-se de votar no assunto" [Op. Cit.]
Por conseguinte, devido à sua natureza potencialmente autoritária, os anarquistas em geral negam que o consenso seja o espectro político da livre associação. Embora seja vantajoso tratar de chegar a um consenso, em geral não é prático fazê-lo, especialmente em grupos grandes, sem olhar seus outros efeitos negativos. Muitas vezes rebaixa uma sociedade ou livre associação com sua tendência a subtrair a individualidade em nome da comunidade e a dissensão em nome da solidariedade. Nem a verdadeira comunidade nem a solidariedade evoluem quando o desenvolvimento do individuo e sua auto-expressão são abortados pela censura e pela pressão pública. Pelos indivíduos serem únicos, eles também tem pontos de vista únicos, cuja expressão deveria ser alentada. Agindo assim eles fazem com que a sociedade evolua e seja enriquecida pelas ações e pelas idéias do individuo.
A.2.13 OS ANARQUISTAS SÃO INDIVIDUALISTAS OU COLETIVISTAS?
A resposta curta é: nenhuma das duas Pode-se ver pelos fatos que os liberais eruditos acusam anarquistas como Bakunin de serem "coletivistas" ao passo que os marxistas atacam Bakunin e os anarquistas em geral de serem "individualistas". Não é de surpreender, uma vez que os anarquistas rechaçam ambas as ideologias como tolices. Gostem ou não, os individualistas não anarquistas e os coletivistas não anarquistas são as duas caras da moeda capitalista. Isto se demonstra considerando o capitalismo moderno, onde as tendências "individualista" e "coletivista" continuamente se influem mutuamente, muitas vezes com o pêndulo da estrutura política e econômica oscilando de um extremo a outro. O coletivismo e o individualismo capitalista são aspectos parciais da existência humana, e da mesma forma que todas as manifestações de desequilíbrio, estão profundamente degeneradas.
Para os anarquistas, a idéia de que os indivíduos deveriam sacrificar-se "pelo grupo" ou "pelo bem comum" não tem sentido. Os grupos são formados por indivíduos, e se as pessoas pensam somente no bem estar do grupo, esse grupo será uma casca sem vida. Somente a dinâmica do intercambio humano dentro de um grupo é o que lhe dá vida. Os "grupos" não podem pensar, apenas os indivíduos pensam. Ironicamente, este fato leva os "coletivistas" autoritários à classe de "individualismo" mais peculiar, o "culto da personalidade" e a adoração do líder. É de se esperar, uma vez que tal coletivismo amontoa os indivíduos em grupos abstratos, lhes nega sua individualidade e acaba precisando que alguém com suficiente individualidade tome decisões; os problemas se "resolvem" com as idéias do líder. O Stalinismo e o Nazismo são excelentes exemplos deste fenômeno.
Estas considerações não significam que o "individualismo" encontre apoio entre os anarquistas. Como assinalou Emma Goldman, "o individualismo exacerbado [...] não é mais que uma tentativa dissimulada de reprimir e de derrotar o individuo e a sua individualidade [...] invariavelmente resulta no incremento das distinções de classe [...] supondo todo o individualismo para os amos, enquanto que o povo é arregimentado em uma casta de escravos a serviço de um punhado de super homens egoístas" [Habla Emma La Roja, p. 89].
Enquanto os grupos não pensarem, os indivíduos não poderão viver nem discutir por si sós. Todavia, devido a sua perspectiva desequilibrada, os "individualistas" acabam apoiando algumas das instituições mais "coletivistas" que existem: as empresas capitalistas, e alem disso, sempre defendem a necessidade de um estado apesar de suas frequentes acusações contra ele. Estas contradições nascem da dependência do individualismo capitalista de contratos individuais em uma sociedade desigual, ou seja, um individualismo abstrato.
Em contraste, os anarquistas acentuam o individualismo social. O anarquismo "insiste que o centro de gravidade da sociedade é o individuo, que tem que pensar por sim mesmo, atuar livremente, e viver plenamente [...]. Se alguém quer desenvolver-se livre e plenamente, tem que se ver livre da interferência e da opressão dos outros [...]. Isto nada tem a ver com [...] individualismo exacerbado. Tal individualismo depredador é na realidade débil, não robusto. Ao menor perigo à sua segurança, corre em direção ao estado para buscar refúgio e ajuda pela sua proteção [...] seu individualismo exacerbado é simplesmente uma das muitas atitudes típicas da classe dominante com vistas à extorsão política e a usurpação dos trabalhadores" [Emma Goldman, Ibid., p.397].
O anarquismo rechaça o individualismo abstrato do capitalismo, com suas idéias "absolutas" de liberdade do individuo violentado por outros. Esta teoria ignora o contexto social que é o ambiente onde a liberdade existe e cresce.
Uma sociedade baseada em "contratos individuais" geralmente resulta da desigualdade de poder entre os indivíduos contratantes e gera a necessidade de uma autoridade baseada em leis acima deles e na coerção organizada para forçar o cumprimento dos contratos entre eles. Vê-se claramente esta consequencia no capitalismo e, mais notável ainda, na teoria do "contrato social" da qual se desenvolveu o estado. Nesta teoria se assume que os indivíduos são "livres" quando estão isolados uns dos outros, estando, como dizem, originalmente em um "estado natural". Uma vez agrupados em sociedade, se supõe que criaram um "contrato" e um estado para administrá-lo. Contudo, além de ser uma fantasia sem nenhuma base na realidade (os seres humanos sempre foram animais sociais) esta "teoria" não é mais que uma justificação dos extensos poderes do estado sobre a sociedade; o que por sua vez justifica o sistema capitalista, que requer um estado forte. Também copia os resultados das relações econômicas capitalistas sobre as que se constrói esta teoria. Dentro do capitalismo, os indivíduos se contratam "livremente", mas na prática o patrão manda sobre o trabalhador enquanto dura o contrato. (Ver Seções A.2.14 e B.4 para mais detalhes)
Na prática, o individualismo e o coletivismo levam à negação da liberdade individual, à autonomia e à dinâmica de grupos. Ademais, um supõe o outro, o coletivismo nos leva a uma forma particular de individualismo e o individualismo nos leva a uma forma particular de coletivismo.
O coletivismo, com sua supressão implícita do individuo, no final das contas acaba por empobrecendo à comunidade, uma vez que os grupos apenas têm vida através dos indivíduos que os formam. O individualismo, com sua supressão explícita da comunidade (i.e. as pessoas com que alguém vive) no final das contas empobrece ao individuo, pois os indivíduos não existem aparte da sociedade, passa a existir dentro dela. Alem de tudo o individualismo acaba por restringir a uns "poucos eleitos" as intuições e habilidades dos indivíduos que formam o resto da sociedade, [agindo] desta maneira [se constituem] numa fonte de autonegação. Esta é o erro (e a contradição) maior do individualismo, "a impossibilidade do individuo chegar a alcançar um pleno desenvolvimento em condições de opressão das massas pelas "belas aristocracias". Seu desenvolvimento permaneceria desequilibrado" [Piotr Kropotkin, Revolutionary Pamphlets, p.293].
A verdadeira liberdade e comunidade existem em alguma outra parte.
A.2.14 POR QUE O SISTEMA VOLUNTÁRIO NÃO É SUFICIENTE?
O sistema voluntário (voluntarismo) significa que a associação deveria ser voluntaria para maximizar a liberdade. Os anarquistas são, obviamente, voluntaristas, ao crerem que apenas na livre associação, criada por livres acordos, os indivíduos podem se desenvolver, crescer e expressar sua liberdade. Ë evidente, sem dúvida, que sob o capitalismo o voluntarismo não basta para maximizar a liberdade. O sistema voluntário supõe a promessa (i.e. a liberdade de entrar em contratos) e a promessa supõe a capacidade individual de juízo independente e deliberação racional. Também, ela pressupõe que possa valorizar e alterar suas ações e relações. Sob o capitalismo os contratos contradizem estas consequencias de voluntarismo, já que, mesmo tecnicamente "voluntários" (vimos na Seção B.4 que não é realmente assim) os contratos capitalistas resultam n negação da liberdade. É assim porque a relação social salario-trabalho supõe a promessa de obedecer em troca de pagamento. Todavia, como assinala Carole Patemen em The Problem of Political Obligation "prometer obediência é afirmar que, em certas áreas, a pessoa que faz a promessa já não tem a liberdade de exercer suas capacidades e de decidir suas próprias ações, e deixa de ser um (uma) igual para ser um (uma) subordinado (a)." [p.19].
Efetivamente, sob o capitalismo serás livre desde que escolhas a quem vais obedecer! A liberdade, contudo, deve significar mais que o direito de mudar de chefe. A servidão voluntária continua sendo servidão. Portanto os anarquistas realçam a necessidade da democracia direta nas associações voluntarias para assim assegurar que o conceito de "liberdade" não é uma farsa e uma justificação para a dominação, como ocorre sob o capitalismo.
Toda relação social baseada no individualismo abstrato estará provavelmente baseada na força, no poder, na autoridade, e não na liberdade. Portanto isto não configura uma definição de liberdade na qual os indivíduos exercem suas capacidades e decidem suas próprias ações. Consequentemente, o voluntarismo não é suficiente para criar uma sociedade que eleve ao máximo a liberdade.
Certamente, poder-se-ia objetar que os anarquistas valorizam certas formas de relação social mais que outras e que um verdadeiro libertário deve permitir ao povo a liberdade de escolher suas próprias relações sociais. Contestando à segunda objeção primeiro, em uma sociedade baseada na propriedade privada (e no estadismo) os proprietários têm mais poder, o qual podem usar para perpetuar sua autoridade. Por que deveríamos evitar a servidão ou tolerar aqueles que desejam reprimir a liberdade dos outros? A "liberdade" de mandar é a liberdade de escravizar, e é de fato uma negação da liberdade.
Com respeito à primeira objeção, nós, os anarquistas nos declaramos culpáveis. Teríamos prejuízo reduzindo seres humanos à condição de robôs. Teríamos prejuízo sacrificando a dignidade e a liberdade humana. Teríamos prejuízo, evidentemente, sacrificando a humanidade e a liberdade.
A Seção A.2.11 explica por que a democracia direta é o reflexo social necessário do voluntarismo (i.e. do livre acordo). A Seção B.4 discute por que o capitalismo não pode basear-se em uma igualdade de poder negociativo entre os proprietários e os que não o são.
A.2.15 E QUANTO À NATUREZA HUMANA?
Os anarquistas, longe de ignorar a "natureza humana", têm a única teoria política que pensa e reflete profundamente sobre este conceito. Muitas vezes, a "natureza humana" é lançada como se fosse a última linha defensiva nos argumentos contra o anarquismo, supondo que não admite contestação. Todavia, não é assim.
Em primeiro lugar, a natureza humana é algo muito complicado. Se por natureza humana se quer dizer "o que fazem os humanos" é obvio que a natureza humana é contraditória: amor, ódio, compaixão e crueldade, paz e violência, etc. tem sido expressões das pessoas e todas são produto da "natureza humana". Portanto aquilo que se considera natureza humana muda conforme mudam as circunstancias sociais. Por exemplo, a escravidão foi considerada parte da "natureza humana" e "normal" durante milhares de anos, e a guerra só se converteu em parte da natureza humana com o desenvolvimento dos estados. Portanto, o meio ambiente joga um papel importante na definição do que constitui a "natureza humana".
Isto não quer dizer que os seres humanos sejam infinitamente plásticos, cada individuo uma tábua plana (uma página em branco) ao nascer, esperando ser moldado pela "sociedade" (o qual na prática significa por aqueles que a gerem). Não queremos entrar em um debate sobre quais características humanas são ou não são "inatas". A única coisa que podemos dizer é que os seres humanos têm uma habilidade inata para pensar e aprender, o que julgamos evidente; e que os humanos são criaturas sociais, que necessitam da companhia dos demais para sentirem-se completos e para prosperar.
Estes dois traços, segundo cremos, sugerem a viabilidade da sociedade anarquista. A habilidade inata para pensar por si mesmo automaticamente torna ilegítimas todas as formas de hierarquia, e nossa necessidade de relações sociais supõe que podemos nos organizar sem estado. O profundo descontentamento e alienação que afligem à sociedade moderna revelam que a centralização e o autoritarismo do sistema capitalista e do estado negam necessidades inatas dentro de nós.
De fato, como foi dito anteriormente, durante a maior parte de sua existência, a raça humana viveu em comunidades anárquicas, com pouca ou nenhuma hierarquia. Que a sociedade moderna qualifique essas pessoas de "selvagens" ou "primitivos" é pura arrogância. Quem pode afirmar que o anarquismo vai contra a natureza humana? Os anarquistas acumularam provas suficientes que sugerem que não é assim.
No que diz respeito à acusação de que os anarquistas pedem demasiado à "natureza humana", são muitas vezes os não anarquistas os que fazem as maiores exigências a ela. Posto que "enquanto nossos oponentes parecem admitir que haja uma espécie de sal da terra: os governantes, os patrões, os líderes, os quais, afortunadamente, impedem que esses homens maus: os governados, os explorados, os dirigidos, se tornem muito piores do que são [...], há uma diferença, uma muito importante. Nós reconhecemos as imperfeições da natureza humana, mas não excetuamos aos que mandam. Eles se excetuam, ainda que às vezes inconscientemente." [Piotr Kropotkin, Act for Yourself p. 83] Se a natureza humana é tão má, então dar a alguns o poder sobre outros e esperar que isto nos leve à liberdade e à justiça é uma utopia inútil.
Hoje, contudo, com o auge da "sociobiologia" alguns afirmam (com muito poucas provas reais) que o capitalismo é um produto de nossa "natureza", à qual é determinada pelos genes. Estas declarações foram tomadas de assalto pelas autoridades. Considerando a escassez de provas, seu apoio a esta "nova" doutrina tem que ser necessariamente o resultado de sua utilidade para aqueles que estão no poder: i.e. o fato de que é útil ter uma base "objetiva" e "científica" que justifique esse poder. Igualmente ao darwinismo social que a precedeu, a sociobiologia procede primeiro projetando sobre a natureza as idéias dominantes da sociedade atual (muitas vezes inconscientemente, assim os cientistas consideram erroneamente as idéias em questão como "normais" e "naturais"). Depois as teorias sobre a natureza assim produzidas se transferem retroativamente à sociedade e à história, usando-as para "provar" que os princípios do capitalismo (a hierarquia, a autoridade, a competência, etc.) são leis eternas, que são depois usadas para justificar o status quo! Assombrosamente, há muita gente, supostamente inteligente, que considera hierarquia, autoridade, competência, etc. como leis eternas, que são depois usadas para justificar o status quo!
Assombrosamente, há muita gente, supostamente inteligente, que leva este conto-do-vigário a sério.
Este tipo de apologia passa a ser tida como natural, já que toda classe dominante reivindica seu direito de governar baseado na "natureza humana" e, portanto apóia doutrinas que definem a natureza humana de maneira que pareçam justificar o poder da elite, sejam elas a sociobiologia, o direito divino, o pecado original, etc. Obviamente, tais doutrinas sempre foram falsas [...] até hoje, quando se evidenciou que nossa sociedade atual está verdadeiramente moldada à "natureza humana" o que foi provado cientificamente pelo nosso atual sacerdócio científico!
A arrogância desta afirmação é verdadeiramente surpreendente. A história não se detém. Daqui a mil anos, a sociedade será completamente diferente do que é agora, mais diferente do que se possa imaginar. Nenhum governo existente hoje em dia existirá mais, e o sistema econômico atual tampouco existirá. A única coisa que permanecerá igual é que pessoas ainda dirão que sua nova sociedade é o "verdadeiro sistema" que se molda completamente à natureza humana, mesmo que os sistemas passados não o tenham feito.
Claro, não passa pela mente dos que apóiam o capitalismo que povos de diferentes culturas tiraram conclusões diferentes dos mesmos fatos, conclusões que podem ser mais válidas. Nem ocorre aos apologistas do capitalismo que as teorias dos cientistas "objetivos" possam estar contaminadas pelo contexto da sociedade dominante em que vivem. Contudo, não surpreende aos anarquistas que os cientistas trabalhando na Rússia tzarista desenvolveram uma teoria da evolução baseada na cooperação das espécies, muito diferente da de seus colegas da Inglaterra capitalista, que desenvolveram uma teoria baseada na luta competitiva dentro e entre as espécies. Que a segunda teoria refletisse as teorias políticas e econômicas dominantes na sociedade Britânica (notavelmente o individualismo competitivo) é pura coincidência, certamente. "El Apoyo Mutuo" de Kropotkin foi escrito em resposta aos evidentes erros que o Darwinismo Social inglês projetava sobre a natureza e a vida humana.
A.2.16 O ANARQUISMO REQUER PESSOAS "PERFEITAS" PARA FUNCIONAR?
Não. A anarquia não é uma utopia, uma sociedade "perfeita". Será uma sociedade humana, com todos os problemas, esperanças, e temores dos seres humanos. Os anarquistas não crêem que os seres humanos têm que ser "perfeitos" para que a anarquia funcione. Somente necessitam ser livres.
Evidentemente, cremos que uma sociedade livre produzirá gente que estará muito mais afinada com sua individualidade, suas necessidades e as dos demais, o que diminuirá os conflitos individuais. As disputas restantes se resolveriam por métodos razoáveis, por exemplo, o uso de jurados, terceiros intermediários, ou assembléias comunais e locais de trabalho.
Como ocorre com o argumento "o anarquismo vai contra a natureza humana" (ver Seção A.2.15) os oponentes do anarquismo geralmente assumem gente "perfeita", como gente que não será corrompida pelo poder quando ocuparem posições de autoridade, gente que permanecerá estranhamente imune aos efeitos degradadores da hierarquia, ao privilégio, etc. Contudo, os anarquistas não fazem tais exigências sobre a perfeição humana. Reconhecemos que investir poder nas mãos de uma pessoa ou de uma elite nunca foi uma boa idéia, uma vez que ninguém é perfeito e necessita prestar contas aos demais.
Cabe ressaltar que a noção de que o anarquismo requer um "novo" homem ou mulher é usada pelos "anarcocapitalistas" de direita para desacreditar o verdadeiro anarquismo e justificar a permanência da autoridade hierárquica, em especial as relações capitalistas de produção. Todavia, um pouco de reflexão mostrará que suas observações desmentem suas próprias pretensões de serem anarquistas já que supõem explicitamente uma sociedade anarquista sem anarquistas! Não é exagero dizer que uma "anarquia" formada por gente que ainda necessita da autoridade e do estado de pronto se tornaria autoritária e estadista (i.e. não-anarquista) mais uma vez.
E isso porque se o governo fosse derrubado amanhã, o mesmo sistema renasceria outra vez, pois "a força do governo se assenta não em si mesma, mas no povo. Um grande tirano pode ser um idiota em vez de um super homem. Sua força não reside em si, mas na superstição do povo que crê que o correto é obedecer. Enquanto existir essa superstição é inútil que venha um libertador para decapitar a tirania; o povo criará outra, posto que se acostumou a depender de algo fora de si mesmo." [George Barret Objections To Anarchism].
Em outras palavras, a anarquia necessita anarquistas para ser criada e sobreviver. Mas esses anarquistas não tem por que serem perfeitos, simplesmente pessoas que se libertaram, por seus próprios esforços, da superstição de que as relações de mando-obediência são necessárias. A suposição implícita na idéia de um "novo" ser anarquista é que a liberdade será dada, não tomada; daí vem a conclusão evidente que uma anarquia que requeira seres "perfeitos" fracassará. Mas este arrazoamento ignora a necessidade de autoatividade e autolibertação para criar uma sociedade livre.
Os anarquistas não deduzem que gente "perfeita" seja necessária, porque o anarquista não é um libertador com uma missão divina de libertar a humanidade, mas que é parte dessa humanidade lutando e avançando em direção à liberdade.
"Então, se por algum meio externo pudesse ser dada ao povo, ou seja, uma Revolução Anarquista confeccionada, imediatamente a rechaçariam e reconstruiriam a antiga sociedade. Se, por outra parte, o povo desenvolvesse suas idéias de liberdade, e eles mesmos se desfizessem do último vestígio de tirania, o governo, então a revolução será levada a cabo permanentemente." [Ibid.].
A.2.17 AS PESSOAS NÃO SERIAM ESTÚPIDAS DEMAIS PARA QUE UMA SOCIEDADE LIVRE POSSA FUNCIONAR?
Sentimos ter que incluir esta pergunta neste tratado de anarquismo, mas sabemos que muitas ideologias políticas assumem explicitamente que as pessoas comuns são demasiado estúpidas para serem capazes de gerir suas próprias vidas e sua sociedade. Em todos os ramos da agenda política capitalista, da esquerda à direita, há pessoas que fazem esta afirmação. Tanto os leninistas, como os fabianistas ou objetivistas, supõem que apenas uns poucos eleitos são inteligentes e criativos e que estas pessoas devem governar aos demais. Geralmente, esse elitismo se esconde atrás de uma retórica astuta sobre a "liberdade", a "democracia" e outros lugares comuns com os quais os ideólogos tratam de adormecer o senso crítico das pessoas dizendo o que elas querem ouvir.
Tampouco surpreende, naturalmente, que aqueles que crêem nas elites "naturais" sempre se autoclassificam como no topo. Não encontramos ainda nenhum "objetivista", por exemplo, que se considere parte da grande massa dos "segunda categoria", que seria um gari no desconhecido "ideal" do capitalismo "real". Qualquer um que leia um texto elitista se considerará a si mesmo parte dos "poucos eleitos". É "natural em uma sociedade elitista a elites serem vistas como naturais e considerar-se ele mesmo como um membro potencial de uma delas"!
Um exame da nossa historia demonstra que há uma ideologia elitista básica que foi a racionalização essencial de todos os estados e classes dominantes desde seu nascimento nos princípios da Idade do Bronze. Esta ideologia simplesmente muda de roupa, não de conteúdo interno básico.
Durante a Alta Idade Media, por exemplo, esteve travestida de cristianismo, adaptando-se às necessidades da hierarquia eclesiástica. O dogma "divinamente revelado" mais útil para a elite sacerdotal foi "o pecado original": a idéia de que os seres humanos são basicamente criaturas depravadas e incompetentes que necessitam ser "dirigidos desde cima", com os sacerdotes como convenientes e necessários intermediários entre os humanos ordinários e "deus". A idéia de que as pessoas normais e simples são basicamente estúpidas e incapazes de governar a si mesmo é uma herança desta doutrina, uma relíquia da Idade Média.
Para contestar àqueles que afirmam que a maioria das pessoas não é mais que gente de "segunda categoria", "zé povinho" e incapazes de se envolver além da "consciência sindical", tudo o que podemos dizer é que é absurdo e que não aguenta nem uma revisão superficial da história, particularmente no que se refere ao movimento operário. Os poderes criativos daqueles que lutam por liberdade são muitas vezes verdadeiramente surpreendentes, e se este potencial intelectual e esta inspiração não é evidente na sociedade "normal", isso constitui a mais clara denuncia possível dos efeitos adormecedores da hierarquia e do conformismo produzidos pela autoridade. (Ver também a Seção B.1 para saber mais sobre os efeitos da hierarquia.)
Como indica Bob Black, "És o que fazes. Se fazes um trabalho chato, estúpido, monótono, o mais provável é que acabes sendo chato, estúpido e monótono. O trabalho é uma explicação muito melhor da crescente cretinização que ocorre ao redor de nós que esses mecanismos estupefacientes tão assinalados como a televisão e a educação. A pessoa que passa sua vida regimentada, guiada da escola para o trabalho e enjaulada pela família primeiro e no asilo de velhos depois, está habituada à hierarquia e é psicologicamente escrava. Sua aptidão para a autonomia está tão atrofiada que seu medo à liberdade é uma de suas poucas fobias com fundamento real. Seu treinamento à obediência no trabalho se transfere às famílias que eles formam, reproduzindo desta maneira o sistema em diferentes formas, e se transfere à política, à cultura e tudo o mais. Uma vez drenada a vitalidade da pessoa no trabalho, provavelmente se submeterá à hierarquia e à especialização em tudo. Estão acostumados a isso." [The Abolition of Work].
Quando os elitistas tratam conceber a libertação, apenas lhes ocorre que esta seja concedida aos oprimidos por elites benévolas (os leninistas) ou estúpidas (os objetivistas). Não surpreende, pois, que fracasse. Unicamente a autolibertação pode produzir uma sociedade livre. Os efeitos deprimentes e distorcidos da autoridade só podem ser superados pela auto-atividade. Os escassos exemplos de tal autolibertação provam que a maioria das pessoas, considerada incapaz de ser livre, está muito bem disposta para a luta.
Os que proclamam sua "superioridade" muitas vezes o fazem por medo de que sua autoridade e seu poder sejam destruídos uma vez que as pessoas se libertem da mão débil da autoridade e chegue a dar-se conta de que, segundo Max Stirner, "os grandes só o são porque estamos de joelhos."
Como aponta Emma Goldman acerca da igualdade das mulheres, "as extraordinárias conquistas das mulheres em todos os aspectos da vida silenciaram para sempre o falatório da inferioridade feminina. Os que ainda se agarram a este fetiche o fazem porque não odeiam nada tanto como ver sua autoridade entre as pernas. Esta é uma característica de toda autoridade, seja ela do patrão sobre o escravo econômico ou a do homem sobre a mulher. Não obstante, a mulher escapa de sua jaula e segue adiante com passos livres, grandes."
Os mesmos comentários podem aplicar-se, por exemplo, aos formidáveis experimentos bem sucedidos de auto-gestão operária durante a Revolução Espanhola. Citando Rousseau: "quando vejo multidões de selvagens totalmente desnudos depreciar a voluptuosidade européia e suportar fome, fogo, espada e morte unicamente para preservar sua independência, penso que não cabe aos escravos discorrer sobre a liberdade" [citado por Noam Chomsky, Red and Black Revolution, número 2].
A.2.18 OS ANARQUISTAS APOIAM O TERRORISMO?
Não, por duas razões. O terrorismo significa que o praticante não se incomoda pelo assassinato de pessoas inocentes. Para que exista a anarquia, esta deve ser criada por pessoas comuns. Ninguém pode ganhar a simpatia do povo na base de massacres. Em segundo lugar, anarquismo é autolibertação. Não se pode explodir as relações sociais com bombas. A liberdade não pode ser criada através das ações de uma elite minoritária destruindo governantes em nome da maioria. Enquanto as pessoas necessitarem de governantes, a hierarquia existirá (ver Seção A.2.16). Como destacamos antes, a liberdade não pode ser concedida, apenas tomada. Alem disso, os anarquistas não são contra indivíduos, mas contra as instituições e as relações sociais resultantes de que certos indivíduos tenham poder sobre outros e abusem (i.e. usem) esse poder. Portanto a revolução anarquista se baseia na destruição de estruturas, não pessoas. Como disse Bakunin: "não queremos a morte dos homens, mas a abolição de posições e coisas" [The Lullers].
Então por que o anarquismo é associado com a violência? Isto é em parte devido a que o estado e os meios de comunicação insistem em chamar de anarquistas a terroristas que não são anarquistas. Por exemplo, o grupo alemão Bader-Meinhoff foi muitas vezes chamado "anarquista" apesar de haver-se proclamado Marxista-Leninista. As calúnias, por desgraça, fazem seu trabalho. Mas a principal razão desta associação do anarquismo com o terrorismo foi o período da "propaganda pela ação" no movimento anarquista.
Esta etapa, de 1880 até 1890 aproximadamente, se caracterizou pelo assassinato de membros das classes dominantes (realeza, políticos etc.) pelas mãos de um pequeno número de anarquistas que atuavam individualmente. O fizeram por duas razões: primeiro, para vingar os mais de 20.000 mortos na brutal repressão da Comuna de Paris pelo governo francês, onde muitos anarquistas morreram (a propaganda pela ação começou e foi muito frequente na França); e segundo, como um meio para incitar o povo a rebelar-se lhe mostrando que os opressores poderiam ser derrotados.
É necessário esclarecer que a maioria dos anarquistas não apoiou esta tática, que em todo caso foi um fracasso, já que deu ao estado o pretexto para endurecer a repressão aos anarquistas e aos movimentos operários assim como também deu a oportunidade aos meios de informação de associar o anarquismo com a violência sem sentido, distanciando do movimento uma grande parte da população.
Também, a suposição por traz da propaganda pela ação, i.e. que o povo estava disposto a rebelar-se, era falsa. De fato, a pessoa é produto do sistema em que vive; portanto aceita quase todos os mitos utilizados para manter o sistema em pé. Com o fracasso da propaganda pela ação, os anarquistas regressaram ao que a maioria do movimento havia praticado por todos os modos: incitar a luta de classes e o processo de autolibertação. Este retorno às raízes do anarquismo pode ser visto no auge das federações anarcossindicalistas a partir de 1890 (ver Seção A.5.3).
Apesar da maioria dos anarquistas não estarem de acordo com a propaganda pela ação, poucos a considerariam como terrorismo ou descartariam o assassinato em todas as circunstancias. Bombardear uma aldeia porque pode ser esconderijo de inimigos é terrorismo, entretanto tirar a vida de um ditador assassino é na melhor das hipóteses legítima defesa e vingança na pior. Como os anarquistas têm dito por muito tempo, se por terrorismo se quer dizer "matar gente inocente" então o estado é o maior terrorista de todos. Se o povo, ao cometer "atos de terror" é realmente anarquista, fará o possível para evitar provocar qualquer dano a inocentes e nunca usará a linha estatista de que "a represália" é lamentável, mas inevitável.
Assim, pois, resumimos. Os anarquistas têm feito uso do terrorismo. Ele também tem sido usado por muitos outros grupos e partidos políticos, sociais e religiosos. Por exemplo, os cristãos, os marxistas, os hindus, os nacionalistas, os republicanos, os maometanos, os siks, os fascistas, os judeus e os patriotas todos tem cometido atos de terrorismo. Muito pouco destes movimentos ou ideologias tem sido qualificados de "terroristas por natureza", o qual demonstra como o anarquismo ameaça o status quo. Não há nada melhor para desacreditar e marginalizar uma idéia que gente maliciosa ou mal informada qualificando seus praticantes e adeptos como "bombardeadores loucos" sem opinião nem ideal algum, com nada mais que uma insana propensão à destruição.
Claro que a grande maioria dos cristãos e demais pessoas se opõem ao terrorismo como algo moralmente repugnante e contraproducente. O mesmo ocorre à grande maioria dos anarquistas em todo tempo e lugar. Não obstante, parece que em nosso caso é necessário proclamar nossa oposição ao terrorismo mais e mais vezes.
Para terminar, apenas uma pequena minoria de terroristas foram anarquistas, e apenas uma pequena minoria de anarquistas foi terrorista. O movimento anarquista em sua totalidade sempre reconheceu que as relações sociais não podem ser assassinadas ou bombardeadas para que possam desaparecer.
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