sábado, 11 de abril de 2009

Robert Kurz em entrevista a Sonia Montaño


1. O que quer dizer “crítica radical do valor”?

Como se sabe, os marxistas tradicionais do movimento operário só acusavam o capitalismo de privar as assalariadas e assalariados da famosa mais-valia, da qual os proprietários dos meios de produção se apropriavam como se fosse um “poder de disposição”. Esta é uma crítica truncada do capitalismo, que deixa de fora e ontologiza a forma social do valor. Por isso, nesse pensamento, a sociedade socialista pós-capitalista deveria continuar a basear-se na forma do valor e a funcionar como um sistema produtor de mercadorias “planejado”. Como transformação da sociedade, essa concepção fracassou. O problema só pode ser explicado historicamente: o próprio movimento operário e o próprio socialismo estatal ainda faziam parte da história do “modo de produção baseado no valor” (Marx). Tratava-se de uma “luta pelo reconhecimento” no âmbito dessa forma de sociedade não questionada. Ora, a mais-valia só pode ser suplantada juntamente com o valor, e não como planejamento e “distribuição justa” do valor. Isto não é uma questão meramente teórica. Na nova crise do sistema unificado a nível planetário, o próprio valor é desvalorizado pela terceira revolução industrial, na medida em que o “trabalho abstrato” se derrete como sua substância. Nestas condições, há que criticar e abolir o valor como forma básica e, por conseguinte, a produção de mercadorias como tal.

2. O que caracteriza uma sociedade mercantil? O que se deve entender por “mercadoria”? Que relações próprias estabelecem as mercadorias?

O termo “mercantil” só se refere à compra e à venda. Uma sociedade mercantil nem sequer existe. O capitalismo é essencialmente um modo de produção e não um simples modo de circulação. Por isso, a expressão “economia de mercado” induz em erro. Marx já mostrou que a redução da modernidade à circulação de mercadorias constitui o eldorado da ideologia capitalista, porque no mercado só aparecem proprietários “iguais” e “livres” de mercadorias e dinheiro. Porém, a mercadoria tem de ser primeiro objeto de produção, antes de poder tornar-se objeto de circulação. O mercado não é o local de encontro de sujeitos “livres”, mas essencialmente a esfera da “realização” da mais-valia, portanto, da reconversão da forma da mercadoria na forma do dinheiro. Trata-se do movimento do valor, do “sujeito automático” (Marx), de um estado de agregação para outro. A mercadoria não subsiste por si, mas é um estádio da valorização. E os sujeitos do mercado não passam de agentes desse movimento. Mas a produção geral de mercadorias só é possível através da transformação da força de trabalho humana numa mercadoria sui generis, e uma forma geral do valor só é possível através da mais-valia como irracional fim em si mesmo. Justamente neste ponto se mostra que a “socialização negativa” do capital não consiste na “apropriação” subjetiva da mais-valia pelos proprietários jurídicos, mas na própria forma do valor, que só se torna geral mediante o postulado sistêmico da mais-valia. Por trás da “liberdade” formal da circulação, encontra-se a sujeição (originalmente violenta) dos seres humanos ao “trabalho abstrato”. Esta é a relação básica genuína do sistema produtor de mercadorias. E essa relação é levada ao absurdo na terceira revolução industrial. Não é apenas um problema de desemprego e miséria em massa, mas também um problema do próprio capital, que começa a perder a “substância” da sua valorização, por causa da sua própria dinâmica.

3. Como é uma “crítica radical” das categorias fundamentais do capitalismo, como valor, trabalho, mercadoria, dinheiro, Estado, política, democracia e nação?

A crítica do capitalismo até hoje não foi uma crítica categorial, isto é, as categorias fundamentais da modernidade produtora de mercadorias foram vistas de maneira afirmativa, e não crítica. A ontologização do valor acarretou a ontologização de suas formas categorias de aparição e representação. O Estado, a política, a democracia e a nação não foram decifrados como o “outro lado” da socialização negativa pelo valor e como partes integrantes deste valor, mas foram erradamente entendidas como categorias de dominação dos males do capitalismo. Ora, o homo politicus é apenas o alter ego do homo oeconomicus; deve-se suplantar, juntamente com o valor, também sua esfera político-democrática. A crítica categorial, porém, vai mais longe, pois o capitalismo não é apenas um modo de produção e um sistema estatal de regulação (que atualmente, junto com o valor, atinge os seus limites na globalização), mas também um modo de reprodução e de vida. Assim sendo, a relação moderna entre os sexos desempenha um papel decisivo, pois todos os momentos da reprodução social que não são absorvidos pelo “trabalho abstrato”, valor e Estado ou política são dissociados da socialidade oficial e delegados nas mulheres (tarefas familiares, cuidado dos filhos etc., mas também – atravessando todas as esferas – as funções sociopsíquicas da “empatia” e do “trabalho do amor” de conotação feminina, sem as quais a convivência social não é possível na concorrência universal). A relação de valor e “trabalho abstrato” é, portanto, ao mesmo tempo uma relação de dissociação entre os sexos, a qual é tão essencial e categorial como o próprio valor. Também essa relação de dissociação entre os sexos está decaindo sob as condições atuais da crise, como se mostra nas “confusões dos sexos” e nos processos de barbarização do quotidiano.

O objetivo da crítica radical do valor é, portanto, uma sociedade para lá do “trabalho abstrato”, do valor, do mercado, do Estado e da dissociação entre os sexos. Naturalmente, isso levanta problemas enormes, pois há séculos que os seres humanos têm sido “socializados dentro” destas categorias e as internalizaram. Por isso, não existe um caminho direto para fora da ordem existente, mas há necessidade de um processo de mediação histórica. Mediação significa que é preciso encontrar uma nova relação entre lutas imanentes por dinheiro, serviços estatais etc., resistência social contra a administração capitalista da crise, por um lado, e os objetivos da crítica categorial, por outro. Trata-se, de certa maneira, do antigo problema da relação entre “caminho e destino”, mas sob condições novas e com um modus de crítica inteiramente diferente, mais profundo.

Aqui se inclui também a percepção de que já não existe uma simples oposição a um inimigo concebido de maneira meramente externa (“o capital”), mas que nós todos/as somos, também no nosso íntimo, “o capital”. Isso significa que também no interior dos movimentos sociais há contradições que precisam de ser resolvidas, e não ignoradas. Assim, a dissociação entre os sexos também está atuante e precisa de ser criticada nos movimentos sociais; por exemplo, quando o ônus da crise é, “como que naturalmente”, descarregado sobre as mulheres e são revogadas as conquistas do movimento feminista. Também ideologias como o nacionalismo, racismo e anti-semitismo permeiam as contradições sociais e são explícita ou implicitamente virulentas entre os “humilhados e ofendidos” deste mundo. A necessária crítica da ideologia não deve passar para trás duma predominância abstrata da “questão social”; da mesma maneira que os contrastes materiais na situação social de grupos diversos (por exemplo, de migrantes, por um lado, e trabalhadores da própria nacionalidade que estão em situação precária, por outro) não devem ser subsumidos sob a generalidade dessa “questão social”. Pelo contrário, as tensões e diferenças devem ser suportadas e digeridas criticamente. Um movimento social comum não surge como postulado abstrato, mas apenas como resultado desta confrontação.

A teoria da crítica radical do valor e da dissociação pode mostrar, no processo da mediação, um novo objetivo histórico e analisar o terreno da crise global, para, através dos distintos movimentos, lutas sociais, tensões e diferenças, não perder de vista a totalidade negativa e dar a orientação de “grande fôlego”. Ela não pode, porém, fornecer cômodas “instruções de uso” como esquema para a ação; tal noção seria “falsa imediatez” (Adorno). O que constitui a debilidade dos movimentos sociais da atualidade é justamente o fato de continuarem amplamente apegados a concepções anacronísticas e estarem fixados na “falsa imediatez”.

4. Essa crítica radical também é uma crítica da moderna metafísica real, dos fundamentos do iluminismo, da vida quotidiana? Em que sentido?

A modernidade produtora de mercadorias tem de si mesma a idéia de que teria suplantado a metafísica. O próprio valor, porém, constitui uma “metafísica real”, uma “forma vazia” que não pode ser apreendida pelos sentidos, que é transcendente em relação às necessidades sociais e aos conteúdos qualitativos. O superficial universalismo dessa forma é, ao mesmo tempo, estruturalmente masculino (androcêntrico), e o sujeito moderno é, originariamente e pela sua essência, um sujeito masculino, branco e ocidental. O valor e seu sujeito não surgiram apenas num processo histórico “objetivo”, mas, ao mesmo tempo, mediante a afirmação ideológica e o direcionamento da consciência social. O fundamento de todas as teorias e ideologias modernas é a filosofia do iluminismo, que, como “mãe de toda reflexão afirmativa” (até no marxismo tradicional), contribuiu substancialmente para a formação do sistema produtor de mercadorias global. Por isso, a crítica radical do valor e da dissociação precisa de incluir também uma crítica radical do Iluminismo. Não se trata, contudo, de uma crítica no sentido do contra-iluminismo conservador e da antimodernidade irracional, mas de uma crítica às raízes do pensamento moderno, fixado na metafísica real do valor.

O Iluminismo contribuiu de várias formas para que a lógica do valor e da dissociação fosse internalizada pelos seres humanos. Assim, ele não só propagou um “disciplinamento” externo para as exigências do “trabalho abstrato”, mas também esboçou um programa para o “autodisciplinamento” interno dos indivíduos, que funciona até hoje. Ao mesmo tempo, ele produziu aquela fixação ideológica na circulação (no mercado e em seus sujeitos), que tem determinado até hoje uma compreensão errada de “liberdade” e “igualdade”, mesmo na esquerda. Por fim, ele flanqueou ideologicamente o caráter androcêntrico do universalismo moderno; sua filosofia é estruturalmente “masculina” e esconde os momentos dissociados também conceptual e teoricamente. Na obra de Foucault pode encontrar-se material abundante e uma reflexão crítica sobre as “máquinas de disciplinamento” construídas no Iluminismo. Foucault, porém, fica a meio caminho da crítica do Iluminismo. Em sua legítima repulsa do mecânico marxismo de partido dos anos sessenta e setenta, ele entende erradamente a questão da forma social como “economismo”. Assim, sua crítica do Iluminismo só chega a um conceito positivista dos mecanismos de uma “produção da verdade” contingente, o qual já não tem qualquer relação com a lógica do valor e da dissociação entre os sexos como formação social histórica.

Naturalmente, a crítica do valor também é uma crítica da vida quotidiana determinada por ele. A “abstração real” social atingiu, no processo da modernização capitalista, todas as esferas da vida, da arquitetura, da estética e da cultura até dos hábitos alimentares (agro-business, fast food) e das relações pessoais. A nova crise global acelera a libertação do “indivíduo abstrato”, no qual, ainda assim, a dissociação entre os sexos continua em ação. O valor e a concorrência universal a ele associada penetram até a intimidade e destroem todos os vínculos. As pessoas tornam-se susceptíveis e auto-referenciadas; o caráter narcisista e histérico pessoal e social dissemina-se em todas as situações sociais. A histericização da sociedade da crise nem sequer se detém diante da política, da ciência, dos grupos de crítica teórica, e nem mesmo do amor e da amizade. A denúncia pessoal e a ruptura pessoal substituem em toda parte a discussão do conteúdo. Sentimentos de concorrência, medo da ligação e do “compromisso”, disposição psicodinâmica abstrata para o conflito em todos os sentidos e ânsia de “validação” pessoal ameaçam submergir qualquer conteúdo e até a própria crítica radical. Mesmo conteúdos teóricos e até os próprios sentimentos para com outras pessoas não passam de fichas de jogo intercambiáveis na “luta pelas posições”. Os indivíduos tornam-se tão imprevisíveis como o clima e os mercados financeiros. Essa tendência sociopsíquica é socialmente condicionada e só pode ser suplantada no processo da revolução social, e não pela pedagogia, nem pelo controle social coercivo, na retorta de projetos neo-utópicos de “reforma da vida”. Não obstante, é preciso descobrir como se pode opor resistência a essa tendência da crise interna do sujeito dentro dos movimentos sociais e dos grupos de reflexão teórica, para manter a capacidade de ação na crítica teórica e prática das relações em geral.

5. O que devemos assumir de Marx e por que é necessário ir além dele?

A análise e a exposição de Marx das leis internas do movimento do valor, do “sujeito automático” da modernidade, continuam a ser o fundamento inultrapassado e o ponto de partida de nossa crítica. Na presente crise mundial Marx é mais atual do que nunca. O que precisamos assumir dele, porém, são justamente aqueles aspectos de sua teoria que foram negligenciados, reduzidos ou silenciados pelo marxismo tradicional do movimento operário. Naturalmente, isso diz respeito sobretudo à crítica do valor, que está efetivamente presente no pensamento de Marx, e ao aspecto de sua teoria da crise com ela relacionado, que vai mais fundo que os debates marxistas posteriores sobre o conceito de crise. Mas no próprio Marx também se encontram pontos de conexão para as interpretações tradicionais. Por isso, a nova crítica do valor fala do “duplo Marx”. Marx foi, por um lado, um crítico radical do moderno sistema produtor de mercadorias e, por outro, um teórico positivo da modernização, que ele compreendia como “progresso necessário”. Por isso, tampouco se deve visar, em estilo neo-ortodoxo, descobrir o “verdadeiro Marx”.

Como toda e qualquer teoria, também a teoria marxiana tem seu “núcleo temporal” (Adorno). A reflexão de Marx foi muito além de seu tempo, e, não obstante, ficou simultaneamente presa nesse tempo. Essa prisão pode ser identificada principalmente em quatro pontos, que constituem um nexo interno. Em primeiro lugar, Marx manteve o paradigma iluminista da filosofia da história e da sua metafísica do “progresso”, embora, por outro lado, ele tenha criticado a ideologia iluminista dos sujeitos “livres” e “iguais” da circulação, bem como a ilusão, a ela associada, da política (principalmente o jovem Marx). Em segundo lugar, Marx criticou, diferentemente da maioria dos marxistas, o “trabalho abstrato”, mas permaneceu ambíguo nessa crítica e insistiu, ainda assim, num conceito universalista, transhistórico, geral e abstrato de “trabalho”; também neste sentido se mostra a herança ainda não-suplantada do Iluminismo e do protestantismo. Em terceiro lugar, foi justamente o Marx “positivo”, teórico da modernização, que entendeu erradamente, nos moldes de uma “ontologia do trabalho”, a “classe operária” e a “luta de classes” como alavanca da libertação social, ao passo que, na verdade, tratava-se aí apenas da autolegitimação dos portadores de “trabalho abstrato” dentro do valor, cuja “luta por reconhecimento”, como sujeitos jurídicos e civis no capitalismo, era um movimento de integração na “jaula de ferro” (Max Weber) da modernidade, que excluía qualquer crítica categorial. Marx, como “duplo Marx”, queria associar a “luta de classes” à crítica categorial, com base no “trabalho” ontologizado universal; mas isso não podia dar certo, como o demonstrou na prática o desenvolvimento histórico da social-democracia e do movimento operário. Por fim, em quarto lugar, como “homem do século XIX”, Marx não podia perceber a dissociação entre os sexos como momento essencial da socialização negativa por meio do valor; também neste ponto, sua teoria não foi além do universalismo androcêntrico do Iluminismo. Por isso, é necessário ir além de Marx, não para rejeitar sua teoria crítica, mas sim para transformá-la e desenvolver uma teoria nova, que vá mais longe e esteja à altura da crise planetária atual.

6. Em que sentido se pode afirmar que somos prisioneiros/as do fetichismo?

O conceito de fetichismo é uma parte imprescindível dos aspectos da teoria marxiana que são assumidos e aprofundados pela crítica radical do valor. Não é por acaso que o marxismo tradicional não sabia bem o que fazer com a concepção marxiana de fetichismo, pois este conceito remete ao “a priori” tácito do relacionamento social, fora do alcance de qualquer reflexão positivista, ao caráter transcendental do “sujeito automático”, que permeia todas as classes sociais e filtra ou forma previamente todo o pensar e agir. O caráter fetichista da reprodução social significa que os seres humanos não moldam conscientemente seu próprio relacionamento social e não utilizam seus próprios recursos e capacidades mediante um acordo livre; pelo contrário, estão submetidos a um meio que eles mesmos produziram, mas que se tornou autônomo em relação a eles. Esse meio, que na modernidade é o valor e a sua forma de aparição, o dinheiro, comanda a reprodução social numa auto-regulação cega (“segunda natureza”). A compreensão moderna de razão produzida pelo Iluminismo está totalmente presa a essa auto-regulação do meio-fetiche; ela contém só uma razão historicamente específica, talhada para a forma da mercadoria e em sua essência destrutiva. O irracionalismo moderno defendido pelas correntes do contra-iluminismo burguês constitui apenas o reverso desta razão e é um derivado do próprio Iluminismo. A crítica categorial, como crítica do fetichismo moderno, é uma crítica do nexo interno entre a razão moderna e o irracionalismo moderno; ela tem que desembocar numa “outra razão”, portanto desenvolver uma “contra-razão”, contra a razão fetichisticamente constituída do sistema produtor de mercadorias.

Nós só somos prisioneiros do fetichismo na medida em que, sob as condições dominantes, a reprodução de toda a nossa vida prática está à mercê da “razão irracional” do fetiche da mercadoria e do capital. O robô cego do “sujeito automático” obriga-nos a “trabalhar” para o nosso próprio naufrágio. A racionalidade da economia empresarial solapa os fundamentos da vida humana ao “externalizar” permanentemente custos, assim destruindo a biosfera em grau crescente. Pela mesma razão, recursos pessoais e materiais são desativados, independentemente de necessidades materiais e sociais, logo que deixem de satisfazer o critério fetichista da rentabilidade do capital. Embora existam capacidades humanas, meios de produção e conhecimento suficientes, eles não podem ser utilizados livremente, mas estão sujeitos às restrições da forma social fetichista. A produção da “riqueza abstrata” (Marx) leva ao empobrecimento das massas. Isso, entretanto, não é um antagonismo exterior de interesses, mas mesmo os pobres trabalham também para o seu próprio empobrecimento, ao só articularem suas necessidades materiais e sociais na forma social do valor, portanto na forma do fetichismo. Essa contradição, que já era sucessivamente intensificada nas crises periódicas do capitalismo e depois relativamente suplantada por novos surtos de acumulação do capital, adquire uma dimensão existencial na crise global da terceira revolução industrial, porque já não há acumulação real sustentável do capital. Ou se rompe o fetichismo da forma social ou a vida da sociedade será “desativada” de maneira cada vez mais catastrófica.

7. Qual seria, em sua opinião, o aspecto essencialmente novo do livro de Anselm Jappe “As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor”, publicado em português?

Em seu livro, Anselm Jappe resume sistematicamente pela primeira vez os resultados da crítica radical do valor até finais dos anos noventa, que estavam espalhados por muitas publicações avulsas; e fá-lo numa síntese bem autônoma, que se atém estritamente ao processo em que a crítica do valor foi originalmente elaborada, a partir do marxismo tradicional. Poder-se-ia, por isso, dizer que se trata de uma “introdução à crítica do valor para marxistas”, que torna mais fácil que todas as pessoas ainda presas ao paradigma tradicional da crítica do capitalismo entendam melhor o andamento da argumentação da crítica do valor e se apropriem dele. Pois esse processo não acontece só uma única vez, ficando então encerrado, mas repete-se no caso de muitos indivíduos interessados na crítica radical da sociedade, e de maneira sempre nova, em novas constelações, continuando a própria teoria crítica do valor e da dissociação a desenvolver-se sempre. No entanto, essa exposição sistemática também é útil para as gerações mais jovens, que já não conhecem o marxismo dos anos setenta. Ela possibilita a essa gente mais jovem ler a teoria de Marx já com os novos olhos da crítica do valor e, por assim dizer, deixar de lado a compreensão tradicional que se tornou obsoleta. Assim, os conceitos do valor como “abstração real”, do fetichismo e da “riqueza abstrata”, a crítica do falso universalismo do “trabalho”, a nova teoria da crise da crítica do valor e a “metafísica real” do moderno sistema produtor de mercadorias são apresentados e fundamentados com muita clareza. A teoria da dissociação entre os sexos, a crítica do sujeito masculino, branco e ocidental e a crítica do Iluminismo só perifericamente são inseridas no livro; mas esses aspectos serão explicados e expostos com mais detalhe num próximo projeto que tem o título provisório de “As aventuras do sujeito”.

Importante no livro de Anselm Jappe é também o capítulo final, em que ele se confronta com os “falsos amigos”. Desse modo, Jappe critica a crítica truncada do capitalismo existente no movimento antiglobalização e seus “fóruns sociais”, que reduz a relação do capital à sua atual fenomenologia “neoliberal” e no fundo só quer voltar a formas de regulação keynesiana (ou a ideias socialistas tradicionais). Ele também se confronta com concepções neo-utópicas de uma “troca sem dinheiro” que são propagadas (em parte, recorrendo aos trabalhos de Marcel Mauss sobre a “dádiva” em sociedades pré-modernas) nas ideias sobre “cooperativas livres” e no movimento do “software livre”. Nelas se entende o capitalismo mais uma vez erradamente como simples modo de circulação ou “economia de mercado”; trata-se de ideias insuficientes de uma circulação sem forma de mercadoria, que até poderiam ser apropriadas para uma instrumentalização por parte da administração da crise, nos termos de um fomento de subsistências econômicas em forma de nichos de “economia informal”. Por fim, Jappe critica também a ideologia do pós-operaísmo de Michael Hardt e Antonio Negri, que adquiriu proeminência nos últimos anos e que, com seus conceitos de “trabalho imaterial” e “multidão”, não atina com qualquer crítica categorial e aparece em trajes pós-modernos como “a última mascarada do marxismo tradicional” (Jappe). Tais críticas são necessárias, pois, assim como a crítica radical do valor e da dissociação não surgiu na torre de marfim teórica, mas, de certa maneira, no “corpo a corpo” da luta teórica por uma nova compreensão da crítica, também ela tem de se confirmar constantemente e sempre de novo nesse “corpo a corpo”; o processo de formação da teoria só pode avançar na confrontação (também polêmica).

8. O livro convida a “procurar o quarto no qual estão guardados os segredos de que depende a humanidade inteira”. Que segredos são esses e que quarto é esse, afinal?

Anselm Jappe escolheu a bela metáfora do “quarto proibido” do mundo dos contos de fada onde são guardados os “segredos” que não devem ser conhecidos. Esse quarto não é senão o lugar da reflexão crítica, que se encontra além do pensar e do agir quotidianos no mundo pré-formado pelo capitalismo. E os segredos consistem na constituição desse mundo, no “a priori tácito” das relações, portanto nos pressupostos, que no decurso de um processo histórico foram internalizados como se fossem “evidentes” e parecem ser dados pela natureza, embora tenham sido feitos pelos próprios seres humanos – mas, de certa maneira, estando cegos e sem consciência “sobre” este agir. Trata-se, por outras palavras, daquele fetichismo que determina o pensar e o agir e que já não aparece como resultado de um desenvolvimento que também poderia ser suplantado de novo, mas sim como ontologia inultrapassável. De tal modo que se pode dizer que a crítica social tradicional ainda não ousou penetrar no “quarto proibido” e tocar naqueles segredos.

Isso também diz respeito à teoria da história, pois as sociedades pré-modernas (agrárias) não tinham, assim como não tem a modernidade, uma relação consciente, direta consigo mesmas, com suas próprias possibilidades e recursos. Também elas eram comandadas pelos media constituídos fetichisticamente, só que por outros media e de outra maneira. O que é o valor na modernidade era Deus na pré-modernidade; o que é o meio “objetivado” e metafisicamente carregado da mercadoria e do dinheiro na modernidade eram pessoas metafisicamente carregadas como representantes de Deus na pré-modernidade. O valor não é Deus, e o capitalismo não é a continuação da religião por outros meios, como pretende Walter Benjamin, por exemplo, mas trata-se de uma constituição histórica totalmente nova. Entre ambos os mundos abrem-se abismos, após uma profunda ruptura histórica. Ainda assim, a crítica radical consegue perceber um momento negativo de continuidade, a saber, aquela inconsciência em relação a um “a priori tácito” (que é bem diferente em cada caso) da vida social e da reprodução, que, de modo geral, designamos geralmente como relação de fetiche. Assim sendo, a crítica radical do valor fala de uma “história de relações de fetiche”.

Naturalmente, esse conceito da teoria da história é, ele próprio, inevitavelmente um conceito moderno, pois não podemos saltar para fora de nossa localização na história. Isso, entretanto, é uma aporia necessária à qual todo pensamento sobre a teoria da história está necessariamente sujeito. Ao contrário, porém, da moderna filosofia clássica da história depois de Hegel, da qual também ainda faz parte o “materialismo histórico” marxista, a teoria da história da crítica do valor e da dissociação já não é uma teoria positiva nos moldes de uma metafísica do “progresso” ontologicamente ancorada, que acentua unilateralmente o momento “da história universal” da continuidade, mas uma teoria negativa, que possibilita uma dialética de continuidade e descontinuidade. Nós vemos a história inexoravelmente com olhos modernos, mas com os olhos da crítica a essa história e não com os olhos da afirmação. Essa crítica vai além da tradicional teoria marxista da história, que ainda pressupunha a existência de um continuum positivo de “trabalho” e “progresso” e, com isso, só prolongava a filosofia burguesa da história. O conceito negativo de uma “história de relações de fetiche” implica, pelo contrário, uma “ruptura ontológica” com toda a história anterior, pois com a suplantação da relação moderna de valor e dissociação suplanta-se o fetichismo em geral. Só com isso se cumpre a afirmação marxiana de que o fim do capitalismo é simultaneamente o “fim da pré-história”.

Na teoria da história da crítica do valor e da dissociação está contido, assim, um “superávit crítico” que produz o necessário impulso para a ruptura com a falsa ontologia da modernidade. Embora a teoria burguesa da história, que se estende até a pós-modernidade, tenha entrementes ela própria criticado o continuum de uma “história universal do progresso” positiva, ela só o fez num processo de decadência teórica, em que se acentua a descontinuidade de maneira tão unilateral e não-dialética como antes se acentuava a continuidade. A “metafísica do progresso” só foi substituída por uma “metafísica da contingência” (e da mera descontinuidade) de caráter inverso, que, é claro, deve-se efetivamente ao olhar moderno e é completamente afirmativa. Entretanto, essa afirmação acontece sob o ponto de vista da crise, e já não sob o ponto de vista da ascensão histórica da modernidade. Por trás da aparente “metafísica da contingência” está à espreita uma ontologia rígida e ahistórica, por exemplo, a ontologia do “poder” no pensamento de Foucault, tomada da “ideologia alemã” de Nietzsche a Heidegger. Assim não se atina com o “superávit crítico” no sentido de uma “ruptura ontológica”, e com isso também se perde de vista em última análise a relação de fetiche específica da história da modernidade.

9. As ideias de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo ainda são atuais?

Elas são até mais atuais do que nunca. Debord, no seu tempo, tinha em vista principalmente o meio “espetacular” televisão, ao constatar um desenvolvimento do fetichismo moderno que chegaria a um “grau de acumulação do capital” em que ele “se torna imagem” e substitui inteiramente o “mundo sensorial” por uma “seleção de imagens”. Isso, naturalmente, não se refere apenas à simples tecnologia mediática, mas a uma nova qualidade da “subsunção real sob o capital” (Marx), uma subsunção não só dos processos de produção, mas da totalidade da vida e da totalidade da experiência, a uma fetichização de todas as relações até à intimidade, a que já aludi acima, como sujeição de todas as esferas da vida à “abstração real” do valor e como libertação do “indivíduo abstrato”. A isso corresponde uma “mediatização do quotidiano” em que os meios técnicos de comunicação não se autonomizam per se, mas em seu caráter inscrito de mercadoria e, de certa maneira, duplicam o fetichismo da forma da mercadoria. Esse desenvolvimento intensificou-se dramaticamente com as novas tecnologias de comunicação da terceira revolução industrial. Agora já não se trata de modo nenhum apenas da crua técnica, mas sim de uma “virtualização” geral do mundo da vida, como se pode ver na omnipresença de telemóveis, SMS etc. e principalmente da Internet. Isso anda de mãos dadas com a virtualidade do novo capitalismo financeiro, que se desacoplou da acumulação real do capital, como fenômeno da crise. No “virtualismo” do pensamento pós-moderno, todo esse processo foi ideologizado e, em parte, até entendido erradamente como emancipação. Mas ele não é outra coisa senão uma expressão da crise do sujeito, na qual se reproduz como fenômeno da consciência o limite interno do moderno sistema produtor de mercadorias. Pode-se, por exemplo, observar como, mediante a comunicação por correio eletrônico em grupos de toda espécie, são “cozinhados” conflitos de maneira inacreditavelmente rápida e irrefletida e com frequência cada vez maior, porque a conversa é apenas simulada e nem sequer existe um interlocutor real, com o qual a gente tivesse de se envolver. Todas as conversas já são apenas solilóquios. A individualização, mediatização e virtualização na forma fetichizada do valor constituem, assim, uma unidade negativa, na qual a inflação dos sistemas de comunicação contribui para o isolamento auto-referencial dos indivíduos.

10. Existem atualmente relações entre a sociedade do espetáculo e as aventuras da mercadoria?

A sociedade do espetáculo “é” a aventura da mercadoria no estado do seu obsoletismo histórico. Em Debord, que pode ser considerado precursor da crítica radical do valor, ainda não se encontra, contudo, um conceito novo da crise, que só apareceu na esteira da terceira revolução industrial. Ele entende erradamente a mediatização e a virtualização como aquele “novo grau de acumulação”, ao passo que, na realidade, elas andam de mãos dadas com a real “dessubstancialização” e desvalorização do valor. A isso se associa a crise da relação de dissociação entre os sexos e da “luta de classes” tradicional; também disso Debord ainda não tem noção. O que constitui a dialética paradoxal da sociedade do valor e da dissociação que se transmutou em espetáculo é o fato de que a consumação e libertação da individualidade abstrata são idênticas ao esvaziamento do valor e ao limite absoluto da acumulação. Os indivíduos são mais sujeitos do valor na mesma medida em que deixam de poder ser sujeitos do “trabalho”. Disso resulta uma enorme tensão, que se descarrega em formas de comportamento destrutivas e envenena cada vez mais o quotidiano. A crítica radical do valor e da dissociação entre os sexos precisa de aprender a lidar com essa tensão para que ela própria não se perca no turbilhão da crise espetacular.

Original Robert Kurz: Interview mit Sonia Montaño, IHU-Online-Zeitschrift, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasilien), 3.7.2006 http://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=271

Publicado na Revista IHU On-Line, nº 188, 10.07.2006, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil http://www.unisinos.br/ihu/boletim/edicoes/boletim00188.pdf

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