A opção do
PT
por Plínio de
Arruda Sampaio Jr.
Professor Livre-Docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.
“É na
práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a
realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensar. A controvérsia
acerca da realidade ou não realidade do pensar - que está
isolada da práxis – é uma questão puramente escolástica”.
K. Marx, Teses sobre Feuerbach.
Forjado nos
embates contra a opressão política e a exploração econômica no início dos anos
1980s, o PT cresceu e se fortaleceu no imaginário do povo brasileiro como um instrumento
de luta por uma sociedade justa e soberana. Por esse motivo, quando chegou ao poder, a
decisão de compor com as forças da ordem e simplesmente administrar o
status quo
gerou fortes reações entre os militantes comprometidos com a transformação social. A
racionalização da burocracia petista, ecoada nos movimentos sociais que permaneceram
presos à lógica do Lulismo, organizou-se em torno do discurso de que, pela sua
própria composição heterogênea, o caráter de classe do governo encontrava-se em aberto.
Uma década no poder é tempo mais do que suficiente para fazer um balanço da suposta
“disputa” e patentear as opções de classe que nortearam as decisões e as omissões da
gestão petista. O retrospecto é inequívoco. Em todos os embates decisivos, os governos
do PT não hesitaram em renegar a origem rebelde do Partido, dar as costas aos
interesses da classe trabalhadora e fechar fileira com a ordem estabelecida.
Antes mesmo
de tomar posse, a aceitação de nomes de confiança dos organismos internacionais
e do chamado “mercado” para o comando do Banco Central, Tesouro Nacional e
Secretaria da Receita Federal revelou a extrema docilidade das lideranças petistas em
relação à tutela do imperialismo e da plutocracia tupiniquim. Tal situação perdurou
até o segundo mandato de Lula, quando finalmente o governo petista fez um tímido movimento para colocar pessoas de sua confiança à frente dos postos-chaves da economia.
Nesse contexto, a breve passagem de Lina Viera no comando da Secretaria da Receita
Federal é elucidativa das opções do PT nas guerras intestinas pelo controle do
aparelho de
Estado. Seu esforço para acabar com o balcão de negócios e impor uma administração
tributária técnica e republicana durou pouco. Após menos de um ano no cargo, Lina
Vieira foi demitida, por intervenção direta Dilma Rousseff, então toda poderosa
Ministra da Casa Civil. O fato selava a aliança do governo petista com a burocracia
que representa no interior do Estado os interesses do capitalismo gangsteril.
A derrota
acachapante das forças que ousaram enfrentar os grandes fraudadores do fisco
reafirmava o que já havia sido definido no início do governo Lula, quando a
demissão de Marcelo
Rezende da Superintendência do INCRA surpreendeu a CPT e o MST, marcando
simbolicamente
a meteórica opção do PT pelo latifúndio. Nos anos seguintes, as políticas agrícolas e
agrárias confirmariam a vitória dos ruralistas e dos grandes grupos econômicos
que controlam o processo de produção e comercialização no campo. A aposta
na
competitividade espúria, baseada na superexploração do trabalho e nas vantagens naturais do
território, como forma de conquista de mercados externos, levou à revitalização
do agronegócio, liberando forças que reforçaram a concentração fundiária e
o poder do
grande capital financeiro sobre o campo. A liberalização do comércio exterior, sem nenhum
cuidado com a preservação da autonomia alimentar da Nação, expôs os agricultores
familiares à concorrência desigual de produtos importados. A dificuldade dos pequenos e
médios produtores foi agravada pelo estímulo à modernização indiscriminada, sob os
auspícios das grandes multinacionais que controlam os pacotes tecnológicos e biotecnológicos
da agricultura capitalista. O abandono da reforma agrária no governo Dilma,
caracterizado pela paralisia das desapropriações, é o resultado inexorável
desse processo.
A reforma
da previdência social dos funcionários públicos, exigência dos
organismos
internacionais, que motivou uma verdadeira rebelião de parlamentares petistas e
grandes campanhas de protesto, constitui o divisor de águas que acabava com
qualquer
ilusão em relação ao caráter progressista do governo. A ofensiva sobre os direitos
trabalhistas foi complementada com uma série de medidas que aprofundaram o processo de
flexibilização e precarização do trabalho iniciado por FHC: emprego por tempo
determinado; liberalidade na contratação de serviços braçais na forma de
empresas jurídicas;
jornadas móveis, Lei das Pequenas e Microempresas; desoneração da folha salarial;
Lei de Falência. A obsessão em reduzir o custo do trabalho revela a opção preferencial
de Lula e Dilma pela superexploração como galinha dos ovos de ouro do
capitalismo
brasileiro.
A expulsão
dos parlamentares que se insurgiram contra a traição das bandeiras históricas
do PT sacramentava a absoluta supremacia dos interesses do capital financeiro na
definição das prioridades da política econômica. A opção neoliberal foi
reafirmada pela
manutenção das políticas de metas inflacionárias e superávits fiscais impostas
por FHC por
determinação do FMI – decisão que subordina a expansão da economia ao comportamento
do mercado internacional, o crescimento do mercado interno às exigências
da estabilidade monetária, a defesa da indústria nacional aos imperativos da
liberalização
comercial e o gasto público às exigências dos rentistas que vivem a custas da dívida
pública. A escalada dos lucros das instituições financeiras durante o governo Lula é a
prova material do poder absoluto que o capital financeiro exerce sobre o Estado
brasileiro.
O rápido aborto da intenção do governo Dilma de reduzir os juros deixou patente a
inexistência de vontade política para enfrentar os interesses rentistas que
estão no comando
da política monetária mesmo quando eles implicam forte desgaste na opinião
pública e
desmoralização dos infundados sonhos neodesenvolvimentistas.
A
preponderância da lógica dos negócios levou Lula, eleito como o compromisso
explícito
de interromper a entrega de patrimônio público, a promover novas rodadas de privatização.
Em vez de reforçar o combalido orçamento das universidades federais, foi criado o
PROUNI que transferiu grandes massas de recursos para universidades privadas
de péssima
qualidade. Em vez de reforçar o orçamento do SUS, o governo do PT foi pródigo em
oferecer subsídios públicos, na forma de isenções e deduções fiscais, às operadoras
e usuários de planos e seguros privados de saúde. O processo de privatização da saúde
foi aprofundado no governo Dilma com a Emenda Constitucional 29 e com novas
iniciativas, urdidas nas salas do Palácio do Planalto, para restringir o SUS basicamente
a duas funções: a assistência de pessoas pobres e a cobertura de demandas negadas
pelas operadoras privadas por serem muito caras – em frontal oposição aos princípios
estabelecidos pela Constituição de 1988 que determinava a organização de um Sistema
Único de Saúde. Não espanta que nos últimos dez anos os gastos privados com saúde
tenham superado os gastos públicos.
Em vez de
garantir o monopólio do Pré-Sal e a totalidade do excedente petroleiro
para o
financiamento de políticas públicas, como faria um governo comprometido com as necessidades
da população e a defesa dos interesses estratégicos da nação, Lula abriu a exploração
de riqueza existente no pré-sal à sanha da iniciativa privada, nacional e internacional.
A figura deslumbrada de Eike Batista é emblemática dos novos bilionários
criados nos
anos de Lula-Dilma. Em vez de priorizar investimentos públicos que
contemplassem
as necessidades estratégicas das grandes cidades – mobilidade urbana, habitação e
saneamento básico – os governos do PT mergulharam de cabeça nos negócios
dos grandes
eventos, promovendo uma verdadeira farra das empreiteiras. O desperdício do dinheiro
público com obras faraônicas, cujos orçamentos parecem um saco sem fundo, contrasta
com a dificuldade insuperável para resolver a penúria crônica de recursos para as
políticas sociais. No governo Dilma, a febre privatista foi reforçada. Cedendo
à pressão do grande
capital ávido por negócios de ocasião, rodovias, portos e aeroportos converteram-se,
sob a forma de parcerias público-privadas, em objetos de grandes negócios.
No início
do governo Lula, a hesitação na homologação da reserva indígena
Raposa
Serra do Sol prenunciava uma total falta de vontade para cumprir os
compromissos
históricos do PT com os povos da floresta. Nos anos subsequentes, a cumplicidade
do Estado petista com a escalada da violência contra o homem pobre que vive
indefeso no meio do mato, particularmente contra os povos indígenas, revelaria
a tomada de
partido a favor dos fazendeiros, madeireiras e mineradoras. A demissão de Marina
Silva do Ministério do Meio Ambiente no segundo governo de Lula mostrava que nem mesmo
os suaves contrapontos de um ecocapitalismo bem moderado seriam tolerados.
A vitória da pirataria da floresta foi coroada no governo Dilma com a aprovação
do Código Florestal. A Amazônia estava franqueada para uma nova ofensiva de
depredação. Os povos da floresta ficaram sujeitos a novas ondas de violência.
As opções
de classe dos governos petistas também se tornam patentes no
surpreendente
e inexplicável imobilismo das autoridades constituídas para apurar os crimes da
ditadura militar. Na administração de Lula o máximo que se fez foi reconhecer que as
vítimas dos anos de chumbo mereciam alguma forma de indenização pecuniária. A constituição
da Comissão Nacional da Verdade pela presidente Dilma não representou mudança
qualitativa. Mais de um ano após a sua instalação oficial, não se produziu um fato
concreto capaz de levar às barras dos tribunais os militares, empresários e
civis que
colaboraram
direta e indiretamente com prisões arbitrárias, tortura, assassinatos e atentados.
A covardia do governo petista para desmantelar o aparelho repressivo montado na ditadura
militar é reveladora da força dos laços de continuidade que prendem a “democracia
restrita” de hoje à “autocracia armada” de ontem. O prestígio e a posição proeminente
de políticos, burocratas e militares da ditadura militar junto à alta cúpula
dos governos
petistas, como é o caso conspícuo de figuras como José Sarney, Delfim Netto e Paulo
Maluf, é o epifenômeno da cumplicidade do governo petista como o padrão de desenvolvimento
capitalista baseado na superexploração do trabalho e no controle do capital
internacional sobre os setores econômicos estratégicos, padrão que se cristalizou em 1964,
com a consolidação da ditadura do grande capital como uma contra-revolução
permanente.
No plano
ideológico, a ação dos governos petistas caracterizou-se pelo reforço do
colonialismo
cultural e da naturalização das desigualdades sociais. Antes mesmo da primeira
eleição de Lula, o anúncio da famigerada “Carta aos Brasileiros”, destinada a acalmar os
mercados, já prenunciava o desespero de afastar qualquer desconfiança do grande
capital, nacional e internacional, em relação ao bom comportamento do governo petista.
A
absoluta subserviência ao ideário da ordem global traduziu-se no esforço sistemático
de Lula de negar seu passado “reformista” e legitimar todos os tabus impostos pelo
neoliberalismo. Com a ansiedade de quem precisa mostrar serviço, Lula não teve nenhum
escrúpulo para lançar mão de sua grande credibilidade junto às camadas populares
para exaltar a sacralização dos contratos com as grandes empresas; a
estabilidade
dos preços como um fim em si; a austeridade fiscal e monetária como
dogmas
inquestionáveis da política econômica; o avanço sobre os direitos dos funcionários
públicos (estigmatizados como privilégios corporativos); o capital internacional
como parceiro estratégico e insubstituível do desenvolvimento nacional; a especialização
primária como o caminho para a prosperidade; os Estados Unidos como guardião da
ordem; enfim, o fim da história como um fato consumado que teria sepultado definitivamente
qualquer veleidade de reformas estruturais, afastando assim qualquer papel
construtivo para o pensamento crítico e para as lutas sociais.
A adesão
incondicional ao imaginário da ordem global levou o governo petista a
reforçar o
colonialismo cultural, cuja expressão máxima é a exaltação da modernização dos padrões
de consumo - a cópia dos estilos de vida e de consumo das economias centrais –
como medida do sucesso da política econômica e do bem-estar da sociedade brasileira.
A contrapartida necessária do reforço do colonialismo cultural foi a política deliberada,
que atravessou todos os governos, de naturalização das desigualdades sociais, cuja
essência consiste na propaganda ostensiva de que as medidas assistencialistas
de combate à
pobreza teriam transformado o Brasil em um país de classe média, quando todos os
condicionantes estruturais da pobreza permaneceram absolutamente incólumes: o latifúndio;
a favela; a presença de um contingente, equivalente a mais de 1/3 da população economicamente
ativa vivendo no subemprego ou simplesmente desempregado. Não por acaso,
ignorando toda a tradição do pensamento crítico brasileiro, os governos
petistas ressuscitaram
o mito do crescimento econômico como solução para os problemas nacionais.
Finalmente,
em junho de 2013, quando a revolta popular eclode em São Paulo e se
alastra
pelo Brasil, fazendo emergir as terríveis contradições de uma modernização
fútil e de uma
política econômica que ignora os interesses fundamentais da população, o governo do
PT não hesitou em fechar fileira com a preservação da paz social e a defesa do status
quo. O pânico com a presença do povo nas ruas selou a fusão definitiva do PT como um
partido da ordem. Enquanto as ruas ardiam, o comportamento de Fernando Haddad,
Dilma Rousseff e Aloísio Mercadante – diletos pupilos de Lula – diante do clamor por
mudanças radicais nas políticas públicas é emblemático do novo modo de ser do novo PT.
A imagem de Fernando Haddad ao lado do governador Geraldo Alkmin no Palácio dos
Bandeirantes, anunciando que financiaria a redução das tarifas de ônibus com cortes nos
investimentos em saúde e educação e, poucos dias depois, a figura circunspecta de Aloísio Mercadante, defendendo com unhas e dentes, a mando de Dilma, o compromisso
inabalável do governo Federal com a austeridade fiscal revelam o profundo divórcio
entre a juventude trabalhadora que saiu às ruas para lutar por direitos
coletivos e o Partido
dos Trabalhadores comprometido até o pescoço com o mundo dos negócios.
Posto contra
a parede pela população enfurecida que repudiava o fato de ter sido relegada à última
prioridade das políticas de Estado, a liderança petista esmerou-se em
engambelar o povo,
tranqüilizar o grande capital e convencer o grande irmão do norte de que aqui nas terras do
Brasil tudo continuará como dantes.