domingo, 30 de agosto de 2009

O Anarco-Primitivismo e a Bíblia

Por Ched Myers



O "Anarco-Primitivismo" é uma importante corrente do pensamento ecológico profundo contemporâneo que reage a crise social e ambiental contemporânea com uma revisão radical da historia da civilização. Apesar de ter havido poucos engajamentos vigorosos entre a Teologia Cristã e esta corrente filosófica radical (exceções incluem Jaques Ellul e Vernard Eller), este artigo reflete sobre os possíveis pontos de contato entre as idéias Anarco-Primitivistas e certas trajetórias encontradas na Bíblia.

A vigorosa crítica Anarco-Primitivista da civilização encontra surpreendentes ressonâncias entre as escrituras hebraico-cristãs – se, lidas como documentos da resistência israelita contra os impérios do antigo oriente médio, do Egito a Roma, ao invés de uma legitimação ideológica da cristandade.

Os seguintes oito "pontos de diálogo", representam aspectos salientes da perspectiva Anarco-Primitivista articulada por exemplo por John Zerzan, e estão aqui correlacionadas com temas bíblicos secundários e principais.



1) Para o Anarco-Primitivismo a civilização representa uma regressão patológica, ao invés de uma ingênua progressão da consciência humana.

Apesar de a teologia majoritária ter adquirido amplamente a narrativa dominante do "progresso" , a perspectiva Bíblica sobre as origens históricas é completamente oposta - possivelmente é o motivo pela qual tem sido tão marginalizada desde o iluminismo. A "história primitiva" de Gênesis 1-11, por exemplo, retrata a civilização como o "fruto" não do gênio humano, mas sim da alienação do estilo de vida simbiotico do "Jardim". A sua narrativa da "Queda" é uma narrativa de trabalho penoso, assassinato, violência e urbanismo predatório, culminando no símbolo da torre de Babel como a zênite da rebelião humana contra Deus e a natureza. Isto pode ser lido não apenas como uma polemica contra os antigos impérios do oriente médio que circundavam Israel , mas também como um diagnóstico arquétipo da civilização-como-patologia. No decorrer do resto da literatura bíblica esta forte linha de ceticismo prevalece, melhor resumida provavelmente pelo tropo de Jesus de que "Salomão em toda sua glória" (uma alusão ao Templo-Estado de David, o auge do poder da civilização israelita) era intrinsecamente de menos valor do que uma simples flor selvagem (Lucas . 12:27).



2) A perspectiva Anarco-Primitivista da "pré-história" argumenta que a domesticação neolítica das plantas e animais leva a domesticação dos seres humanos.

A agricultura inexoravelmente deu origem a concentração populacional e a sociedades altamente centralizadas e hierárquicas em ambientes urbanos. E acabou se desenvolvendo em opressivas cidades-estados, uma agressiva civilização colonizadora que empregou uma poderosa força centrípeta contra as regiões distantes. Desta forma, a agricultura é retratada no Gênesis não como uma dádiva dos deuses - como é retratada em outros mitos do antigo oriente médio - mas como uma maldição, o resultado da rejeição humana do modo de vida simbiotico do "Jardim" (Gênesis 3:17-19). Enquanto que o pastoralismo é visto de maneira mais empática na literatura bíblica , devemos manter em mente que durante o período pastores eram habitantes da periferia socialmente marginalizados.

Da historia de Babel adiante, a cidades muradas e sua arquitetura de dominação são denunciadas regularmente, como Jaques Ellul argumenta, incluindo as "cidades armazéns" construídas pelo trabalho escravo hebreu (Êxodo. 1:11-14) e a fortaleza canaanita de Jericó (Josué 6:26). Enquanto que muita literatura da era pós-David romantiza Jerusalém como a "cidade de Deus" a voz profética continua a denunciar aqueles que "impõem impostos e confiam em fortalezas" como agentes do terror - incluindo os lideres israelitas (Isaias 33:18; Ezequiel 26:3-9; Sofonias 1:16; 3:6). Esta antipatia urbana é melhor captada pelo lamento do salmista "Oh! Quem me dera asas como de pomba! Voaria , e estaria em descanso. Eis que fugiria para longe, e pernoitaria no deserto ... pois tenho visto violência e contenda na cidade ... astúcia e engano não se apartam das suas ruas" (Salmos 55:6-11). No Novo Testamento , a visão de João da Nova Jerusalém pressagia um "verdejamento" radical da cidade: portões sempre abertos e um rio que corre ao meio da avenida da qual cresce a arvore da vida (Apocalipse 21-22).



3) O Anarco-Primitivismo endossa estudos antropológicos revisionistas que oferecem uma avaliação mais harmônica da organização social e econômica dos coletores-caçadores, enfatizando o que Marshall Sahlins chamou de "abundancia original" das culturas da pré-história.

Até a ultima metade do século passado, os antropólogos modernos tendiam em compartilhar o preconceito de Thomas Hobbes de que a vida de humanos não civilizados era "solitária, pobre, horrível, bruta e curta". A partir de Sahlins , o consenso tem mudado completamente: as culturas coletorás-caçadoras agora tendem a ser retratadas como saudáveis, plenas em lazer, livres, materialmente mais satisfeitas, menos ansiosas e infinitamente mais ecologicamente sustentáveis do que as culturas industriais modernas. Em particular, as praticas indígenas de subsistência e dádiva são agora apreciadas como um paradigma econômico viável e radicalmente diferente.

Isto encoraja uma reavaliação da cosmologia econômica da Bíblia. Por exemplo, a história do maná no deserto instruiu Israel (agora libertos da escravidão do Egito) sobre o sustento material como uma dádiva divina (Êxodos 16:4). A narrativa enfatiza princípios de "simplesmente colete": apenas pegue o que é necessário, não acumule, e esteja certo de que todos os membros da comunidade tenham o suficiente - mas não muito! (16:16-25)

A Bíblia enfatiza a abundância natural da providencia, a auto-limitação comunal e o compartilhar. O planejamento do ano Sabático de perdoar débitos e de redistribuir as riquezas - Mais notavelmente no Jubileu Levítico (Levítico 25) - foi uma restrição contra a intensa estratificação que caracteriza a escravidão - e a economia de impostos do Antigo Egito, Assíria e Babilônia. A cosmologia da dádiva é reiterada pelos profetas: "O vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite" (Isaias 55:1). Isto toma um melhor sentido nos textos do Novo Testamento, o que tem sido a maldição para a religião capitalista, tal como o ensinamento de Jesus sobre doar as suas posses (Lucas 12:13-34), a economia do compartilhar na comunidade de Atos (Atos 2:42-47). Isto sugere que os escritores bíblicos estavam tentando reabilitar o caráter econômico das culturas indígenas "pré-civilizadas" como um melhor caminho a se seguir.



4) Para o Anarco-Primitivismo a crise ecológica necessita de uma critica radical da tecnologia e de todas as formas de tecnologia industrial, na crença de que quando usamos tecnologias as tecnologias nos usam de um modo que nos desumaniza e destrói as nossas competências naturais.

A Bíblia, como um texto antigo, tem relativamente pouco a dizer sobre a "tecnologia" propriamente dita, porém dois textos da antiga Torá são pertinentes. Um é a proibição do fogo doméstico no Sábado (Êxodos. 35:3), portanto restringe o que é claramente a ferramenta humana mais antiga. O outro reflete uma suspeita primitiva das ferramentas como instrumentos de dominação em relação a natureza: " Se me levantares um altar de pedra, não o construirás de pedras talhadas, pois levantando o cinzel sobre a pedra, tê-la-ás profanado."(Êxodo 20:25).

As escrituras têm abundantemente o que dizer sobre o perigo dos objetos manufaturados, particularmente na bem conhecida proibição da fabricação de imagens. Porem este tabu é mais anti-fetichista do que anti-ícone, reconhecendo que "fazer objetos" inevitavelmente os torna mistificados e sagrados, assim tomando mais valor do que os seus construtores (uma declaração clássica é encontrada em Isaias 43:9-20). Este insight foi depois ressuscitado na teoria do fetichismo da mercadoria no capitalismo em Marx, como foi demonstrado por Guy Debord.



5) O trabalho assalariado e a hierárquica divisão de trabalho, condição indispensável para a civilização, é inerentemente alienante.

Temos visto que o trabalho da agricultura é retratado como antitético ao desejo divino na historia da queda (Gênesis 3:19). De modo mais generalizado, as leis Sabaticas, fundadas na vontade de Deus de um caráter de uma auto-restrição (Gênesis 2:2-25), procurou refrear o potencial compulsivo-viciante de todo o trabalho através da limitação do mesmo. Guardar o Sábado é o primeiro (Êxodo 16:23) e o ultimo (Êxodo 35:1-3) mandamento da Aliança Divina, regularmente interrompendo o ritmo do ano agrícola de Israel pelo ritual de "impedimento do trabalho" (Levítico 23). A Lei e os profetas inflexivelmente criticam a exploração do pobre pelo rico (Levítico 19:13; Amós 5:11). Jesus tece historias que minam a santidade do trabalho assalariado (Matheus. 20:1-16), e que opunha camponeses rebelados contra proprietários de terra ricos (Marcos 12:1-10) . Jesus defendeu o direito dos famintos de tomarem o alimento (Marcos 2:23 e seguintes) e invocou a cosmologia da dádiva divina: "Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta." (Mateus 6:26; Lucas 12:24). Apesar da prisão da moderna teologia cristã à ética protestante do trabalho, o caráter bíblico do Sábado (incluindo a teologia da graça de Paulo) privilegia o ser sobre o fazer, a celebração sobre o trabalho, e a dádiva sobre a possessão - novamente ressonante com a sabedoria indígena no que diz respeito a ecologia física, social e pessoal.



6) Para alguns teóricos Anarco-Primitivistas, a representação simbólica (incluindo a própria linguagem) esta no coração da "queda" para a civilização, se tornando uma substituição para a experiência sensorial direta da natureza produzindo assim diferenciações sociais.

Enquanto que uma crítica radical da linguagem não encontra eco na Bíblia (de fato, João especula que " no princípio era o Verbo", João 1:1), a suspeita contra a "representação" encontra referencias. O pacto de Israel é selado não apenas nas palavras da Torá , mas também pela "testemunha" de uma pedra abaixo de um carvalho (Josué 24:27).

É a idolatria (ou seja, o super-representacionalismo) o problema para os escritores bíblicos, não a natureza. De fato, mesmo os profetas reconhecem que os próprios aparatos de culto de Israel podem se tornar um veiculo de opressão (Amos 5:21-24; Jeremias 7:9-14 , um texto que inspirou a ação direta de Jesus , Marcos 11:15-33).

Portanto, a história do principio de Israel é repleta de paisagens selvagens e muitas vezes mágicas que revelam Deus diretamente. (Salmos 104 e Jó 38-41).

O que inclui desertos remotos (Êxodo 17:1) e rios de águas transbordantes (Josué 3); planícies (Gênesis 26:19-22); e grutas em montanhas altas (Gênesis 19:30, Juizes 6:2; 1 Reis 19:9); florestas e vales (Isaias 44:23; 55:12).

YHWH aparece embaixo de carvalhos (Gênesis 12:6-20; 18:1; Juizes 6:11) e sua divina voz é encontrada em arbustos flamejantes (Êxodo 3) ou no alto de uma montanha encoberta por nuvens (Êxodo 19; ver Marcos 9:7) Heróis da comunidade são "nascidos" em rios (Êxodo 2:3, ver Marcos 1:9-11), enterrados entre arvores (Gênesis 35:8; 1 Samuel 31:13) e andaram sobre o mar (Marcos 4:35-41). A visão extática de Jacó do Axis mundi se deu numa terra selvagem desértica, sonhando com sua cabeça deitada numa pedra: "Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus!" (Gênesis 28:16-17). YHWH é imaginado - mas nunca feito imagem - como um Leão que ruge (Oséias 11:10), uma Águia com ninhada (Deuteronômio 32:11) e uma Mãe Ursa furiosa (Oséias 13:18). Como em toda sociedade tribal, existem historias de perigosas aventuras entre os animais selvagens, desde o grande peixe de Jonas, aos leões de Daniel. E a vida ritual de Israel está em sintonia com a passagem das estações (Levitico 23) e com as fases da lua (Salmos 81:3). Jesus prefere a solidão do deserto (Marcos 1:35), e convida a seus discípulos a aprender com as sementes (Marcos 4), com as arvores (Marcos 13:28), pássaros (Lucas 12:24) e com a chuva (Mateus 5:45). Existe também uma sugestão escatológica de que a comunhão primal e não mediada entre Deus, natureza e humanos será um dia restaurada (Jeremias 24:7 ; 31:33; Ezequiel 36:26), o que é intensificado na metáfora de João da unidade existencial (João 6:35); na noção de Paulo de estar "em Cristo" (Romanos 8:35-39); e na nova Jerusalém sem Templo na qual Deus habitará diretamente (Apocalipse 21:22).



7) O Anarco-Primitivismo defende uma variedade de estratégias individuais e de grupo para se "tornar feral", tanto combatendo o sistema dominante quanto "re-habitando" espaços naturais para sua proteção e nossa "desintoxicação".

Dois aspectos distintos da teologia bíblica são notadamente valorizados aqui. Um é a maneira na qual YHWH habita os espaços não domesticados pela civilização, e é encontrado apenas por humanos que viajam para lugares selvagens. Isto se torna a metáfora principal da libertação na historia do Êxodos, e continua na vida dos profetas que se tornam "ferais" tais como Elias (1 Reis 19:3 - e seguintes), João Batista (Lucas 3) e Jesus, que começou seu ministério com uma “busca por visões” num ambiente selvagem (Mateus 4:1-11). O escritor de Hebreus convoca os crentes à solidariedade com Cristo "para fora das portas" da civilização (Hebreus 13:12 e seguintes), e nos recorda dos heróis de fé que resistiram ao império se tornando ferais, "errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra." (Hebreus 11:38). No Apocalipse de João a Igreja é retratada fugindo da Besta imperial indo para o deserto (Apocalipse 12:6).

Outro aspecto é a maneira pela qual a natureza é retratada em "oposição" a civilização imperial. Fortificações egípcias sitiadas por desastres naturais (as "pragas" de Êxodos 7-10). Oráculos proféticos denunciam o desflorestamento da Assíria (Ezequiel 31) e a poluição dos rios pelas criações de gado dos Faraós (Ezequiel 32:13), e é esperado pelo dia em que animais selvagens irão re-habitar os espaços que as cidades-estados têm colonizado (Isaias 13:19-22;34:8-15);"a toda espécie de aves de rapina e aos animais do campo eu te darei, para que te devorem." (Ezequiel 39:4). Existe uma fascinante historia de povos retornando (ainda que incompetentemente) aos antigos modos de coleta de alimento durante a fome (2 Reis 4: 38-44), uma parábola da divina abundancia versus a escassez imperial que Jesus restabelece em sua alimentação no deserto (Marcos 6:35 e seguintes). E o apostolo Paulo - que também se retirou ao deserto (Gálatas 3:17) - clama por um radical não-conformismo contra os códigos culturais dominantes da civilização romana (Romanos 12:1-2).



8) O Objetivo do Anarco-Primitivismo não é "voltar ao paleolítico" o que reconhecidamente é impossível, mas sim (re)descobrir a "futura primitividade".

A Bíblia concorda que desde a Queda o mundo natural tem sido continuamente destituído de seu equilíbrio pela violência e ganância da civilização. A Torá é proposta como um código de praticas comunais alternativas tendo relação com a auto-limitação. Nisto encontraremos diversas tentativas interessantes de reprimir tendências ecocidas, como por exemplo o tabu contra o tomar por alimento uma mãe pássaro e sua cria (Deuteronômios 22:6) e a notável proibição de destruir a natureza durante a guerra: “A árvore do campo seria porventura um homem para que a ataques?" (Deuteronômio 20:19-20). Os Evangelhos parecem convocar pelo recomeço dos antigos modos de vida (Marcos 1:2), e Jesus é chamado de arquétipo do "Primeiro Homem" (Marcos 2:28) e de "Adão Escatológico" (1 Coríntios 15:45). Historias de seu poder de cura sugere uma antiga capacidade renovada não apenas para "xamãns" mas para todos os discípulos (Marcos 6:12; Atos 3:1 e seguintes). Sua postura de oposição levou os representantes da civilização romana na palestina a executarem Jesus como um dissidente/herético. O Novo Testamento portanto fala claramente do "custo do discipulado" e da fé: "A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê; Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados." (Hebreus 11:1). Acredita-se que o mesmo poder criador divino que criou o mundo seja capaz de renová-lo, e a escatologia bíblica visualiza e restauração da "paz original" (Isaias 11:6-9), insistindo que uma "nova terra e um novo céu" irá finalmente eclipsar a realidade árida do império. Esta consciência alternativa não é uma fantasia escapista; tal consciência fortalece tanto a regeneração quanto a resistência (2 Corintios 10:4; Efésios 6:10 e seguintes ). Como Paulo colocou, a natureza esta gemendo em sua condição de escravidão, esperando pelos humanos que irão cooperar com o plano divino de libertação de toda criatura vivente (Romanos 8:20 e seguintes).

Admitidamente, algumas das interpretações aqui esboçadas têm sido desenvolvidas pela teologia da cristandade, e não pela contemporânea academia bíblica dominante - em direção completamente oposta. E existem, para sermos claros, certos traços da literatura bíblica que celebram Israel como civilização, o que tem sido usado para promover tudo aquilo que o Anarco-Primitivismo deplora. Porem, enquanto que as escrituras Judaico-Cristãs podem não concordar com toda a perspectiva Anarco-Primitivista. O que é surpreendente é descobrir a intensidade de ressonância. Como sempre é o caso, novas questões abrem novas visões hermenêuticas. O acima mencionado sugere que o dialogo entre a teologia bíblica e o anarquismo verde radical não é apenas possível, mas também chave para nossa exploração da intersecção entre religião e natureza.



Fonte: Jesusradicals.com

Tradução: Erva Daninha - Iniciativa anti-civilização (http://ervadaninha.sarava.org)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A Oração do Bispo Macedo

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver dinheiro, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine. Ainda que eu tenha o dom de profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver dinheiro, nada serei. Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimadob, se não tiver dinheiro, nada disso me valerá.

O dinheiro é paciente, o dinheiro é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O dinheiro não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O dinheiro nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará. Pois em parte conhecemos e em parte profetizamos; quando, porém, vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. Quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino. Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino. Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido.

Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o dinheiro. O maior deles, porém, é o dinheiro.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sofrimento


Deus está em todos os homens, mas todos os homens não estão em Deus; é por isso que sofremos. ~ Ramakrishna

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O Chefe



Livro sobre as falcatruas do Lula, que foi proibido, e está disponível para leitura na Internet.

O jornalista Ivo Patarra levou 'O Chefe' a duas editoras, que recusaram a publicação do livro.

O livro que compila todos os escândalos do desastroso governo Lula, não conseguiu ser publicado!!!

Todos se negaram a publicá-lo.

Assim sendo, seu autor resolveu colocá-lo na Internet à nossa disposição, para ler online ou baixar.

Acesse o site:
* www.escandalodomensalao.com.br *

Divulguem
TRATA-SE SE UM DOCUMENTO HISTÓRICO.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Desobediência Civil

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL1
por Henry David Thoreau

"O melhor governo é o que governa menos2" - aceito entusiasticamente esta divisa e gostaria de vê-la posta em prática de modo mais rápido e sistemático. Uma vez alcançada, ela finalmente equivale a esta outra, em que também acredito: "O melhor governo é o que absolutamente não governa", e quando os homens estiverem preparados para ele será o tipo de governo que terão. Na melhor das hipóteses, o governo não é mais do que uma conveniência, embora a maior parte deles seja, normalmente, inconveniente - e, por vezes, todos os governos o são. As objeções levantadas contra a existência de um exército permanente - e elas são muitas e fortes e merecem prevalecer - podem afinal ser levantadas também contra a existência de um governo permanente. O exército permanente é apenas um braço do governo permanente. O governo em si, que é apenas a maneira escolhida pelo povo para executar sua vontade, está igualmente sujeito ao abuso e à perversão antes que o povo possa agir por meio dele. Basta pensar na atual guerra mexicana3, obra de uns poucos indivíduos que usam o governo permanente como seu instrumento, pois, de início, o povo não teria consentido nesta medida.

O que é este governo americano senão uma tradição, embora recente, que se empenha em passar inalterada à posteridade, mas que perde a cada instante algo de sua integridade? Não possui a vitalidade e a força de um único homem vivo, pois pode dobrar-se à vontade deste homem. É uma espécie de arma de brinquedo para o povo, mas nem por isso menos necessária, pois o povo precisa ter algum tipo de maquinaria complicada, e ouvir sua algazarra, para satisfazer sua idéia de governo. Assim, os governos demonstram até que ponto os homens podem ser enganados, ou enganar a si mesmos, para seu próprio benefício. Isto é excelente, devemos todos concordar. E, no entanto, este governo, por si só, nunca apoiou qualquer empreendimento, a não ser pela rapidez com que lhe saiu do caminho. Ele não mantém o país livre. Ele não povoa o Oeste. Ele não educa. O caráter inerente ao povo americano é que fez tudo o que foi realizado, e teria feito ainda mais se o governo não houvesse às vezes se colocado em seu caminho. Pois o governo é uma conveniência pela qual os homens conseguem, de bom grado, deixar-se em paz uns aos outros, e, como já se disse, quanto mais conveniente ele for, tanto mais deixará em paz seus governados. Se não fossem feitos de borracha, o comércio e o tráfico em geral jamais conseguiriam superar os obstáculos que os legisladores continuamente colocam em seu caminho. E se tivéssemos que julgar estes homens inteiramente pelos efeitos de seus atos, e não, em parte, por suas intenções, eles mereceriam ser punidos tanto quanto aquelas pessoas nocivas que obstruem as ferrovias.

Porém, para falar de modo prático e como um cidadão, ao contrário daqueles que chamam a si mesmos de antigovernistas, eu clamo não já por governo nenhum, mas imediatamente por um governo melhor. Deixemos que cada homem faça saber que tipo de governo mereceria seu respeito e este já seria um passo na direção de obtê-lo.

Afinal, a razão prática por que se permite que uma maioria governe, e continue a fazê-lo por um longo tempo, quando o poder finalmente se coloca nas mãos do povo, não é a de que esta maioria esteja provavelmente mais certa, nem a de que isto pareça mais justo para a minoria, mas sim a de que a maioria é fisicamente mais forte. Mas um governo no qual a maioria decida em todos os casos não pode se basear na justiça, nem mesmo na justiça tal qual os homens a entendem. Não poderá existir um governo em que a consciência, e não a maioria, decida virtualmente o que é certo e o que é errado? Um governo em que as maiorias decidam apenas aquelas questões às quais se apliquem as regras de conveniência? Deve o cidadão, sequer por um momento, ou minimamente, renunciar à sua consciência em favor do legislador? Então por que todo homem tem uma consciência? Penso que devemos ser homens, em primeiro lugar, e depois súditos. Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer a qualquer tempo aquilo que considero direito. E com razão que se diz que uma corporação não tem consciência, mas uma corporação de homens conscientes é uma corporação com consciência. A lei jamais tornou os homens mais justos, e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem-intencionados transformam-se diariamente em agentes da injustiça. Um resultado comum e natural do indevido respeito pela lei é que se pode ver uma fila de soldados - coronel, capitão, cabo, soldados rasos, etc - marchando em direção à guerra em ordem admirável através de morros e vales, contra as suas vontades. Contra suas consciências e seu bom senso, o que torna esta marcha bastante difícil, na verdade, e produz uma palpitação no coração. Eles não têm dúvida alguma de que estão envolvidos numa atividade condenável, pois todos têm inclinações pacíficas. Então, o que são eles? Homens ou pequenos fortes e paióis a serviço de algum homem inescrupuloso no poder? Visitem o arsenal da Marinha e contemplem um fuzileiro naval, alguém que o governo americano pode fazer ou que um homem pode fazer com sua magia negra - uma mera sombra e reminiscência de humanidade, um homem amortalhado em vida, de pé, mas já sepultado em armas com acompanhamento fúnebre, pode-se dizer, embora também possa ocorrer que:

"Não se ouviu nenhum tambor4, nenhuma nota funeral,
Enquanto levávamos seu corpo para a trincheira final;
Nem salva de adeus disparada por nenhum soldado
Sobre a tumba em que nosso herói foi enterrado."


A grande maioria dos homens serve ao Estado desse modo, não como homens propriamente, mas como máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, os membros da força civil, etc. Na maioria dos casos não há um livre exercício seja do discernimento ou do senso moral, eles simplesmente se colocam ao nível da árvore, da terra e das pedras. E talvez se possam fabricar homens de madeira que sirvam igualmente a tal propósito. Tais homens não merecem respeito maior que um espantalho ou um monte de lama. O valor que possuem é o mesmo dos cavalos e dos cães. No entanto, alguns deles são até considerados bons cidadãos. Outros - como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e funcionários públicos - servem ao Estado principalmente com seu intelecto, e, como raramente fazem qualquer distinção moral, estão igualmente propensos a servir tanto ao diabo, sem intenção de fazê-lo, quanto a Deus. Uns poucos - como os heróis, os patriotas, os mártires, os reformadores no melhor sentido e os homens - servem ao Estado também com sua consciência, e assim necessariamente resistem a ele, em sua maioria, e são comumente tratados como inimigos. Um homem sábio só será útil como homem e não se sujeitará ao papel de "barro5" para "tapar um buraco que impeça o vento de entrar", mas deixará esta tarefa, ao menos, para suas cinzas:

"Sou nobre demais para ser posse,
Ser um subalterno no comando,
Ou mesmo servo e instrumento útil
A qualquer Estado soberano deste mundo."


Aquele que se dá inteiramente a seus semelhantes parece-lhes inútil e egoísta; aquele, porém, que a eles se dá parcialmente é considerado um benfeitor e um filantropo.

De que modo convém a um homem comportar-se em relação ao atual governo americano? Respondo que ele não poderá associar-se a tal governo sem desonra. Não posso, por um instante sequer, reconhecer como meu governo uma organização política que é também governo de escravos.

Todos os homens reconhecem o direito de revolução, isto é, o direito de recusar lealdade ao governo, e opor-lhe resistência, quando sua tirania ou sua ineficiência tornam-se insuportáveis. Mas quase todos dizem que não é este o caso no momento atual. Mas foi este o caso, pensam, na Revolução de 75(6). Se alguém me dissesse que este é um mau governo porque tributa determinadas mercadorias estrangeiras trazidas a seus portos, é bastante provável que eu não movesse uma palha a respeito, já que posso passar sem elas. Todas as máquinas têm seu atrito, e isto possivelmente tem um lado bom que compensa o lado ruim. De qualquer modo, seria bastante nocivo fazer muito alvoroço por causa disso. Mas quando o atrito chega ao ponto de controlar a máquina, e a opressão e o roubo se tornam organizados, digo que não devemos mais ficar presos a tal máquina. Em outras palavras, quando um sexto da população de uma nação que se comprometeu a ser o abrigo da liberdade é formado por escravos, e um país inteiro é injustamente invadido e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei militar, penso que não é demasiado cedo para os homens honestos se rebelarem e darem início a uma revolução. O que torna este dever ainda mais urgente é o fato de que o país invadido não é o nosso mas e nosso o exército invasor.

Paley3, para muitos uma autoridade em questões morais, no capítulo que dedica ao "Dever de Submissão ao Governo Civil”, reduz toda obrigação civil a uma questão de conveniência e prossegue afirmando que “uma vez que o interesse de toda a sociedade o exija, ou seja, uma vez que não se pode resistir ao governo estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência pública, é vontade de Deus que o governo estabelecido seja obedecido, e não mais que isto. Admitindo-se este princípio, a justiça de cada caso particular de resistência reduz-se ao cálculo da quantidade de perigo e ressentimento, de um lado, e da probabilidade e do custo de repará-lo, de outro. A respeito disso, afirma, cada homem terá que julgar por si próprio. Mas Paley parece jamais ter contemplado os casos aos quais não se aplicam as regras de conveniência, em que um povo, tanto quanto um indivíduo, deve fazer justiça, custe o que custar. Se injustamente arrebatei a tábua de salvação a um homem que se afogava, devo devolvê-la a ele”. mesmo que me afogue. Isto, de acordo com Paley, seria inconveniente. Mas aquele que salvasse sua própria vida, em tal caso, acabaria por perdê-la. Este povo deve deixar de ter escravos e de fazer guerra ao México, mesmo que isso lhe custe sua existência como povo.

Em sua prática, as nações concordam com Paley. Mas será que alguém pensa que o estado de Massachusetts faz exatamente o que é direito na presente crise?

"Uma meretriz de profissão, vestida de prata,
Ergue a cauda do vestido,
Mas sua alma se arrasta no lodo8."


Falando de modo prático, os que se opõem a uma reforma em Massachusetts não são os cem mil políticos do Sul, mas os cem mil mercadores e fazendeiros daqui, que estão mais interessados no comércio e na agricultura do que na humanidade e não estão preparados para fazer justiça aos escravos e ao México, custe o que custar. Não brigo com inimigos distantes, mas com aqueles que, aqui perto, cooperam com os que estão longe e cumprem suas ordens, e sem os quais os últimos seriam inofensivos. Estamos acostumados a dizer que a massa dos homens é despreparada, mas o progresso é lento porque a minoria não é substancialmente mais sábia ou melhor, do que a maioria. Não é tão importante que a maioria seja tão boa quanto vós, mas sim que exista a bondade absoluta em alguma parte, pois isto fará fermentar toda a massa. Existem milhares de pessoas que se opõem teoricamente à escravidão e à guerra, e que, no entanto, efetivamente nada fazem para dar-lhes um fim; que, considerando-se filhos de Washington e Franklin, sentam-se com as mãos nos bolsos e dizem não saber o que fazer, e nada fazem; que chegam a postergar a questão da liberdade em nome da questão do livre comércio, e, serenamente, após o jantar, lêem as listas com as cotações de preços junto com as últimas notícias do México, possivelmente dormindo sobre ambas. Qual é, hoje, a cotação de um homem honesto e de um patriota? Eles hesitam, e lamentam, e às vezes suplicam, mas não fazem nada a sério ou que seja eficaz. Esperarão, bem dispostos, que outros remediam o mal, para que não precisem mais lamentar. O máximo que fazem, quando o direito lhes passa perto, é dar-lhe um voto barato, mostrando-lhe uma expressão débil e desejando-lhe felicidades. Há novecentos e noventa e nove defensores da virtude para cada homem virtuoso. Mas é mais fácil lidar com quem verdadeiramente possui algo do que com quem apenas o guarda temporariamente.

Toda votação é uma espécie de jogo, como o de damas ou o gamão, com um leve matiz moral, um jogo com o certo e o errado, com questões morais, naturalmente acompanhado de apostas. O caráter dos votantes não está em discussão. Dou meu voto, talvez, ao que considero direito, mas não estou vitalmente interessado em que este direito prevaleça. Disponho-me a deixar isto nas mãos da maioria. A obrigação desta, portanto, jamais excede a da conveniência. Mesmo votar em favor do direito é não fazer coisa alguma por ele. Significa apenas expressar debilmente aos homens seu desejo de que ele prevaleça. Um homem sábio não deixará o direito à mercê do acaso, nem desejará que ele prevaleça por meio do poder da maioria. Não há senão uma escassa virtude na ação de multidões de homens. Quando a maioria finalmente votar a favor da abolição da escravidão, será porque esta lhe é indiferente ou porque não haverá senão um mínimo de escravidão a ser abolida por meio de seu voto. Eles, então, serão os únicos escravos. Somente o voto de quem afirma sua própria liberdade através desse voto pode apressar a abolição da escravidão.

Ouço falar de uma convenção a ser realizada em Baltimore, ou em algum outro lugar, para a escolha de um candidato à Presidência, formada principalmente por diretores de jornais e políticos profissionais. Mas pergunto: que importância tem para qualquer homem independente, inteligente e respeitável a decisão a que possam eles chegar? Não poderemos ter, apesar disso, os benefícios de sua sabedoria e honestidade? Não poderemos contar com alguns votos independentes? Não existirão no país muitos indivíduos que não participam de convenções? Mas não: vejo que o homem respeitável, chamado a participar, imediatamente se desvia de sua posição e passa a desesperar de seu país, quando este teria muito mais razões para desesperar dele. Sem demora, adota um dos candidatos assim escolhidos como o único candidato disponível, provando, deste modo, que ele próprio está disponível para quaisquer propósitos dos demagogos. Seu voto não tem mais valor que o de qualquer estrangeiro sem princípios ou o de algum mercenário nativo que tenha sido comprado. Oh, para um homem que é homem e que, como diz meu vizinho, tem uma espinha nas costas que não se deixa dobrar! Nossas estatísticas são equivocadas: a população foi estimada em excesso. Quantos homens existem em cada mil milhas quadradas deste país? Apenas um, se tanto. A América não oferecerá nenhum incentivo aos homens para que aqui se estabeleçam? O americano reduziu-se a um Sujeito Peculiar, que pode ser reconhecido pelo desenvolvimento de seu órgão gregário e pela manifesta ausência de intelecto e alegre autoconfiança; um sujeito cuja principal preocupação, ao chegar ao mundo, é verificar se os asilos de pobres estão em bom estado; e que, antes mesmo de ter legalmente vestido um uniforme varonil9, já está coletando fundos para as viúvas e órfãos que possam porventura existir; em suma, alguém que só se aventura a viver através da ajuda da Companhia de Seguros Mútuos, que prometeu enterrá-lo decentemente.

Não é dever de um homem, na verdade, devotar-se à erradicação de qualquer injustiça, mesmo a maior delas, pois ele pode perfeitamente estar absorvido por outras preocupações. Mas é seu dever, ao menos, lavar as mãos em relação a ela e, se não quiser mais levá-la em consideração, não lhe dar seu apoio em termos práticos. Se me dedico a outras ocupações e projetos, devo ao menos verificar, inicialmente, se não o faço sentando sobre os ombros de outro homem. Devo sair de cima dele, antes de mais nada, para que também ele possa ocupar-se de seus projetos. Vejam que gritante contradição se tolera. Ouvi alguns de meus concidadãos afirmarem: "Gostaria que me mandassem ajudar a sufocar uma insurreição de escravos ou marchar em direção ao México - vejam só se eu iria! . No entanto, estes mesmos homens, seja diretamente através de sua sujeição, ou indiretamente, pelo menos, através de seu dinheiro, forneceram substitutos para si mesmos. O soldado que se recusa a servir numa guerra injusta é aplaudido por aqueles que não se recusam a sustentar o governo injusto que faz a guerra, por aqueles cujos atos e autoridade ele negligencia e despreza, como se o Estado fosse penitente ao ponto de contratar alguém para castigá-lo enquanto peca mas não ao ponto de deixar de pecar por um momento sequer. Assim, em nome da Ordem e do Governo Civil, somos levados, finalmente, a homenagear e a sustentar nossa própria vileza. Depois do primeiro rubor do pecado vem a indiferença, e, de imoral, ela passa a ser, digamos, amoral, e não inteiramente desnecessária à vida que levamos.

O erro mais óbvio e geral, para sustentar-se, exige a virtude mais desinteressada. A leve censura a que a virtude do patriotismo encontra-se normalmenté sujeita é exercida, com mais probabilidade, pelos homens nobres. Aqueles que, embora desaprovando o caráter e as medidas do governo, dão a ele sua lealdade e seu apoio, são indubitavelmente seus defensores mais conscienciosos e freqüentemente tornam-se os mais sérios obstáculos à reforma. Alguns dirigem-se ao Estado pedindo que este dissolva a União, que desconsidere as solicitações do Presidente10. Por que eles mesmos não dissolvem a união que existe entre eles e o Estado e não se recusam a pagar sua cota ao Tesouro? Não se mantêm, assim, em relação ao Estado, do mesmo modo que o Estado em relação à União? E não serão as mesmas razões que impediram o Estado de resistir à União que os impedem de resistir ao Estado?

Como pode um homem satisfazer- se com apenas ter uma opinião e deleitar- se com ela? Haverá nela algum deleite se sua opinião for a de que ele se sente lesado? Se teu vizinho te rouba um único dólar, não te contentarás em saber que foste roubado, ou em dizer que o foste, nem mesmo em pedir que ele pague o que te deve, mas tomarás providências efetivas para obter de volta toda a quantia e, ao mesmo tempo, para que não sejas novamente roubado. A ação baseada num princípio, a percepção e execução do direito, modifica coisas e relações; é essencialmente revolucionária e não condiz inteiramente com nada que lhe seja anterior. Ela não divide apenas Estados e Igrejas, mas também famflias, ah!, divide o indivíduo, separando nele o diabólico do divino.

Leis injustas existem: devemos contentar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo? Num governo como este, os homens geralmente pensam que devem esperar até que a maioria seja persuadida a alterá-las. Pensam que, se resistissem ao governo, o remédio seria pior que o mal. Mas é culpa do próprio governo que o remédio seja, efetivamente, pior que o mal. E ele que o torna pior. Por que ele não está mais apto a antecipar e proporcionar a reforma? Por que não trata com carinho sua sábia minoria? Por que suplica e resiste antes de ser ferido? Por que não encoraja seus cidadãos a prontamente apontarem seus defeitos e a agirem melhor do que ele lhes pede? Por que sempre crucifica Cristo, excomunga Copérnico e Lutero e declara Washington e Franklín rebeldes?

Pode-se pensar que a deliberada e eficaz negação de sua autoridade tenha sido a única ofensa jamais levada em conta pelo governo. De outro modo, por que não lhe atribuiu ele uma penalidade definida, adequada e proporcional? Se um homem sem propriedade alguma recusa-se uma única vez a contribuir com nove xelins para o Estado, é aprisionado por um período de tempo ilimitado "or qualquer lei que seja de meu conhecimento, e determinado apenas pelo critério pessoal daqueles que ali o colocaram. Mas tivesse ele roubado ao Estado noventa vezes nove xelins, teria sido sem demora posto em liberdade.

Se a injustiça faz parte do atrito necessário à máquina do governo, deixemos que assim seja: talvez amacie com o passar do tempo, e certamente a máquina irá se desgastar. Se a injustiça tem uma mola, polia, cabo ou manivela exclusivamente para si, talvez possamos questionar se o remédio não será pior que o mal. Mas se ela for de natureza tal que exija que nos tornemos agentes de injustiça para com os outros, então proponho que violemos a lei. Deixemos que nossas vidas sejam um antiatrito capaz de deter a máquina. O que devemos fazer, de qualquer maneira, é verificar se não nos estamos prestando ao mal que condenamos.

Quanto a adotar os meios que o Estado propiciou para remediar o mal, nada sei sobre eles. Levam tempo demais e a vida se esgotaria. Tenho outros assuntos com que me preocupar. Vim a este mundo não, principalmente, para fazer dele um bom lugar para se viver, mas para viver nele, seja bom ou mau. Um homem não tem que fazer tudo, mas algo, e não é porque não pode fazer tudo que precisa fazer este algo de maneira errada. Não tenho maior obrigação de enviar petições ao Governador ou à Legislatura do que eles a mim, e, se não atenderem a minhas solicitações, o que devo fazer? Mas neste caso o Estado não propicia solução alguma: o mal está em sua própria Constituição. Isto pode parecer rude, inflexível e hostil, mas é tratar com a máxima bondade e consideração o único espírito que pode aprecia-lo ou merecê-lo. E assim o são todas as mudanças para melhor, como o nascimento e a morte, que convulsionam o corpo.

Não hesito em dizer que aqueles que se auto-proclamam abolicionistas deveriam, imediata e efetivamente, retirar seu apoio pessoal ou econômico ao governo de Massachusetts, e não esperar até que se constituam em maioria de um para só então obter o direito de predominar. Penso ser suficiente que tenham Deus a seu lado sem que precisem esperar por aquele homem a mais. Além disso, qualquer homem mais justo que seus semelhantes já constitui uma maioria de um.

Encontro diretamente, frente a frente, esse governo americano, ou seu representante, o governo do Estado, uma vez por ano - não mais - na pessoa do coletor de impostos. Este é o único modo pelo qual um homem na minha situação pode necessariamente encontrá-lo. E então ele afirma claramente: "Reconheça-me”. E a maneira mais simples, mais efetiva e, no atual estado de coisas, mais indispensável de tratar com ele sobre este assunto, de expressar nossa pouca satisfação e carinho em relação a ele, então, é negá-lo.

O coletor de impostos, meu semelhante, é exatamente o homem com quem tenho de tratar - pois, afinal, é com homens que brigo e não com pergaminhos - e ele escolheu voluntariamente ser um agente do governo. Como poderá ele saber, com certeza, o que é e o que faz como representante do governo, ou como homem, até que seja obrigado a decidir se irá tratar a mim, seu semelhante, por quem tem respeito, como um homem bem-intencionado e um seu semelhante, ou como um maníaco e perturbador da ordem, até que seja obrigado a ver se tem condições de superar este obstáculo a sua urbanidade sem um pensamento ou discurso mais rudes e impetuosos correspondentes a sua ação?

Estou certo de que se mil, se cem, se dez homens aos quais pudesse nomear - se dez homens honestos apenas - ah, se um homem HONESTO, neste Estado de Massachusetts, deixando de manter escravos, decidisse realmente retirar-se desta sociedade e fosse por isto encarcerado, isso significaria o fim da escravidão nos Estados Unidos. Pois não importa quão limitado possa parecer o começo: aquilo que é bem feito uma vez está feito para sempre. Mas preferimos falar sobre isso: essa é a nossa missão, dizemos. A reforma tem a seu serviço um grande número de jornais, mas nenhum homem. Se meu estimado semelhante, o representante do Estado11, que dedica seus dias ao arranjo da questão dos direitos humanos na Câmara do Conselho, ao invés de ser ameaçado com as prisões da Carolina, assumisse a condição de prisioneiro de Massachusetts, este Estado sempre ansioso por impingir o pecado da escravidão a seu irmão - embora, no momento, possa apenas descobrir um ato de inospitalidade como base para uma disputa com ele -, a Legislatura não deixaria inteiramente de lado o assunto no próximo inverno.

Num governo que aprisiona qualquer pessoa injustamente, o verdadeiro lugar de um homem justo é também a prisão. O lugar apropriado, hoje, o único lugar que Massachusetts proporciona a seus espíritos mais livres e menos desesperançados, são seus cárceres, nos quais se verão aprisionados e expulsos do Estado, por ação deste, os mesmos homens que já haviam expulsado a si mesmos por seus princípios. É ali que deverão encontrá-los o escravo foragido, o prisioneiro mexicano em liberdade condicional e o índio que queiram protestar contra as injustiças sofridas por sua raça; naquele lugar à parte, embora mais livre e honroso, em que o Estado coloca aqueles que não estão com ele, mas contra ele - o único lugar num Estado escravo em que um homem livre pode viver com honra. Se alguém pensa que ali sua influência se perderá, que sua voz não mais atormentará os ouvidos do Estado e que ele não será como um inimigo dentro de suas muralhas, é porque não sabe o quanto a verdade é mais poderosa que o erro, nem o quão mais eloqüente e eficazmente pode combater a injustiça aquele que já a tenha experimentado em sua própria carne. Dá o teu voto inteiro, não uma simples tira de papel, mas toda tua influência. Uma minoria é impotente enquanto se conforma à maioria, nem chega a ser uma minoria então, mas torna-se irresistível quando se põe a obstruir com todo o seu peso. Se a alternativa for a de manter todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não hesitará em sua escolha. Se mil homens se recusassem a pagar seus impostos este ano, esta não seria uma medida violenta e sangrenta, como seria a de pagá-los e permitir ao Estado cometer violências e derramar sangue inocente. Esta é, de fato, a definição de uma revolução pacífica, se tal for possível. Se o coletor de impostos ou qualquer outro funcionário público perguntar-me, como um deles já o fez, "Mas o que devo fazer?”, minha resposta será: "Se deseja realmente fazer algo, peça demissão . Quando o súdito recusar sua lealdade e o funcionário demitir-se de seu cargo, então a revolução terá se realizado. Mas suponhamos, até, que deva correr sangue. Já não se derrama uma espécie de sangue quando a consciência é ferida? Através deste ferimento esvai-se a verdadeira coragem e imortalidade de um homem, e ele sangra até a morte. Vejo este sangue correndo neste momento.

Refleti sobre o aprisionamento do ofensor e não sobre o confisco de seus bens, embora ambos possam servir ao mesmo propósito, porque aqueles que afirmam o mais puro direito, e são, conseqüentemente, mais perigosos para um Estado corrupto, normalmente não passaram muito tempo a acumular propriedades. A esses, o Estado presta, comparativamente, pouco serviço, e um pequeno imposto costuma ser visto como exorbitante, particularmente se são obrigados a ganhá-lo com suas próprias mãos. Se houvesse alguém que pudesse viver inteiramente sem o uso de dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir-lhe pagamento. Mas o homem rico - sem querer fazer nenhuma comparação invejosa - está sempre vendido à instituição que o faz rico. Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude, pois o dinheiro se interpõe entre um homem e seus objetivos, e os obtém para ele, e certamente não há grande virtude em fazê-lo. O dinheiro abafa muitas questões que, de outro modo, este homem seria levado a responder, ao mesmo tempo em que a única nova questão que lhe propõe é a difícil, embora supérflua, questão de saber como gastá-lo. Assim, seu fundamento moral lhe é retirado de sob os pés. As oportunidades de viver diminuem na proporção em que aumenta o que se chama de "meios". O melhor que um homem pode fazer por sua cultura, quando enriquece, é tentar pôr em prática os planos que concebeu quando pobre. Cristo respondeu ao herodianos de acordo com sua situação. "Mostrai-me o dinheiro do tributo”, disse, e um deles tirou uma moeda do bolso. Se usais dinheiro com a imagem de César gravada, e que ele tornou corrente e útil, ou seja, se sois homens do Estado, e de bom grado desfrutais as vantagens do governo de César, então devolvei a ele um pouco do que lhe pertence quando ele assim o exigir. "Logo, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus , disse, deixando-os sem saber mais do que antes a respeito de qual era qual, pois não desejavam sabê-lo.

Quando converso com os mais livres dos meus semelhantes, percebo que, seja o que for que digam sobre a magnitude e seriedade do problema, e sobre sua preocupação com a tranqüilidade pública, o cerne da questão é que não podem dispensar a proteção do governo existente e temem as conseqüências que possam advir para suas propriedades e suas famílias da desobediência a ele. De minha parte, não gostaria de pensar que alguma vez tenha confiado na proteção do Estado. No entanto, se nego a autoridade do Estado quando ele me apresenta a conta dos impostos, logo ele irá se apossar de meu patrimônio e dissipá-lo, molestando-me, assim, interminavelmente, bem como aos meus filhos. Isso é injusto. Isso torna impossível a um homem viver honestamente, e ao mesmo tempo confortavelmente, no que diz respeito às circunstâncias exteriores. Não valerá a pena acumular propriedades, pois com certeza estas seriam novamente confiscadas. Deves arrendar ou ocupar terra devoluta num lugar qualquer, plantar não mais que uma pequena safra e consumi-la imediatamente. Deves viver contigo e depender só de ti, sempre arrumado e pronto para partir, e não ter muitos negócios. Um homem pode enriquecer até mesmo na Turquia, se for, em todos os aspectos, um bom súdito do governo turco. Confúcio disse: "Se um Estado for governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria serão objeto de vergonha; se um Estado não for governado pelos princípios da razão, a riqueza e as honrarias serão objeto de vergonha. Não: até que eu queira que a proteção de Massachusetts me seja proporcionada em algum distante porto do Sul em que minha liberdade seja ameaçada, ou até que eu me veja exclusivamente voltado para o desenvolvimento de uma propriedade em seu território, através de um empreendimento pacifico, posso permitir-me recusar obediência a Massachusetts e seu direito a minha vida e meu patrimônio. Custa-me menos, em todos os sentidos, incorrer na pena de desobediência ao Estado do que me custaria obedecer-lhe. Neste caso, eu haveria de me sentir diminuído.

Há alguns anos, o Estado veio ao meu encontro, em nome da Igreja, e mandou-me pagar uma certa quantia em benefício de um padre a cujas pregações meu pai comparecia, mas a que eu mesmo jamais comparecera. "Paga”, disse, "ou serás preso”. Eu me recusei a pagar, mas, infelizmente, outro homem houve por bem fazê-lo. Eu não via por que o mestre-escola deveria pagar um imposto para sustentar o padre, e não o contrario, já que eu não era um mestre-escola do Estado mas me mantinha através de subscrição voluntária. Não via por que a escola não deveria apresentar sua conta de impostos e fazer com que o Estado atendesse a suas exigências, assim como a Igreja. Contudo, a pedido dos conselheiros municipais, concordei em fazer, por escrito, uma declaração como esta: "Saibam todos, pela presente, que eu, Henry Thoreau, não desejo ser considerado membro de nenhuma sociedade juridicamente constituída à qual não tenha me associado. Entreguei-a ao secretário da câmara municipal, que a guarda com ele. Desde então, o Estado, tendo tomado conhecimento de que eu não desejava ser considerado membro daquela igreja, nunca mais me fez tal exigência, embora dissesse que precisava manter-se fiel a sua presunção inicial naquela época. Se eu tivesse como especificá-las então, teria identificado minuciosamente todas as sociedades às quais não pertencia. Mas não soube onde encontrar uma lista completa delas.

Não pago imposto individual há seis anos. Por causa disso, certa vez, fui colocado na cadeia por uma noite. E, enquanto contemplava as sólidas paredes de pedra, com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro, com um pé de espessura, e a grade de ferro que filtrava a luz, não pude deixar de ficar impressionado com a insensatez daquela instituição que me tratava como se eu fosse um mero amontoado de carne, sangue e ossos, pronto para ser aprisionado. Estranhei que ela tenha concluído, por fim, que aquele fosse o melhor uso que poderia fazer de mim e que não tenha pensado em aproveitar-se de meus serviços de algum modo. Vi que, se havia um muro de pedra entre eu e meus concidadãos, havia um outro ainda mais difícil de galgar e transpor para que eles pudessem tomar-se tão livres quanto eu. Não me senti aprisionado sequer por um momento e aqueles muros pareceram-me um enorme desperdício de pedra e argamassa. Sentia-me como se apenas eu, entre todos meus concidadãos, tivesse pago o imposto. Eles claramente não sabiam como tratar-me mas portavam-se como pessoas mal-educadas. Em cada ameaça e em cada cumprimento havia um disparate, por pensarem que meu maior desejo era estar do outro lado daquele muro de pedra. Eu não podia senão sorrir ao ver quão diligentemente fechavam a porta às minhas meditações, que os perseguiam totalmente desimpedidas, e eles é que eram, na verdade, tudo de perigoso. Como não podiam alcançar-me, resolveram punir meu corpo; como meninos que, não conseguindo atacar alguém que odeiam, maltratam-lhe o cão. Vi que o Estado era irresponsável, tímido como uma mulher solitária com suas colheres de prata, e que não sabia distinguir seus amigos de seus inimigos, e perdi o resto de respeito que ainda nutria por ele, e tive pena dele.

Portanto, o Estado nunca enfrenta intencionalmente a consciência intelectual ou moral de um homem, mas apenas seu corpo, seus sentidos. Não está equipado com inteligência ou honestidade superiores, mas com força física superior. Não nasci para ser forçado a nada. Respirarei a meu próprio modo. Vejamos quem é o mais forte. Que força tem uma multidão?

Só pode forçar-me aquele que obedece a uma lei mais alta que a minha. Forçam- me a tornar-me como eles. Não sei de homens que tenham sido forçados a viver desta ou daquela maneira por uma massa de homens. Que espécie de vida seria essa? Quando me deparo com um governo que diz "Teu dinheiro ou tua vida”, por que deveria apressar-me em dar-lhe meu dinheiro? Ele pode estar em grande dificuldade e não saber o que fazer, mas não posso ajudá-lo nisso. Ele deve ajudar a si mesmo, fazer como eu faço. Não vale a pena lamuriar-se. Não sou responsável pelo bom funcionamento da maquinaria da sociedade. Não sou o filho do maquinista. Observo que, quando uma bolota de carvalho e uma castanha caem lado a lado, uma não se mantém inerte para dar lugar à outra, mas ambas obedecem às próprias leis, e desenvolvem-se e crescem e florescem tão bem quanto podem, até que uma delas, talvez, domine e destrua a outra. Se uma planta não consegue viver de acordo com sua natureza, ela morre, e assim também um homem.

A noite que passei na prisão foi bastante inusitada e interessante. Quando lá entrei, os prisioneiros, em mangas de camisa, conversavam e aproveitavam o ar da noite perto da entrada. Mas o carcereiro disse: "Vamos lá, rapazes, é hora de fechar”, e assim eles debandaram, e pude ouvir o som de seus passos retornando às celas vazias. Meu companheiro de cela foi-me apresentado pelo carcereiro como "um camarada de primeira e um homem inteligente . Quando a porta foi fechada, ele me mostrou onde pendurar meu chapéu e como lidava com as coisas ali. As celas eram caiadas uma vez por mês, e aquele, pelo menos, era o aposento mais alvo, o mais simplesmente mobiliado e provavelmente o mais asseado da cidade. Naturalmente, ele quis saber de onde eu vinha e o que me levara até ali. E, depois de ter lhe contado, perguntei-lhe igualmente como tinha ido parar ali, presumindo, é claro, que fosse um homem honesto. E, do jeito que anda o mundo, acredito que o fosse. "Bem , disse ele, "fui acusado de incendiar um celeiro, mas não o fiz . Tanto quanto pude constatar, ele provavelmente fora dormir bêbado num celeiro, fumara ali seu cachimbo e assim incendiara o celeiro. Tinha a fama de ser um homem inteligente, estava ali há cerca de três meses esperando que seu julgamento fosse realizado e ainda teria que esperar outro tanto, mas encontrava-se bastante domesticado e satisfeito, já que tinha casa e comida de graça e achava que era bem tratado.

Ele ocupava uma das janelas e eu a outra, e descobri que, se alguém ficasse ali por muito tempo, sua principal ocupação seria a de ficar olhando pela janela. Em pouco tempo eu havia lido todos os panfletos que tinham sido deixados ali, e examinado por onde antigos prisioneiros haviam escapado, e onde uma grade havia sido serrada, e escutado a história dos vários ocupantes daquela cela, pois descobri que mesmo ali havia histórias e boatos que nunca haviam circulado além dos muros da prisão. Esta é provavelmente a única casa da cidade em que se compõem versos que são posteriormente impressos sob forma de circular mas não são publicados. Mostraram-me uma lista bastante longa de versos compostos por alguns jovens que haviam sido descobertos numa tentativa de fuga e que se vingaram cantando-os.

Tirei o máximo que pude de meu companheiro de cela, temendo que não voltasse a vê-lo nunca mais, mas ele, afinal, mostrou-me qual era a minha cama e deixou- me com a missão de apagar a lamparina.

Dormir ali por uma noite foi como viajar para um país distante, que eu jamais esperara conhecer. Pareceu-me que eu nunca antes tinha ouvido a batida do relógio da cidade, nem os sons noturnos da vila, pois dormíamos com as janelas abertas, que eram gradeadas por fora. Era como ver minha vila natal à luz da Idade Média, e nosso Concord transformava-se num riacho como os do Reno, e visoes de cavaleiros e castelos passavam diante de meus olhos. Eram as vozes dos velhos cidadãos dos burgos que eu ouvia nas ruas. Eu era um espectador e um ouvinte involuntário de tudo que era dito e feito na cozinha da estalagem contígua - uma experiência totalmente nova e rara para mim. Era uma visão mais minuciosa de minha cidade natal. Eu estava completamente dentro dela. Nunca havia enxergado suas instituições antes. Aquela era uma de suas instituições peculiares, pois era um condado. Comecei a compreender com que se ocupavam seus habitantes.

Pela manhã, nosso desjejum era passado através da vigia da porta, em pequenas vasilhas de lata retangulares que continham meio litro de chocolate, pão preto e uma colher de ferro. Quando pediram de volta as vasilhas, minha inexperiência me fez devolver o pão que me sobrara, mas meu companheiro agarrou-o e disse que eu deveria guardá-lo para o almoço ou o jantar. Pouco depois, deixaram-no sair para trabalhar num campo de feno próximo dali, para onde ia todos os dias, e, como estaria de volta só depois do meio- dia, disse-me adeus, pois duvidava que fosse me ver outra vez.

Quando saí da prisão - pois alguém interferiu e pagou aquele imposto - não achei que grandes mudanças houvessem ocorrido nas coisas comuns, como o faria alguém que tivesse entrado jovem na prisão e dela saísse já grisalho e cambaleante. Mesmo assim, aos meus olhos, ocorrera uma mudança no cenário - na cidade, no estado, no país-, uma mudança maior do que qualquer outra que pudesse ser efetuada pela mera passagem do tempo. Enxerguei ainda mais claramente o Estado em que vivia. Vi até que ponto podia confiar, como bons vizinhos e amigos, nas pessoas entre as quais vivia. Vi que sua amizade valia apenas para o tempo bom, que eles não se propunham muito a praticar o bem. Vi que eram de uma raça diferente da minha, tanto quanto os chineses e os malaios, devido a seus preconceitos e superstições; que, em seus sacrifícios pela humanidade, não colocavam nada em risco, nem mesmo seu patrimônio; que, afinal de contas, não eram assim tão nobres, pois tratavam o ladrão como este os havia tratado, e esperavam, através de certas observâncias exteriores, de umas poucas preces e de andarem por um determinado caminho reto, porém inútil, de tempos em tempos, salvar suas almas. Isto pode parecer um julgamento demasiado severo de meus próximos, pois acredito que muitos deles não estejam conscientes da existência de uma instituição como a cadeia em sua vila.

Antigamente era costume em nossa vila, quando um pobre devedor saía da cadeia, seus conhecidos o saudarem olhando-o através dos dedos, que eram cruzados para representar as grades de uma janela de prisão, e dizendo "Como vai?”. Meus conterrâneos não me saudaram desta forma, mas primeiro olharam para mim, depois uns para os outros, como se eu tivesse retomado de uma longa jornada. Eu tinha sido preso enquanto me dirigia ao sapateiro para buscar um sapato que precisara de conserto. Quando saí, na manhã seguinte, tratei de completar minha pequena missão e, já calçando meu sapato consertado, juntei-me à turma do huckleberry12, que estava impaciente para ser por mim conduzida e, depois de meia hora - pois o cavalo fora atrelado em seguida -, encontrávamo-nos no meio de um campo de hucklebeny, numa de nossas colinas mais altas, a duas milhas de distância, e logo já não podíamos enxergar o Estado em parte alguma.

Esta é toda a história das "Minhas Prisões13".

Nunca me recusei a pagar o imposto rodoviário, pois desejo tanto ser um bom vizinho quanto um mau súdito. E, quanto a sustentar as escolas, faço minha parte educando hoje meus concidadãos. Não é por nenhum item específico da lista de impostos que me recuso a pagá-la. Simplesmente desejo recusar sujeição ao Estado, afastar-me dele e manter-me à parte de modo efetivo. Não me interessa traçar a rota de meu dólar, mesmo que pudesse, até o ponto em que ele compre um homem ou um mosquete para matar um homem - o dólar é inocente -, mas a mim interessa rastrear os efeitos de minha sujeição. Na verdade, serenamente declaro guerra ao Estado, a meu modo, embora eu ainda possa vir a usá-lo e obter dele as vantagens que puder, como é comum nestes casos.

Se outros pagam o imposto que me é exigido, por solidariedade ao Estado, fazem simplesmente o que já haviam feito em seus próprios casos, ou, mais exatamente, favorecem a injustiça numa extensão maior que a exigida pelo Estado. Se pagam o imposto devido a um interesse equivocado pelo indivíduo taxado, para salvar seu patrimônio ou impedir que ele vá para a cadeia, é porque não avaliaram sensatamente até que ponto permitem que seus sentimentos pessoais iterfiram no bem público.

Esta é, portanto, minha posição atual. Num caso como esse, porém, nunca se pode estar demasiadamente em guarda, para que nossa ação não seja influenciada pela obstinação ou por uma indevida consideração pelas opiniões dos homens. Tratemos de fazer apenas aquilo que nos seja próprio e oportuno.

Às vezes, penso: ora, essas pessoas são bem-intencionadas, mas são ignorantes. Agiriam melhor se soubessem como fazê-lo: por que dar a nossos concidadãos o incômodo de tratar-nos de uma maneira pela qual não se mostram inclinados? Mas penso melhor: isto não é razão para que eu aja como eles ou permita que outros sofram um incômodo muito maior, de um tipo diferente. Digo a mim mesmo, também: quando muitos milhões de homens, sem ódio, sem hostilidade, sem sentimentos pessoais de qualquer espécie, exigem de ti apenas uns poucos xelins, sem a possibilidade, por seu temperamento, de retraírem-se ou de alterarem sua atual demanda, e sem a possibilidade, de tua parte, de apelar para quaisquer outros milhões, por que expor-te a esta força bruta e esmagadora? Não resistes tão obstinadamente ao frio e à fome, aos ventos e as ondas; submetes-te serenamente a mil necessidades semelhantes. Não colocas tua cabeça no fogo. Mas na exata medida em que considero que esta não é uma força inteiramente bruta, mas parcialmente humana, e que me relaciono com esses milhões de homens tanto quanto com outros milhões, e não simplesmente com coisas brutas ou inanimadas, vejo que se toma possível um apelo, antes de mais nada, deles ao seu Criador, e, em segundo lugar, deles a eles mesmos. Porém, se eu colocar deliberadamente minha cabeça no fogo, não haverá apelo que possa fazer ao fogo ou ao seu Criador, e só poderei culpar a mim mesmo. Se eu pudesse convencer-me de que tenho algum direito de estar satisfeito com os homens tais como são, e de tratá-los de acordo com isso, e não de acordo, em alguns aspectos, com minhas exigências e expectativas quanto ao que eles e eu devamos ser, então, como um bom muçulmano e fatalista, deveria empenhar-me para me satisfazer com as coisas como elas são, e dizer que esta é a vontade de Deus. E, acima de tudo, existe uma diferença entre resistir a isto e a uma força puramente bruta ou natural, que é a de que posso resistir a isto com algum sucesso, mas não posso esperar, como Orfeu, mudar a natureza das rochas, das árvores e dos animais.

Não desejo brigar com nenhum homem ou nação. Não quero entrar em minúcias desnecessárias, nem fazer distinções sutis, nem pretendo parecer melhor do que meus semelhantes. Ao contrário, posso dizer que até mesmo procuro uma desculpa para conformar-me com as leis da terra. Estou mesmo pronto a conformar-me com elas. Na verdade, tenho razões para suspeitar de mim mesmo quanto a este assunto. E todo ano, quando reaparece o coletor de impostos, vejo-me disposto a rever os atos e a posição do governo geral e do Estado, e o espírito do povo, para descobrir um pretexto para a conformidade.

Devemos14 amar nossa pátria como a nossos pais:
E se em algum momento deixarmos de dedicar-lhe
Nosso amor e nossos cuidados,
Devemos honrar o afeto e ensinar à alma
As coisas da consciência e da religião,
E não o desejo de poder ou benefício.


Acredito que o Estado logo será capaz de me tirar das mãos todo trabalho desse tipo e então não serei melhor patriota que meus conterrâneos. Analisada de um ponto de vista inferior, a Constituição, com todos os seus defeitos, é muito boa; a lei e os tribunais são muito respeitáveis; mesmo este Estado e este governo americano são, sob muitos aspectos, bastante raros e admiráveis, como muitos já os descreveram, e podemos ser gratos a eles. Porém, analisados de um ponto de vista um pouco mais elevado, eles são exatamente aquilo que descrevi, e, vistos de um lugar ainda mais alto, do topo mesmo, quem poderá dizer o que eles são ou que merecem ser apreciados e ser objeto de nossos pensamentos?

Entretanto, o governo não me interessa tanto assim, e dedicarei a ele o menor numero possível de pensamentos. Não são muitos os momentos em que vivo sob um governo, mesmo neste mundo. Se um homem pudesse não ter mais pensamentos, fantasias ou imaginação, algo que jamais poderia lhe acontecer por um tempo muito longo, então, fatalmente, os governantes ou reformadores insensatos não poderiam interrompê-lo.

Sei que a maioria dos homens pensa de modo diferente do meu, mas aqueles que dedicam suas vidas profissionais ao estudo deste e de outros assuntos afins contentam-me tão pouco quanto os demais. Os estadistas e legisladores, situando-se tão completamente dentro da instituição, nunca a contemplam nítida e abertamente. Falam de uma sociedade em movimento, mas fora dela não têm nenhum lugar onde descansar. Podem ser homens de certa experiência e discernimento, e sem dúvida inventaram sistemas engenhosos e mesmo úteis, pelos quais sinceramente lhes agradecemos. Mas todo seu engenho e utilidade situam-se dentro de limites não muito amplos. Costumam esquecer que o mundo não é governado pela sagacidade e pela conveniência. Webster15 nunca chega aos bastidores do governo e, portanto, não pode falar com autoridade sobre ele. Suas palavras são a própria sabedoria para aqueles legisladores que não consideram fazer nenhuma reforma essencial no governo existente. Mas para aqueles que pensam, e para os que legislam para todos os tempos. ele não chega sequer a vislumbrar o assunto. Sei de alguns cujas serenas e sábias especulações a respeito deste tema logo colocariam em evidência os limites da amplitude e da receptividade da mente de Webster. Mesmo assim, comparadas com as manifestações ordinárias da maioria dos reformadores, e com a sabedoria e a eloqüência ainda mais ordinárias dos políticos em geral, suas palavras são quase as únicas palavras sensatas e válidas, e agradecemos aos Céus por ele. Comparativamente, ele é sempre forte, original e, sobretudo, prático. No entanto, sua virtude é a prudência, não a sabedoria. A verdade do advogado não é Verdade, mas coerência, ou uma conveniência coerente. A Verdade está sempre em harmonia consigo própria e não se preocupa primordialmente em exibir a justiça que possa condizer com o mal. Webster bem merece ser chamado, como realmente o foi, de Defensor da Constituição. Não há, realmente, outros golpes que ele possa desferir senão os defensivos. Ele não é um líder, mas um seguidor. Seus líderes são os homens de 87(16). "Nunca fiz qualquer esforço", diz, "nem me proponho a fazê-lo; nunca apoiei qualquer esforço, e nem pretendo fazê-lo um dia, no sentido de perturbar o acordo originalmente feito pelo qual os vários Estados constituíram a União". Contudo, pensando na sanção que a Constituição concede à escravidão, ele diz: "Deixêmo-la permanecer, já que fazia parte do arranjo original. A despeito de sua notável agudeza e capacidade, ele é incapaz de isolar um fato de suas relações meramente políticas e contemplá-lo em termos absolutos, como convém ao intelecto considerá-lo - por exemplo, o que cabe a um homem fazer hoje, na América, com relação à escravidão. Aventura- se, porém, ou é levado a fazer declarações desesperadas como as seguintes, embora reconheça estar falando em termos absolutos e como particular - que novo e singular código de deveres sociais pode ser inferido disto? "A maneira pela qual , afirma, "os governos dos Estados onde existe a escravidão deverão regulamentá-la será a de levar em consideração as leis gerais da propriedade, humanidade e justiça, além de seu temor a Deus, por força da responsabilidade perante seus constituintes. Associações formadas alhures, nascidas de um sentimento humanitário ou de qualquer outra causa, não têm absolutamente nada a ver com ela. Jamais receberam qualquer encorajamento de minha parte e jamais o receberão.

Aqueles que não conhecem fontes mais puras de verdade, que não seguiram seu curso até mais alto, apóiam-se, sabiamente, na Bíblia e na Constituição, e bebem-na ali com reverência e humildade; mas aqueles que contemplam o lugar de onde ela verte para este lago ou aquela lagoas arregaçam as mangas mais uma vez e continuam sua peregrinação até suas nascentes.

Nenhum homem com gênio para legislar apareceu na América. Eles são raros até na história do mundo. Existem oradores, políticos e homens eloqüentes aos milhares, mas ainda não abriu a boca para falar aquele interlocutor capaz de resolver as questões mais discutidas do momento. Amamos a eloqüência pela eloqüência e não por qualquer verdade que possa exprimir ou por qualquer heroísmo que possa inspirar. Nossos legisladores ainda não aprenderam o valor comparativo que têm o livre comércio e a liberdade, a união e a retidão, para uma nação. Não têm gênio ou talento para as questões relativamente modestas de tributação e finanças, comércio, manufaturas e agricultura. Se nos deixássemos guiar exclusivamente pela palavrosa sabedoria dos legisladores do Congresso, sem que esta fosse corrigida pela oportuna experiência e pelas efetivas reclamações do povo, os Estados Unidos não sustentariam por muito tempo o lugar que ocupam entre as nações. Há mil e oitocentos anos, embora eu talvez não tenha o direito de dizê-lo, o Novo Testamento foi escrito. E, no entanto, onde está o legislador com sabedoria e talento prático bastante para tirar proveito da luz que ele lança sobre a ciência da legislação?

A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter - pois obedecerei com prazer àqueles que saibam e possam fazer melhor do que eu, e, em muitas coisas, mesmo àqueles que não saibam nem possam fazer tão bem -, é ainda uma autoridade impura: para ser rigorosamente justa, ela deve ter a sanção e o consentimento dos governados. Não pode ter nenhum direito puro sobre minha pessoa e meu patrimônio apenas aquele que lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia limitada e desta para uma democracia é um progresso no sentido de um verdadeiro respeito pelo indivíduo. Mesmo o filósofo chinês foi sábio bastante para ver no indivíduo a base do império. Será a democracia, tal como a conhecemos, o último desenvolvimento possível em matéria de governo? Não será possível dar um passo mais além no sentido do reconhecimento e da organização dos direitos do homem? Jamais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada. Agrada-me imaginar um Estado que, afinal, possa permitir-Se ser justo com todos os homens e tratar o indivíduo com respeito, como um seu semelhante; que consiga até mesmo não achar incompatível com sua própria paz o fato de uns poucos viverem à parte dele, sem intrometer-se com ele, sem serem abarcados por ele, e que cumpram todos os seus deveres como homens e cidadãos. Um Estado que produzisse este tipo de fruto, e que o deixasse cair assim que estivesse maduro, prepararia o caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso, que também imaginei, mas que ainda não avistei em parte alguma.

===

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1997. Comentário e hiperlinks: Sérgio Bellei (UFSC)

1
publicado originalmente sob o título de "Resistência ao Governo Civil", no periódico "Aesthetic Papers" (14 de maio de 1849). Publicado postumamente como "A Desobediência Civil" no livro A Yankee in Canada

2
ideologia política liberal bastante conhecida na época e normalmente associada ao ideário de Thomas Jefferson, que acreditava que os homens deveriam ser livres para decidir sobre o seu próprio destino e que, portanto, as funções do estado deveriam ser reduzidas ao mínimo necessário.

3
Guerra de 1846 entre os EUA e o México. Thoureau escreve "A Desobediência Civil" no período da guerra contra o México (1846-1848), provocada pela incorporação do estado do Texas como parte dos Estados Unidos. A vitória norte-americana teve como resultado a aquisição, pelos Estados Unidos, de cerca de 1.300.000 km2 de terras mexicanas, correspondentes aos estados do Novo México, Utah, Nevada, Arizona, Califórnia, Texas e à parte oeste do Colorado. Intelectuais da Nova Inglaterra, como Thoureau, suspeitavam que a guerra significava também uma expansão do sistema escravocrata, a ser implantado nos novos estados anexados.

4
versos extraídos de "O Sepultamento de John Moore em Corunna" (1817), do poeta irlandês Charles Wolfe (1791-1823).

5
As referências entre aspas, bem como os versos citados a seguir, são fragmentos textuais extraídos da obra de William Shakespeare, as primeiras de Hamlet, ato V, cena i, 236-237, e os últimos de King John, ato v, cena ii, 79-82.

6
Refere-se ao ano de 1775, que marca o início da revolução da independência dos EUA.

7
William Paley (1743-1805), teólogo inglês que escreveu Princípios de Filosofia Moral e Política.

8
Fragmento textual extraído de A Tragédia do Vingador (1607), ato IV, cena IV, 70-72, de Cyril Tourneur (1575?-1626).

9
"Antes de tornar-se adulto". Thoureau refere-se aqui ao costume vigente entre os romanos, segundo o qual permitia-se aos adolescentes, ao atingir a idade adulta, usar a "toga virilis" (vestimenta característica do homem adulto, feita de tecido de lã branco).

10
Referência ao presidente James K. Polk, que pedia ao povo norte-americano doações monetárias e voluntários para a guerra contra o México.

11
Thoureau refere-se a Samuel Hoar (1778-1856), senador por Massachussetts e seu vizinho em Concord. O senador foi enviado à Carolina do Sul para protestar contra a prisão de marinheiros negros de navios de Massachussetts nos portos da Carolina do Sul. Em resposta ao seu protesto, foi expulso do estado e ameaçado com medidas jurídicas.

12
Mirtilo norte-americano, planta da família das ericáceas.

13
Título do livro de Silvio Pellico (1788-1854), patriota revolucionário italiano que, como Thoureau, escreveu sobre sua experiência como prisioneiro. O livro de Pellico foi publicado em 1832.

14
Texto adaptado d'A Batalha de Alcazar (1594), ato II, cena ii, 425-230, peça teatral escrita por George Peele (1558?-1597).

15
Daniel Webster (1782-1852), advogado, estadista e orador norte-americano. Daniel Webster (1782-1852). Senador por Massachussetts, Webster era visto com maus olhos pelos abolicionistas porque apoiava a chamada Lei do Escravo Fugitivo, que legalizava a recaptura dos escravos que fugiam em busca da liberdade.

16
As pessoas encarregadas de redigir a constituição norte-americana, no ano de 1787, na Convenção de Filadélfia.

fonte: http://www.ufrgs.br/cdrom/thoreau/thoreau.pdf

sábado, 8 de agosto de 2009

De Mossadeg a Ahmadinejad: A CIA e o laboratório iraniano.

A notícia de uma possível fraude eleitoral propagou-se em Teerã como fogo em mato seco e empurrou para a rua os correligionários do Ayatollah Rafsanjani contra os do Ayatollah Khamenei. Este caos é provocado em primeira mão pela CIA, semeando a confusão e inundando os iranianos com mensagens contraditórias pelo SMS.

Thierry Meyssan relata sua experiência de guerra psicológica.

Em Março de 2000, a Secretária de Estado Madeleine Albright reconheceu que a administração Eisenhower orquestrara uma mudança de regime no Irã em 1953 e que isto explica a atual hostilidade iraniana contra os Estados Unidos. Na semana passada, no seu discurso no Cairo dirigido aos muçulmanos, o Presidente Obama oficialmente reconhecido que "em plena Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam um papel importante na derrubada de um governo iraniano democraticamente eleito" [1] .

Na época, o Irã era controlado por uma monarquia de opereta liderada pelo Xá Mohammad Reza Pahlavi. Ele foi colocado no trono pelos britânicos, que obrigaram o pai dele, o cossaco oficial pró-nazi Reza Pahlavi, a demitir-se. No entanto, o Xá teve que lutar com o Primeiro-Ministro nacionalista Mohammad Mossadegh. Este último, com a ajuda do Ayatollah Abu al-Qasim Kachani, nacionalizou os recursos petrolíferos [2 http://www.voltairenet.org/article160639.html#nb2#nb2]. Furiosos, os britânicos convenceram os Estados Unidos a interromper a deriva iraniana antes do país afundar no comunismo. A CIA colocou em ação a Operação Ajax para derrubar Mossadegh com a ajuda do Xá e substituí-lo pelo general nazi Fazlollah Zahedi, anteriormente detido pelos britânicos. Ele instalaria em seguida o mais cruel reinado de terror, enquanto o Xá disfarçava seus abusos quando era procurado pelas revistas ocidentais.

A Operação Ajax foi chefiada pelo arqueólogo Donald Wilber, pelo historiador Kermit Roosevelt (o 'petit-fils' do presidente Theodore Roosevelt) e pelo General Norman Schwartzkopf (cujo filho homônimo coordenou a Operação Desert Storm). Essa operação tornou-se um modelo de subversão. A CIA planta um cenário que dá a impressão de uma revolta popular, enquanto desenvolve uma operação secreta. O destaque da encenação foi uma manifestação em Teerã por oito mil figurantes pagos pela Agência a fim de fornecer fotos convincentes à imprensa ocidental [3].

A História vai repetir isso? Washington abriu mão de atacar militarmente o Irã, e tem desencorajado Israel de tomar uma iniciativa desse tipo. Para conseguir uma "mudança do regime", a administração Obama prefere jogar a cartada -- menos perigosa, mas mais aleatória -- da ação secreta. No final da eleição presidencial iraniana, as grandes manifestações nas ruas Teerã entre partidários do Presidente Mahmoud Ahmadinejad e do chefe supremo Ali Khamenei, por um lado, e os partidários do candidato vencido Mir-Hossein Mousavi e do antigo Presidente Akbar Hashemi Rafsanjani, por outro. Que reflete uma profunda divisão na sociedade iraniana entre proletariado e uma burguesia nacionalista que lamenta ser excluída da globalização econômica [4].

Deliberando na sombra, Washington tenta influenciar nos acontecimentos para derrubar o presidente reeleito. Mais uma vez, o Irã é um campo de experimentação de métodos inovadores de subversão. A CIA, em 2009, testa uma nova arma: o controle de telefones celulares.

Desde a utilização generalizada de telefones celulares, os serviços secretos anglo-saxões multiplicaram sua capacidade de interceptação. A escuta dos telefones exige a instalação de rampas de derivação para uso dos agentes locais, a escuta dos laptops pode ser feita remotamente através da rede Echelon. No entanto, este sistema não permite a intercepção de comunicações telefônicas feitas através do Skype, o que justifica o sucesso dos telefones do Skype em áreas de conflito [5].

A National Security Agency (NSA) vem atuando junto aos provedores de acesso à Internet em todo o mundo para obter o seu apoio. Aqueles que aceitam são ricamente recompensados [6].

Nos países que ocupados -- Iraque, Afeganistão e Paquistão -- os anglo-saxões interceptam todas as conversas telefônicas feitas por telefones celulares ou a eles conectados. O objetivo é não ter a transcrição de qualquer conversa, mas, identificar as "redes sociais". Em outras palavras, os telefones são os cookies que permitem conhecer as pessoas com quem se relaciona. Assim, espera-se identificar as redes de resistência. Em uma segunda etapa, os telefones são usados para localizar os alvos identificados, e para "neutralizá-lo".

Assim, em fevereiro de 2008, os insurgentes afegãos ordenaram os operadores a cessar as suas atividades todos os dias das 17h às 03h, de modo a evitar que os anglo-saxões seguissem seus movimentos. As antenas daqueles que violassem as ordens seriam destruídas [7].

Inversamente -- a menos afetada por falhas telefônicas -- as forças israelenses evitaram bombardear as centrais telefônicas de Gaza, durante a Operação Chumbo realizada entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Esta é uma completa mudança de estratégia no Ocidente. Desde a Guerra do Golfo prevalece a "teoria dos cinco anéis" do Coronel John A. Warden: o bombardeamento da infra-estrutura de telefonia era visto como um objetivo estratégico tanto para mergulhar na confusão como para cortar as comunicações entre os centros de comando combatentes. Agora, pelo contrário, temos de proteger as infra-estruturas de telecomunicações. Durante o bombardeamento de Gaza, o operador Jawwal [8] tem oferecido crédito aos seus assinantes oficialmente para ajudá-los, de fato, no interesse dos israelenses.

Dando mais um passo, os serviços secretos anglo-saxônicos e Israel têm desenvolvido métodos de guerra psicológica baseadas na ampla utilização de telefones móveis. Em Julho de 2008, após a troca de prisioneiros nas querelas entre Israel e o Hezbollah, robôs lançaram dezenas de milhares de chamadas para telefones móveis no Líbano. Uma voz em árabe advertia contra qualquer envolvimento na Resistência e denegria o Hezbollah. O ministro libanês das telecomunicações, Jibran Bassil [9], apresentou uma queixa junto das Nações Unidas contra esta flagrante violação da soberania do país [10].

Na mesma linha, dezenas de milhares de libaneses e sírios receberam uma chamada automática em outubro de 2008, oferecendo 10 milhões de dólares contra qualquer informação que pudesse identificar e libertar soldados israelitas detidos. Os interessados em colaborar foram convidados a ligar para um número no Reino Unido [11].

Este método tem sido usado no Irã para intoxicar a população com boatos, e para canalizar o descontentamento gerado.

Em um primeiro momento, foi espalhado pelo SMS durante a noite a notícia de que o Conselho de Guardiães (equivalente a um Tribunal Constitucional) informara o Mir-Hossein Mousavi sobre sua vitória. Portanto, o anúncio várias horas depois dos resultados oficiais -- a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad com 64% dos votos -- parecia uma gigantesca fraude. Mas três dias antes, o Sr. Mousavi e seus amigos anteviram a enorme vitória de Ahmadinejad, e alguns tentaram explicá-la pelo desequilíbrio na campanha eleitoral. Como foi o caso do ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani detalhando suas queixas em uma carta aberta. Os institutos de sondagem estadunidenses prognosticaram no Irã um avanço de Ahmadinejad em 20 pontos sobre o Sr. Moussavi [12]. Em nenhum momento a vitória do Sr. Mousavi parecia possível, mesmo que eventuais fraudes aumentassem a margem entre os dois candidatos.

Em um segundo momento, cidadãos foram selecionados ou se apresentaram na Internet para conversar pelo Facebook ou divulgar suas manchetes pelo Twitter. Em seguida, novamente através do SMS, eles passaram a transmitir informações -- verdadeiras ou falsas -- sobre a evolução da crise política e manifestações em curso. Anônimos passaram a espalhar notícias sobre tiroteios e mortes de muitos, e novas medidas não confirmadas. Por uma infeliz coincidência de calendário, a empresa Twitter deveria suspender o seu serviço por uma noite, o tempo necessário para a manutenção das suas instalações. Mas o Departamento de Estado dos Estados Unidos interveio para pedir-lhe para adiar esta operação [13]. Segundo o New York Times , estas ações contribuíram para semear a desconfiança na população [14].

Simultaneamente, um novo esforço na CIA mobilizou os militantes anti-iranianos nos EUA e no Reino Unido para aumentar a desordem. Um guia prático da revolução no Irã foi distribuído com muitos conselhos práticos, incluindo:

- Os membros do Twitter deveriam ajustar suas contas no fuso horário de Teerã;

- Centralizar as mensagens de suas contas no Twitter @stopAhmadi contas;

- Digitar #iranelection e #gr88;

- Não atacar os sites estatais do Irã.

- "Laissez faire l’armée" US pour cela (sic).

Executadas, estas dicas impediriam qualquer autenticação das mensagens do Twitter. Nós não poderíamos saber se elas eram enviadas por testemunhas das manifestações em Teerã ou por agentes da CIA em Langley, e já não poderíamos distinguir a verdade da ficção. A meta é sempre criar mais confusão e lançar iranianos contra iranianos.

Militares em todo o mundo seguem de perto os acontecimentos em Teerã tentando avaliar a eficácia deste novo método de subversão no laboratório do Irã. Naturalmente, o processo de desestabilização funciona. Mas é duvidoso que a CIA possa canalizar os manifestantes para que eles mesmos façam o que o Pentágono se recusa fazer: mudar o regime e derrubar a Revolução Islâmica.


[1] "Discurso na da Universidade do Cairo," por Barack Obama, Réseau Voltaire, 4 de junho de 2009.
[2] "BP-Amoco, coligação petrolífera anglo-saxónica", por Arthur Lepic, Réseau Voltaire, 10 de junho de 2004.
[3] Sobre o golpe de 1953, o livro de referência é All the Shah’s Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror por Stephen Kinzer, John Wiley & Sons ed (2003), 272 pp. Para os leitores francófonos, anote o último capítulo do recente livro escrito por Gilles Munier, Les espions de l’or noir, Koutoubia ed (2009), 318 pp.
[4] "La société iranienne paralysée" por Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 5 de Fevereiro de 2004.
[5] "Taliban using Skype phones to dodge MI6", Glen Owen, Mail Online, 13 de Setembro de 2008.
[6] "NSA offering ’billions’ for Skype eavesdrop solution", de Lewis Page, The Register, 12 de Fevereiro de 2009.
[7] "Taliban Threatens Cell Towers", por Noah Shachtman, Wired, 25 de Fevereiro de 2008.
[8] Jawwal é a marca do PalTel, a Sociedade do palestiniano bilionário Munib Al-Masri.
[9] Jibran Bassil é um dos principais líderes do Movimento Patriótico Livre, o Partido Nacionalista de Michel Aoun.
[10] "Freed Lebanese say they will keep fighting Israel", Associated Press, 17 de Julho de 2008.
[11] O autor deste artigo foi testemunha a essas chamadas. Também vamos ver "Strange Israeli phone calls alarm Syrians. Israeli intelligence services accused of making phone calls to Syrians in bid to recruit agents", Syria News Briefing, 4 de Dezembro de 2008.
[12] Citado em "Ahmadinejad won. Get over it", por Flynt Leverett e Hillary Mann Leverett, Politico, 15 de Junho de 2009.
[13] "U.S. State Department speaks to Twitter over Iran", Reuters, 16 de Junho de 2009.
[14] "Social Networks Spread Defiance Online" por Brad Stone e Noam Cohen, The New York Times, 15 de Junho de 2009.

Thierry Meyssan
Analista político, fundador da Rede Voltaire.
Último livro publicado: L’Effroyable imposture 2 (le remodelage du Proche-Orient et la guerre israélienne contre le Liban)
http://www.voltairenet.org/article160639.html


Nota do editor: A publicação do artigo acima não significa partilhar a opinião do autor, deve ser visto como informação.

fonte: http://journauxdeguerre.lalibreblogs.be/archive/2009/07/18/n-4-geopolitique-et-strategie-d-iran-15-07-fin-l-ingerence-d.html

Confissões no Irã

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Irã. Prisão, tortura e morte

Ramin Ghahremani: dependurado por muito tempo de cabeça para baixo.

Detalhes do martírio de outro prisioneiro

Qinze dias depois de defender a própria inocência, Ramin Ghahremani foi libertado da prisão com o corpo marcado pela tortura. Dois dias depois morreu nos braços da mãe, pelas conseqüências de seus ferimentos.

Segundo relatos da agencia de notícias iraniana Norooz, agentes identificaram Ramin em imagens tiradas a partir de uma câmera de segurança de um banco, durante os confrontos após as eleições. Em seguida, foram até sua casa, a fim de prendê-lo. Mas como não estava em casa, os agentes disseram à sua mãe que ele deveria apresentar-se o mais depressa possível.

A mãe de Shahid Ghahremani, que sabia que seu filho era inocente e não tinha feito nada além de participar em protestos pacíficos, o acompanhou ao local indicado pelos agentes. Quinze dias mais tarde, Ramin Ghahremani foi libertado com sinais de tortura em seu corpo. Após sua libertação, ele disse à sua mãe que tinha sido dependurado pelos pés por vários dias. Após sua libertação, Shahid Ghahremani foi admitido no hospital por causa de coágulos sanguíneos em seu peito, onde morreu mais tarde.

A família de Ghahremani foi ameaçada e pressionada a não espalhar notícias sobre o martírio do rapaz. Eles o enterraram sob pesadas medidas de segurança. Após o funeral foram ameaçados pelas forças de segurança para não chorar muito alto nem fazer a cerimônia do velório. Cinco membros da família tiveram problemas nervosos e alguns deles tiveram de ser hospitalizadas.

Ramin Ghahremani nasceu em 1358 (1979) e morou em Shahr Ara Street.

http://iranian009.blogfa.com/post-46.aspx

Iran today

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Chomsky fala sobre o Irã


Iranianos gritam slogans contra o Presidente Mahmoud Ahmadinejad durante um protestos em Islamabad em 30 de julho. (foto: Aamir Qureshi/ AFP-Getty Images)

Chomsky, proeminente autor americano, filósofo e ativista político, conhecido como o pai da lingüística moderna, tem aplaudido o movimento dos iranianos. Em sua entrevista à Rádio Farda, falada em farsi e dirigida à comunidade iraniana nos Estados Unidos, ele comenta os protestos dos iranianos, a repressão no Irã, e levantes em outras partes do mundo.

Professor Chomsky, o Sr. vêm apoiando o movimento civil dos manifestantes iranianos. Em primeiro lugar, o que o levou a isso?

Bem, eu acho que eles têm razão de protestar contra coisas como condenação de presos políticos, repressão violenta, e outros procedimentos autocráticos autoritários do regime iraniano.

O Irã há vários anos tem sido manchete, mas desta vez parece ser extremamente diferente. É um dos poucos momentos em que o povo do Irã está no foco da notícia, e não o governo. Qual foi a sua impressão pessoal, quando você viu as imagens saindo dos telefones celulares do país. Alguma vez você esperou acontecer algo parecido com isto?

Não, mas eu não previ outras revoltas populares no Irã, de qualquer modo. Eu não previ a revolta de 1979, e eu não conheço ninguém que previu. Certamente nem mesmo a inteligência dos Estados Unidos. Houve muitas outras também. Houve grandes protestos contra o Shah, houve protestos contra o regime. O Irã realmente tem uma tradição popular de protesto contra a repressão.

Isso realmente me leva à próxima pergunta; o povo iraniano tem estado sob constante repressão e abusos, como os críticos ponha-lhe por décadas. Mas como eles vêm ter encenado este enorme protesto agora? Não por evidentes abusos, ou mesmo pelo ardor da condição econômica, mas por um valor democrático: seus votos. O que acha, professor Chomsky?

Bem, você pode fazer a mesma pergunta sobre o Shah. Como é que os iranianos fizeram um protesto grande o suficiente para forçar o exército recuar até 1979? Realmente não sei. Quer dizer, protestos populares não são previsíveis. Como é que os povos indígenas do Hemisfério Ocidental, a população mais reprimida entre os povos no hemisfério, não fizeram realmente uma grande revolta na escala que tomou conta do país até 2000, 2005, na Bolívia? Porque não houve um grande movimento dos direitos civis até 1960? Sabe, houve movimentos pelos direitos, mas nada nessa escala. Estas coisas acontecem, e há uma série de fatores que contribuem, e não apenas um. No Irã, por exemplo, houve muita repressão durante os anos 1980, sob Mousavi, de fato, o Irã estava em guerra nesse tempo. Tinha sido atacado pelo Iraque com o apoio dos Estados Unidos e as outras potências ocidentais. Centenas de milhares de pessoas foram mortas por armas químicas e outros crimes. Esso não é o momento de se erguer contra o regime.

Fale sobre o recente levante. Qual o impacto do significado do "voto" e da escolha democrática para forçar os protestos?

Claro, ele tinha muito a ver com isso. Bem, você sabe, não houve protesto em 2005 [contra o resultado das eleições anteriores], talvez um pouco, mas nada nessa escala. Neste [atual] período há, no âmbito de uma grande parte da população, não sabemos muito sobre a estrutura interna, e você pode debater exatamente sobre quem ou como, mas não havia uma expectativa de que esta eleição fosse de alguma forma diferente, que haveria oportunidade de mudança, coisa que certamente uma parte substancial da população deseja. Mas essas esperanças foram frustradas. Os resultados eleitorais, tanto na forma como foram apresentados como nos números apresentados, realmente faltou credibilidade, e muitas pessoas acharam que não houve precisão, de modo que se ergueram em protesto. Mas, prevenir tais protestos nunca foi possível, muitos fatores estão envolvidos. Ninguém que eu conheço esperava o presente caso.

Isso não é novo, tem-se repetido vezes sem conta ao longo da história: O povo protesta, é reprimido, até com tiros, mas novamente volta às ruas. É ainda a votação, por exemplo, no caso do Irã, o que importa tanto? Ou será que se trata de uma espécie de obrigação moral? Qual é a explicação psicológica para isso?

Não creio que se possa generalizar sobre isso. As coisas são diferentes, as situações são diferentes, e as pessoas reagem de forma diferente. Deixem-me dar um exemplo. Veja Intifada na Palestina. Ninguém esperava. A ocupação israelense tinha forças extensas, informações detalhadas sobre a população, sua ocupação, mas não tinha idéia que ia acontecer. A OLP aparentemente não tinha idéia que ia acontecer. Mas depois, quando começou, decolou. E isso durou até que a repressão fosse suficientemente violenta para destruí-la. Essas coisas não são previsíveis ou explicáveis. Elas começam em algum ponto e, em seguida, outros fatores podem se envolver e as demandas podem aumentar. Em alguns casos, são bem sucedidos, também. Tome a Bolívia, que mencionei anteriormente. Houve grandes protestos populares por parte dos indígenas pobres em 2000, e nesse caso foi bem centrado em uma questão específica: o direito à água. Houve esforços de privatizar a água, o que deixaria os preços fora do alcance da população. Foi um ponto de partida, mas isso foi apenas parte de uma acumulação de queixas. O levante aconteceu nesse momento. E depois vieram mais anos de ativismo e organização, que continuaram até que finalmente, em 2005, a maioria indígena, pela primeira vez em 500 anos, desde as invasões, entrou na arena política e ganhou uma eleição.

Por falar de êxito, Sr. Chomsky, o que acha que vai acontecer se os atuais protestos no Irã fracassarem? Qual será o resultado psicológico para os manifestantes? O que acontecerá se vier a sensação de que perderam o jogo? Será que o fato de fazer sua voz ouvida no Irã e no mundo os manterá satisfeitos?

Bem, você sabe, um fato marcante sobre os comentários, desde que as manifestações começaram, é a forma insegura como muitos são feitos, pois partem de pessoas que nada sabem sobre o Irã. De fato, das poucas pessoas que realmente sabem alguma coisa sobre o Irã, a maioria delas fala com muito menos confiança, por boas razões. Agora não vou endossar as confiantes previsões feitas por pessoas que não sabem muito sobre a sociedade iraniana. Mesmo na sociedade em que eu vivo, os Estados Unidos, onde tenho atuado como ativista por toda a minha vida, eu não posso fazer previsões otimistas sobre questões como essa. Com tanta coisa envolvida.

Um último ponto, professor Chomsky, você tem alguma coisa em particular para dizer aos iranianos que estão protestando? Você tem uma mensagem?

Bem, protestem contra a natureza do regime... É um regime clerical, um regime militar. Pondo de lado os detalhes da eleição, sobre os quais não sabemos muito, toda a estrutura do regime é opressiva e autoritária. Mina a base civil e outros direitos humanos. Protestar contra isso é não somente honroso, mas corajoso, porque significa enfrentar violência extrema. Então, sim, eu tenho que honrar o que eles estão fazendo. As pessoas têm diferentes motivações, objetivos diferentes, mas o núcleo fundamental dos protestos é contra a manutenção de presos políticos, contra a repressão, a tortura, a estreiteza clerical, o controle militar, claro, tudo isso deve ser combatido. De fato eu penso que nós deveríamos nos opor a isto nos Estados Unidos, também. Quer dizer, no Ocidente, as pessoas se referem ao Irã como uma democracia controlada. Há algumas liberdades democráticas, mas que estão sob apertado controle. O Conselho de Guardiões, por exemplo, escolhe os candidatos. Mas o que acontece no Ocidente? Nos Estados Unidos, por exemplo, coisa óbvia para qualquer pessoa que estuda o sistema, os candidatos são selecionados pela concentração de poder privado. As eleições são basicamente compradas. Então, temos também uma espécie de democracia controlada. Pois bem, devemos protestar contra isso, também. Não estou dizendo que os Estados Unidos são o Irã, evidentemente não são. Mas há aspectos em todas as sociedades repressivas que conheço, que devem ser repudiados.

fonte: http://www.worldpress.org/Mideast/3391.cfm