domingo, 30 de agosto de 2009

O Anarco-Primitivismo e a Bíblia

Por Ched Myers



O "Anarco-Primitivismo" é uma importante corrente do pensamento ecológico profundo contemporâneo que reage a crise social e ambiental contemporânea com uma revisão radical da historia da civilização. Apesar de ter havido poucos engajamentos vigorosos entre a Teologia Cristã e esta corrente filosófica radical (exceções incluem Jaques Ellul e Vernard Eller), este artigo reflete sobre os possíveis pontos de contato entre as idéias Anarco-Primitivistas e certas trajetórias encontradas na Bíblia.

A vigorosa crítica Anarco-Primitivista da civilização encontra surpreendentes ressonâncias entre as escrituras hebraico-cristãs – se, lidas como documentos da resistência israelita contra os impérios do antigo oriente médio, do Egito a Roma, ao invés de uma legitimação ideológica da cristandade.

Os seguintes oito "pontos de diálogo", representam aspectos salientes da perspectiva Anarco-Primitivista articulada por exemplo por John Zerzan, e estão aqui correlacionadas com temas bíblicos secundários e principais.



1) Para o Anarco-Primitivismo a civilização representa uma regressão patológica, ao invés de uma ingênua progressão da consciência humana.

Apesar de a teologia majoritária ter adquirido amplamente a narrativa dominante do "progresso" , a perspectiva Bíblica sobre as origens históricas é completamente oposta - possivelmente é o motivo pela qual tem sido tão marginalizada desde o iluminismo. A "história primitiva" de Gênesis 1-11, por exemplo, retrata a civilização como o "fruto" não do gênio humano, mas sim da alienação do estilo de vida simbiotico do "Jardim". A sua narrativa da "Queda" é uma narrativa de trabalho penoso, assassinato, violência e urbanismo predatório, culminando no símbolo da torre de Babel como a zênite da rebelião humana contra Deus e a natureza. Isto pode ser lido não apenas como uma polemica contra os antigos impérios do oriente médio que circundavam Israel , mas também como um diagnóstico arquétipo da civilização-como-patologia. No decorrer do resto da literatura bíblica esta forte linha de ceticismo prevalece, melhor resumida provavelmente pelo tropo de Jesus de que "Salomão em toda sua glória" (uma alusão ao Templo-Estado de David, o auge do poder da civilização israelita) era intrinsecamente de menos valor do que uma simples flor selvagem (Lucas . 12:27).



2) A perspectiva Anarco-Primitivista da "pré-história" argumenta que a domesticação neolítica das plantas e animais leva a domesticação dos seres humanos.

A agricultura inexoravelmente deu origem a concentração populacional e a sociedades altamente centralizadas e hierárquicas em ambientes urbanos. E acabou se desenvolvendo em opressivas cidades-estados, uma agressiva civilização colonizadora que empregou uma poderosa força centrípeta contra as regiões distantes. Desta forma, a agricultura é retratada no Gênesis não como uma dádiva dos deuses - como é retratada em outros mitos do antigo oriente médio - mas como uma maldição, o resultado da rejeição humana do modo de vida simbiotico do "Jardim" (Gênesis 3:17-19). Enquanto que o pastoralismo é visto de maneira mais empática na literatura bíblica , devemos manter em mente que durante o período pastores eram habitantes da periferia socialmente marginalizados.

Da historia de Babel adiante, a cidades muradas e sua arquitetura de dominação são denunciadas regularmente, como Jaques Ellul argumenta, incluindo as "cidades armazéns" construídas pelo trabalho escravo hebreu (Êxodo. 1:11-14) e a fortaleza canaanita de Jericó (Josué 6:26). Enquanto que muita literatura da era pós-David romantiza Jerusalém como a "cidade de Deus" a voz profética continua a denunciar aqueles que "impõem impostos e confiam em fortalezas" como agentes do terror - incluindo os lideres israelitas (Isaias 33:18; Ezequiel 26:3-9; Sofonias 1:16; 3:6). Esta antipatia urbana é melhor captada pelo lamento do salmista "Oh! Quem me dera asas como de pomba! Voaria , e estaria em descanso. Eis que fugiria para longe, e pernoitaria no deserto ... pois tenho visto violência e contenda na cidade ... astúcia e engano não se apartam das suas ruas" (Salmos 55:6-11). No Novo Testamento , a visão de João da Nova Jerusalém pressagia um "verdejamento" radical da cidade: portões sempre abertos e um rio que corre ao meio da avenida da qual cresce a arvore da vida (Apocalipse 21-22).



3) O Anarco-Primitivismo endossa estudos antropológicos revisionistas que oferecem uma avaliação mais harmônica da organização social e econômica dos coletores-caçadores, enfatizando o que Marshall Sahlins chamou de "abundancia original" das culturas da pré-história.

Até a ultima metade do século passado, os antropólogos modernos tendiam em compartilhar o preconceito de Thomas Hobbes de que a vida de humanos não civilizados era "solitária, pobre, horrível, bruta e curta". A partir de Sahlins , o consenso tem mudado completamente: as culturas coletorás-caçadoras agora tendem a ser retratadas como saudáveis, plenas em lazer, livres, materialmente mais satisfeitas, menos ansiosas e infinitamente mais ecologicamente sustentáveis do que as culturas industriais modernas. Em particular, as praticas indígenas de subsistência e dádiva são agora apreciadas como um paradigma econômico viável e radicalmente diferente.

Isto encoraja uma reavaliação da cosmologia econômica da Bíblia. Por exemplo, a história do maná no deserto instruiu Israel (agora libertos da escravidão do Egito) sobre o sustento material como uma dádiva divina (Êxodos 16:4). A narrativa enfatiza princípios de "simplesmente colete": apenas pegue o que é necessário, não acumule, e esteja certo de que todos os membros da comunidade tenham o suficiente - mas não muito! (16:16-25)

A Bíblia enfatiza a abundância natural da providencia, a auto-limitação comunal e o compartilhar. O planejamento do ano Sabático de perdoar débitos e de redistribuir as riquezas - Mais notavelmente no Jubileu Levítico (Levítico 25) - foi uma restrição contra a intensa estratificação que caracteriza a escravidão - e a economia de impostos do Antigo Egito, Assíria e Babilônia. A cosmologia da dádiva é reiterada pelos profetas: "O vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite" (Isaias 55:1). Isto toma um melhor sentido nos textos do Novo Testamento, o que tem sido a maldição para a religião capitalista, tal como o ensinamento de Jesus sobre doar as suas posses (Lucas 12:13-34), a economia do compartilhar na comunidade de Atos (Atos 2:42-47). Isto sugere que os escritores bíblicos estavam tentando reabilitar o caráter econômico das culturas indígenas "pré-civilizadas" como um melhor caminho a se seguir.



4) Para o Anarco-Primitivismo a crise ecológica necessita de uma critica radical da tecnologia e de todas as formas de tecnologia industrial, na crença de que quando usamos tecnologias as tecnologias nos usam de um modo que nos desumaniza e destrói as nossas competências naturais.

A Bíblia, como um texto antigo, tem relativamente pouco a dizer sobre a "tecnologia" propriamente dita, porém dois textos da antiga Torá são pertinentes. Um é a proibição do fogo doméstico no Sábado (Êxodos. 35:3), portanto restringe o que é claramente a ferramenta humana mais antiga. O outro reflete uma suspeita primitiva das ferramentas como instrumentos de dominação em relação a natureza: " Se me levantares um altar de pedra, não o construirás de pedras talhadas, pois levantando o cinzel sobre a pedra, tê-la-ás profanado."(Êxodo 20:25).

As escrituras têm abundantemente o que dizer sobre o perigo dos objetos manufaturados, particularmente na bem conhecida proibição da fabricação de imagens. Porem este tabu é mais anti-fetichista do que anti-ícone, reconhecendo que "fazer objetos" inevitavelmente os torna mistificados e sagrados, assim tomando mais valor do que os seus construtores (uma declaração clássica é encontrada em Isaias 43:9-20). Este insight foi depois ressuscitado na teoria do fetichismo da mercadoria no capitalismo em Marx, como foi demonstrado por Guy Debord.



5) O trabalho assalariado e a hierárquica divisão de trabalho, condição indispensável para a civilização, é inerentemente alienante.

Temos visto que o trabalho da agricultura é retratado como antitético ao desejo divino na historia da queda (Gênesis 3:19). De modo mais generalizado, as leis Sabaticas, fundadas na vontade de Deus de um caráter de uma auto-restrição (Gênesis 2:2-25), procurou refrear o potencial compulsivo-viciante de todo o trabalho através da limitação do mesmo. Guardar o Sábado é o primeiro (Êxodo 16:23) e o ultimo (Êxodo 35:1-3) mandamento da Aliança Divina, regularmente interrompendo o ritmo do ano agrícola de Israel pelo ritual de "impedimento do trabalho" (Levítico 23). A Lei e os profetas inflexivelmente criticam a exploração do pobre pelo rico (Levítico 19:13; Amós 5:11). Jesus tece historias que minam a santidade do trabalho assalariado (Matheus. 20:1-16), e que opunha camponeses rebelados contra proprietários de terra ricos (Marcos 12:1-10) . Jesus defendeu o direito dos famintos de tomarem o alimento (Marcos 2:23 e seguintes) e invocou a cosmologia da dádiva divina: "Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta." (Mateus 6:26; Lucas 12:24). Apesar da prisão da moderna teologia cristã à ética protestante do trabalho, o caráter bíblico do Sábado (incluindo a teologia da graça de Paulo) privilegia o ser sobre o fazer, a celebração sobre o trabalho, e a dádiva sobre a possessão - novamente ressonante com a sabedoria indígena no que diz respeito a ecologia física, social e pessoal.



6) Para alguns teóricos Anarco-Primitivistas, a representação simbólica (incluindo a própria linguagem) esta no coração da "queda" para a civilização, se tornando uma substituição para a experiência sensorial direta da natureza produzindo assim diferenciações sociais.

Enquanto que uma crítica radical da linguagem não encontra eco na Bíblia (de fato, João especula que " no princípio era o Verbo", João 1:1), a suspeita contra a "representação" encontra referencias. O pacto de Israel é selado não apenas nas palavras da Torá , mas também pela "testemunha" de uma pedra abaixo de um carvalho (Josué 24:27).

É a idolatria (ou seja, o super-representacionalismo) o problema para os escritores bíblicos, não a natureza. De fato, mesmo os profetas reconhecem que os próprios aparatos de culto de Israel podem se tornar um veiculo de opressão (Amos 5:21-24; Jeremias 7:9-14 , um texto que inspirou a ação direta de Jesus , Marcos 11:15-33).

Portanto, a história do principio de Israel é repleta de paisagens selvagens e muitas vezes mágicas que revelam Deus diretamente. (Salmos 104 e Jó 38-41).

O que inclui desertos remotos (Êxodo 17:1) e rios de águas transbordantes (Josué 3); planícies (Gênesis 26:19-22); e grutas em montanhas altas (Gênesis 19:30, Juizes 6:2; 1 Reis 19:9); florestas e vales (Isaias 44:23; 55:12).

YHWH aparece embaixo de carvalhos (Gênesis 12:6-20; 18:1; Juizes 6:11) e sua divina voz é encontrada em arbustos flamejantes (Êxodo 3) ou no alto de uma montanha encoberta por nuvens (Êxodo 19; ver Marcos 9:7) Heróis da comunidade são "nascidos" em rios (Êxodo 2:3, ver Marcos 1:9-11), enterrados entre arvores (Gênesis 35:8; 1 Samuel 31:13) e andaram sobre o mar (Marcos 4:35-41). A visão extática de Jacó do Axis mundi se deu numa terra selvagem desértica, sonhando com sua cabeça deitada numa pedra: "Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus!" (Gênesis 28:16-17). YHWH é imaginado - mas nunca feito imagem - como um Leão que ruge (Oséias 11:10), uma Águia com ninhada (Deuteronômio 32:11) e uma Mãe Ursa furiosa (Oséias 13:18). Como em toda sociedade tribal, existem historias de perigosas aventuras entre os animais selvagens, desde o grande peixe de Jonas, aos leões de Daniel. E a vida ritual de Israel está em sintonia com a passagem das estações (Levitico 23) e com as fases da lua (Salmos 81:3). Jesus prefere a solidão do deserto (Marcos 1:35), e convida a seus discípulos a aprender com as sementes (Marcos 4), com as arvores (Marcos 13:28), pássaros (Lucas 12:24) e com a chuva (Mateus 5:45). Existe também uma sugestão escatológica de que a comunhão primal e não mediada entre Deus, natureza e humanos será um dia restaurada (Jeremias 24:7 ; 31:33; Ezequiel 36:26), o que é intensificado na metáfora de João da unidade existencial (João 6:35); na noção de Paulo de estar "em Cristo" (Romanos 8:35-39); e na nova Jerusalém sem Templo na qual Deus habitará diretamente (Apocalipse 21:22).



7) O Anarco-Primitivismo defende uma variedade de estratégias individuais e de grupo para se "tornar feral", tanto combatendo o sistema dominante quanto "re-habitando" espaços naturais para sua proteção e nossa "desintoxicação".

Dois aspectos distintos da teologia bíblica são notadamente valorizados aqui. Um é a maneira na qual YHWH habita os espaços não domesticados pela civilização, e é encontrado apenas por humanos que viajam para lugares selvagens. Isto se torna a metáfora principal da libertação na historia do Êxodos, e continua na vida dos profetas que se tornam "ferais" tais como Elias (1 Reis 19:3 - e seguintes), João Batista (Lucas 3) e Jesus, que começou seu ministério com uma “busca por visões” num ambiente selvagem (Mateus 4:1-11). O escritor de Hebreus convoca os crentes à solidariedade com Cristo "para fora das portas" da civilização (Hebreus 13:12 e seguintes), e nos recorda dos heróis de fé que resistiram ao império se tornando ferais, "errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra." (Hebreus 11:38). No Apocalipse de João a Igreja é retratada fugindo da Besta imperial indo para o deserto (Apocalipse 12:6).

Outro aspecto é a maneira pela qual a natureza é retratada em "oposição" a civilização imperial. Fortificações egípcias sitiadas por desastres naturais (as "pragas" de Êxodos 7-10). Oráculos proféticos denunciam o desflorestamento da Assíria (Ezequiel 31) e a poluição dos rios pelas criações de gado dos Faraós (Ezequiel 32:13), e é esperado pelo dia em que animais selvagens irão re-habitar os espaços que as cidades-estados têm colonizado (Isaias 13:19-22;34:8-15);"a toda espécie de aves de rapina e aos animais do campo eu te darei, para que te devorem." (Ezequiel 39:4). Existe uma fascinante historia de povos retornando (ainda que incompetentemente) aos antigos modos de coleta de alimento durante a fome (2 Reis 4: 38-44), uma parábola da divina abundancia versus a escassez imperial que Jesus restabelece em sua alimentação no deserto (Marcos 6:35 e seguintes). E o apostolo Paulo - que também se retirou ao deserto (Gálatas 3:17) - clama por um radical não-conformismo contra os códigos culturais dominantes da civilização romana (Romanos 12:1-2).



8) O Objetivo do Anarco-Primitivismo não é "voltar ao paleolítico" o que reconhecidamente é impossível, mas sim (re)descobrir a "futura primitividade".

A Bíblia concorda que desde a Queda o mundo natural tem sido continuamente destituído de seu equilíbrio pela violência e ganância da civilização. A Torá é proposta como um código de praticas comunais alternativas tendo relação com a auto-limitação. Nisto encontraremos diversas tentativas interessantes de reprimir tendências ecocidas, como por exemplo o tabu contra o tomar por alimento uma mãe pássaro e sua cria (Deuteronômios 22:6) e a notável proibição de destruir a natureza durante a guerra: “A árvore do campo seria porventura um homem para que a ataques?" (Deuteronômio 20:19-20). Os Evangelhos parecem convocar pelo recomeço dos antigos modos de vida (Marcos 1:2), e Jesus é chamado de arquétipo do "Primeiro Homem" (Marcos 2:28) e de "Adão Escatológico" (1 Coríntios 15:45). Historias de seu poder de cura sugere uma antiga capacidade renovada não apenas para "xamãns" mas para todos os discípulos (Marcos 6:12; Atos 3:1 e seguintes). Sua postura de oposição levou os representantes da civilização romana na palestina a executarem Jesus como um dissidente/herético. O Novo Testamento portanto fala claramente do "custo do discipulado" e da fé: "A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê; Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados." (Hebreus 11:1). Acredita-se que o mesmo poder criador divino que criou o mundo seja capaz de renová-lo, e a escatologia bíblica visualiza e restauração da "paz original" (Isaias 11:6-9), insistindo que uma "nova terra e um novo céu" irá finalmente eclipsar a realidade árida do império. Esta consciência alternativa não é uma fantasia escapista; tal consciência fortalece tanto a regeneração quanto a resistência (2 Corintios 10:4; Efésios 6:10 e seguintes ). Como Paulo colocou, a natureza esta gemendo em sua condição de escravidão, esperando pelos humanos que irão cooperar com o plano divino de libertação de toda criatura vivente (Romanos 8:20 e seguintes).

Admitidamente, algumas das interpretações aqui esboçadas têm sido desenvolvidas pela teologia da cristandade, e não pela contemporânea academia bíblica dominante - em direção completamente oposta. E existem, para sermos claros, certos traços da literatura bíblica que celebram Israel como civilização, o que tem sido usado para promover tudo aquilo que o Anarco-Primitivismo deplora. Porem, enquanto que as escrituras Judaico-Cristãs podem não concordar com toda a perspectiva Anarco-Primitivista. O que é surpreendente é descobrir a intensidade de ressonância. Como sempre é o caso, novas questões abrem novas visões hermenêuticas. O acima mencionado sugere que o dialogo entre a teologia bíblica e o anarquismo verde radical não é apenas possível, mas também chave para nossa exploração da intersecção entre religião e natureza.



Fonte: Jesusradicals.com

Tradução: Erva Daninha - Iniciativa anti-civilização (http://ervadaninha.sarava.org)

Nenhum comentário: