Robert Kurz critica o sociólogo alemão Ulrich Beck e a flexibilização do trabalho
Fonte: Folha de São Paulo, 11 de julho de 1999
Há muito não é mais segredo que o mundo altamente industrializado ou mesmo "pós-industrial" do Ocidente assume cada vez mais traços do chamado Terceiro Mundo. Não foram os países da periferia capitalista que se acercaram do nível social das democracias ocidentais do "Welfare State", mas justamente o contrário, a depravação social nos antigos centros capitalistas dissemina-se como um vírus. Porém não se trata somente do progressivo desmantelamento dos sistemas de previdência social, não se trata somente do aumento do desemprego estrutural de massas.
Além disso, entre o emprego formal e o desemprego também cresce um setor difuso, que já é velho conhecido dos países do Terceiro Mundo e que, nas sociedades marcadas pelo "apartheid" social de uma minoria que toma parte no mercado globalizado, ganhou o rótulo de "economia informal" dos excluídos, os quais vegetam abaixo do nível de miséria. Os camelôs nas calçadas, os garotos que limpam pára-brisas nos cruzamentos, a prostituição infantil ou o sistema semilegal de reaproveitamento de sucata e lixo compõem essa categoria.
Em menores proporções, esses fenômenos também passaram a integrar o dia-a-dia do mundo ocidental, sendo mais evidentes nos países anglo-saxões, com o seu radical liberalismo econômico de matiz clássico. Mas ainda se acham em gestação novas formas híbridas entre o emprego formal e as relações de trabalho precárias.
Como há 20 anos o nível do salário real diminui de forma contínua (com particular virulência nos Estados Unidos), a renda do salário oficial não basta mais para financiar um padrão de vida "normal" com moradia, carro e seguro de saúde. É preciso, assim, buscar relações de emprego suplementares. Dois ou três empregos por pessoa são quase a regra. O operário de uma fábrica, após o expediente, dá um pulo em casa para um rápido jantar e em seguida entra de serviço como vigilante noturno em outra empresa; de sono restam só poucas horas. No fim-de-semana ele trabalha ainda de garçom num restaurante sem salário fixo, contando apenas com as gorjetas. Com esforço sempre maior e à custa da ruína de sua saúde, mantém-se a fachada da normalidade.
Outro fato que multiplica essa nova espécie de biografia do rendimento incerto é serem as pessoas obrigadas, em número cada vez maior, a trabalhar abaixo de sua qualificação. Para as atividades que efetivamente exercem, elas são "superqualificadas", sua proficiência não é mais absorvida pelo mercado. Desde o início dos anos 80, com o advento da revolução microeletrônica e com a crescente crise das finanças estatais, uma formação acadêmica não é mais garantia de um posto de trabalho correspondente. Muitos cargos qualificados no âmbito estatal foram extintos, por falta de financiamento. No mercado livre, por outro lado, as qualificações caducam com uma rapidez vertiginosa e, como "fogo de palha" que são, logo perdem seu valor. O ciclo acelerado das conjunturas, das inovações, dos produtos e da moda abarca não somente a esfera técnica, mas também a cultura, as ciências humanas e a prestação de serviços.
Nesse processo social, uma parte crescente da intelectualidade acadêmica foi degradada. O "eterno estudante", o estudante de matrícula trancada que tira seu sustento fazendo bicos em atividades menores, a estudante de literatura inglesa aos 30 anos desempregada, com seu inútil diploma de doutora, esses casos não são mais raridade. Em todo o mundo ocidental, o taxista graduado em filosofia tornou-se o emblema de uma carreira social negativa. Formou-se um novo círculo, bem mais abrangente do que a antiga boêmia. Historiadores diplomados trabalham em fábricas de pão de mel, professoras desempregadas tentam a vida como "babysitter", juristas supérfluos vendem produtos culturais indianos.
Muitas pessoas com passado intelectual arrastam-se vida afora, com seus 30, 40 anos de idade, em projetos intelectuais difusos, semi-estudantis, e flutuam em suas atividades entre o emprego de entregador de mercadorias, o jornalismo de ocasião e experiências artísticas improdutivas. A questão profissional gera um progressivo embaraço. Já em 1985, dois jovens autores alemães, Georg Heizen e Uwe Koch, publicaram um romance "cult", cujo herói assim descreve esse novo sentimento de precariedade: "Não sou pai, nem marido, nem membro do Automóvel Clube. Não sou pessoa de mando nem autoridade, não disponho de conta bancária. Sou versado em assuntos intelectuais, dos quais hoje se faz cada vez menos uso. Estou excluído da circulação das ofertas".
Se talvez dez ou 15 anos atrás essa forma de existência equívoca ainda soava algo exótica, hoje ela se transformou em fenômeno de massas. O sociólogo alemão Ulrich Beck apurou que "o sistema padronizado de emprego começa a esmorecer". As fronteiras entre emprego e desemprego tornam-se lábeis. As palavras de ordem do novo sistema de emprego, um sistema disperso e confuso, são "flexibilização" e "subemprego múltiplo". Há muito não se encontra mais apenas uma inteligência acadêmica, excluída e supérflua, nesses meios de emprego flexibilizado. Antigos carpinteiros, cozinheiras, desenhistas técnicos, cabeleireiros, costureiras ou enfermeiros também se transformaram em subempregados de função múltipla e sem emprego fixo.
Todos fazem algo diverso daquilo que estudaram. Qualificações, profissões, carreiras, currículos e status social precisos e inequívocos fazem parte do passado. Isso é mais do que a simples oscilação constante entre emprego remunerado e desemprego, como hoje é natural para vários milhões de pessoas nos Estados industrializados do Ocidente. Trata-se também da permanente alternância entre qualificações, atividades e funções já conhecidas, uma espécie de vaivém entre os ramos sociais do trabalho, que se modificam com rapidez cada dia maior sob a pressão dos mercados.
Ainda havia esperanças, nos anos 80, de que a nova tendência de flexibilização das relações de trabalho talvez pudesse ser dobrada para fins emancipatórios, permitindo que não se seguissem mais padrões esclerosados, que se descobrissem, apesar das pressões sociais, novas possibilidades e novos modos de vida. O indivíduo flexível deveria ser o protótipo daquele que não se submete mais incondicionalmente às injunções do trabalho e do mercado, daquele que, por conquistar um tempo livre para a ação independente e autônoma, é capaz de definir livremente seus objetivos. Falava-se de "pioneiros do tempo", que ganhariam a "soberania do tempo" para usá-lo em benefício próprio, criando formas de vida alternativas à polarização mecânica entre o "trabalho" imposto por outrem e o "lazer" orientado para o consumo.
Tais idéias lembram um pouco os escritos de juventude de Karl Marx, que, numa passagem famosa, previu para o futuro comunista o fim da opressiva divisão do trabalho: "A divisão do trabalho nos oferece o exemplo de que, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, a própria ação do homem torna-se para ele um poder alheio e adverso, que o subjuga. É que, tão logo o trabalho começa a ser dividido, cada um tem um determinado círculo exclusivo de atividades, do qual não pode sair, ao passo que, no comunismo, a sociedade regula a produção geral e justamente por isso permite-me fazer hoje isso, amanhã aquilo, de manhã caçar, à tarde pescar, à noite pastorear o gado, depois do jantar fazer crítica, com bem me aprouver, sem jamais ter de tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico".
A velha imagem romântica do jovem Marx, completando exatos 150 anos de existência, infelizmente não tem mais nada a ver com a nossa nova realidade flexibilizada. Afinal não vivemos mais numa sociedade com veleidades comunistas, que, para além do capitalismo burocrático de Estado, hoje em franco declínio, partiria em busca de novos horizontes de emancipação social.
Otimistas da flexibilização como Ulrich Beck ou o filósofo social francês André Gorz tomaram o bonde errado, pois quiseram desenvolver os potenciais de uma nova "soberania do tempo" individual em coexistência pacífica com o modo de produção capitalista. Depois de toda a crítica radical da ordem reinante ter sido abandonada, não existia mais nenhuma possibilidade de utilizar a tendência social imanente para fins emancipatórios. Em razão disso, a luta para dar à flexibilização contornos sociais já estava decidida antes mesmo de começar.
As idéias esperançosas de uma suposta determinação autônoma do fluxo temporal em nichos sociais referiam-se, em todo caso, apenas a certas formas de trabalho de jornada parcial, que além do mais, segundo a teoria de Gorz, deveriam ser patrocinadas socialmente pelo Estado, para afiançar uma segura "receita básica" na forma de moeda e possibilitar com isso as atividades paralelas, estas sim de livre escolha.
Essa teoria, bem intencionada mas banguela, sempre fez pouco da realidade das pessoas que, sob a pressão do crescente dumping social, são forçadas a trabalhar em dois ou três empregos quase 24 horas por dia. Como hoje, a exemplo de antes, ainda existe aquela "cisão entre o interesse particular e o comum" -leia-se: concorrência cega nos mercados anônimos, que teóricos como Beck e Gorz não põem mais em questão-, o potencial da produtividade incrementada também não pode mais ser utilizado em proveito da "soberania do tempo" dos indivíduos. Em vez disso, o capitalismo neoliberal desembestado impôs ditatorialmente a flexibilização, viabilizando de forma exclusiva sua filosofia econômica da redução de custos a todo preço.
Suprimem-se as jornadas de trabalho padronizadas, mas não no interesse dos trabalhadores. Amplia-se o "trabalho à disposição", conforme o volume das encomendas e em turnos variáveis. Exige-se também maior mobilidade espacial da força de trabalho, em prejuízo de seus próprios interesses vitais. Há tempos, centenas de milhões de pessoas são forçadas a migrar para outros países e continentes em busca de trabalho. Latinos saem à cata de emprego nos Estados Unidos, asiáticos, nos emirados do Golfo, europeus do sul e do leste, na Europa central.
Na China e no Brasil há enormes migrações internas. Sob o ditado da globalização, reforçou-se essa tendência à mobilidade espacial da força de trabalho, atingindo até mesmo os centros ocidentais. Na Alemanha, por exemplo, as delegacias de trabalho podem exigir de um desempregado que aceite um emprego a 100 km de sua residência e "visite" sua família só nos fins-de-semana. No interesse de sua carreira, empregados laboriosos vêem-se cada vez com mais frequência na obrigação de trocar de cidade, de país ou de continente em que prestam seus serviços. As pessoas transformam-se em nômades do mercado, incapazes de criar raiz social.
Da flexibilização também faz parte a constante alternância entre empregos subordinados e "autônomos". As fronteiras entre o trabalho assalariado e a livre iniciativa perdem a nitidez, mas isso também em detrimento dos trabalhadores. Na esteira do "outsourcing" surgem cada vez mais pseudo-autônomos sem organização empresarial própria, sem capital próprio, sem colaboradores e sem a célebre "liberdade empresarial", já que dependem de um único cliente a maioria da vezes sua antiga empresa, que desse modo poupa a contribuição previdenciária e, em lugar do piso salarial, paga somente os "honorários" daquilo que foi estritamente produzido, o que é sempre muito menos do que o antigo salário.
Flexibilização, em obediência ao mandamento de transferir o risco aos empregados autônomos e delegar a responsabilidade aos mais fracos, significa: mais produção e mais estresse por menos dinheiro. O liame empresarial se esgarça e os chamados colegas de emprego cindem-se em dois, de um lado os de carteira assinada, espécie em extinção cujos direitos trabalhistas são paulatinamente reduzidos ou cortados de todo, e de outro os colaboradores que convivem na precariedade, chamados por exemplo de "free-lancers" ou "portfolio-workers".
Entre os primeiros, por sua vez, cindem-se as repartições em "profit-centers" concorrentes. A cultura da empresa integrada faz parte do passado. Tomando como exemplo o multicartel da IBM, o historiador social americano Richard Sennet, em seu livro "O Homem Flexível" (1998), mostrou essa lógica da infidelidade: "Durante os anos de reestruturação, ao enxugar os gastos, a IBM não dava mais confiança a seus empregados. Foi-lhes comunicado, aos que restaram, que eles não eram mais os filhos da grande empresa".
Os indivíduos flexibilizados pelo capitalismo não são pessoas conscientes e universais, mas pessoas universalmente exploradas e solitárias. A nova responsabilidade pelo risco não é algo instigante, se não aterrador, pois o que se arrisca é a própria vida. A desconfiança generalizada corre mundo. Do clima de máfia e paranóia nasce uma cultura empresarial taciturna. Pessoas sem assistência e espoliadas ficam doentes e perdem a motivação. E tornam-se cada vez mais superficiais, dispersas e incompetentes. Isso porque a verdadeira qualificação exige tempo, tempo de que o mercado não dispõe mais. Quanto mais rapidamente mudam as exigências, mais irreal torna-se a qualificação, mais o aprendizado transforma-se num puro consumo de conhecimentos, num mero ossuário de dados. A qualidade fica para as calendas. Afinal, quando sei que tudo o que aprendo à custa de esforço perderá valor no momento seguinte, o fôlego de minha atenção será obviamente mais curto, e isso na exata proporção de meu desalento.
Mas empregados manhosos e sem coesão social, que só sabem lograr seus superiores, os clientes e seus demais colegas, tornam-se também contraproducentes para a empresa. Com a total flexibilização o capitalismo não soluciona sua crise, antes a conduz ao absurdo e demonstra que só é capaz de suscitar forças autodestrutivas.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Ed. Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", da Folha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário