O julgamento de Baltasar Garzón não é apenas um insulto à memória da Espanha é um insulto à memória do mundo. Abre o debate sobre os processos de impunidade das ditaduras. Diz respeito a qualquer país, inclusive o Brasil, que nunca julgou os crimes dos seus carrascos.
A Argentina fez questão de julgar os crimes da ditadura militar e fazer justiça à memoria das vítimas. Em alguns casos, demorou tanto quanto foi necessário. Mas, esta semana, não hesitou em condenar o general Reynaldo Bignone, o último ditador, agora com 82 anos, a 25 anos de prisão.
Os demais paises da América Latina têm lidado de forma diferente com os crimes passados das sua ditaduras. Tomemos, por exemplo, o Brasil e o Chile.
O Brasil, pela lei da anistia, jogou para baixo do tapete crimes contra a humanidade enquanto o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh coloca em seu próprio bolso milhões de reais obtidos com a máquina de "indenizações de vítimas da ditadura" que montou com conivência do Planalto. Enquanto engorda sua conta bancária com 30% de cada processo ganho, Greenhalgh cinicamente repete "o Brasil não está pronto para punir torturadores" e "a verdade elimina as penas".
O Chile consentiu que Pinochet e seus comparsas entregassem o poder que ilegitimamente detinham em troca da impunidade. Acordaram tarde para o seu erro. Hoje, no país e fora dele, é possível insinuar, sem escândalo geral, que Pinochet se tratou de um mal menor.
Na Espanha, por via de uma queixa dos fascistas da Falange, é o juiz Baltasar Garzón que está a ser julgado por, supostamente, ter violado a lei de anistia negociada com os franquistas no processo de transição. Dá-se o caso da anistia ter sido aprovada (com a oposição dos partidos de direita) com o objetivo de garantir que, não havendo um processo revolucionário, aqueles que combateram a ditadura estariam a salvo do que sobrevivesse da repressão franquista.
Extraordinariamente, uma organização residual, entretanto afastada do processo, conseguiu, com ajuda de um dos juízes que vai julgar Garzón, virar as coisas ao contrário. Assim, quem quis aplicar as leis internacionais e garantir o julgamento de crimes contra a humanidade acabará sentado no banco dos réus enquanto os assassinos e os seus herdeiros reescrevem a história.
É essencial que seja feita justiça. Não apenas por respeito às vítimas e aos seus familiares, mas sobretudo como prevenção para o futuro. Os ditadores e aqueles que aceitam ser autores materiais dos seus crimes têm de saber que a justiça pode tardar, mas não falha. Têm de saber que podem estar protegidos pelo terror das ditaduras que alimentam, mas que quando as coisas mudarem pagarão pelas mortes e pelo sofrimento que causaram. Não pode continuar instituída a ideia de que os valores fundamentais ficam suspensos na nossa consciência quando a arbitrariedade chega ao poder.
Botar criminosos contra a humanidade no banco dos réus sem puni-los exemplarmente, acaba legitimando a impunidade das ditaduras. A África do Sul, por exemplo, com suas comissões de verdade e reconciliação, organizou uma espécie julgamentos sem pena em que os autores dos crimes apenas mostravam o seu arrependimento à sociedade. Ou seja, crimes atrozes são cometidos e perdoados com um simples "desculpe, estou arrependido". O leitor pode conceber carniceiros como Hitler ou Stalin saindo de um tribunal para as ruas após dizer "desculpe estou arrependido"? Se isso ocorresse, a sociedade, incluindo os autores dos crimes, deixaria claro a tolerância à impunidade dos crimes do passado.
Em Portugual, Espanha, Chile, Argentina, Brasil, Paraguai, Chile, Bolívia, Colômbia, África do Sul e em vários países europeus isto é um debate. Toda ditadura é carniceira e qualquer remanescente ou vestígio dela deve ser combatido, julgado e arrancado pela raiz.
O massacre da revolução popular e da guerra civil espanhola não deixou feridas apenas nos espanhóis, deixou feridas em todos aqueles que viram em Franco o espelho do ditador e do torturador que esmaga a liberdade em seus respectivos paises. Carniceiros tanto da direita quanto da esquerda que viveram o resto das suas vidas descansados, sem que nunca tivessem de responder pelos seus crimes, obrigando suas vítimas e seus descendentes a engolir esta humilhação a seco.
A ausência de julgamentos permite que as barbaridades das execuções sumárias, das prisões politicas e dos crimes dos anos de chumbo paulatinamente sejam apagados da nossa memória coletiva. E com este impunidade passa-se a ideia de que as ditaduras não foram bem ditaduras, como insinuou o recente editorial do jornal Folha de São Paulo, que chegou ao desplante de qualificar a ditadura brasileira de ditabranda, uma ditadura que, quando comparada com outras, foi de uma brandura quase comovente. Qual é o problema? É que quando se falha na memória não se aprende com o passado. E aumenta o risco de, depois da memória viva da ditadura acabar, se criar o caldo necessário para tudo voltar a acontecer.
O julgamento de Garzón diz respeito diretamente a todos aqueles que se colocam como cidadãos do mundo, e é importante para nós. Se o juiz fosse condenado os saudosistas dos fascismos ibéricos, europeus, latinoamericanos, e de toda parte teriam uma enorme vitória. A chamada democracia não só não condenaria os seus crimes, como ainda os premiaria pelo seu comportamento. No Supremo espanhol não é Garzón que está no banco dos réus. São todos os que ousaram resistir. O insulto ao seu legado seria um crime tão grave como os que foram praticados pelo franquismo. Era como se os resistentes morressem pela segunda vez.
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