domingo, 23 de janeiro de 2011

Perspectivas de Modificações Conscientes na Vida Cotidiana

Estudar a vida cotidiana seria uma tarefa ridícula, e condenada a nada apreender de seu objeto, se tal proposta não fosse explicitamente a de estudar a vida cotidiana para transformá-la.

A conferência - exposição de certas considerações intelectuais a um auditório, como forma banal das relações humanas num amplo setor da sociedade - também faz parte da crítica da vida cotidiana.

Os sociólogos, por exemplo, têm o costume de retirar da vida cotidiana e rejeitar para esferas separadas chamadas superiores - o que lhes acontece a cada momento. É o hábito sob todas as formas, a começar pelo hábito do manejo de alguns conceitos profissionais - produzidos portanto pela divisão do trabalho que mascara a realidade sob convenções preexistentes.

É por isso desejável que se mostre, por uma leve distorção das expressões correntes, que a vida cotidiana é mesmo esta aqui. É claro que a transmissão destas palavras por meio de um gravador não vai ilustrar a integraçâo dos recursos técnicos na vida cotidiana marginal ao tecnicismo, e sim aproveitar uma ocasíão para romper com as aparências de, pseudocolaboração do diálogo artificial, que ficam instituídas entre o conferencista "presente pessoalmente" e seus espectadores. Essa leve ruptura de uma comodidade pode transformar em questionamento da vida cotidiana (questionamento que, de outro modo, será totalmente abstrato) a própria conferência, como outras tantas disposições do uso do tempo, ou dos objetos, disposições que são consideradas "normais", que nem percebemos, mas que no fundo nos condicionam. A respeito de um pormenor como esse, como a respeito do conjunto da vida cotidiana, a modificação é sempre a condição necessária e suficiente para fazer surgir experimentalmente o objeto de nosso estudo, que sem isso permaneceria duvidoso; objeto que não é só para estudar, e sim para modificar.

Acabei de dizer que a realidade de um conjunto observável que seria designado pela expressão "vida cotidiana" corre o risco de continuar hipotética para muita gente. De fato, desde que este grupo de pesquisa se constituiu, o mais surpreendente não é que ainda não tenha encontrado nada, mas que a contestação da própria existência da vida cotidiana se tenha manifestado desde o primeiro instante; e, a cada encontro, continue a se confirmar. A maioria das falas vencidas de que a vida cotidiana exista, por não a terem encontrado em lugar algum. Um grupo de pesquisa sobre a vida cotidiana guiado por tal idéia é comparável a uma expedição que parte em busca do "abominável homem das neves" e chega à conclusão de que se trata de uma pilhéria folclórica.

Todo o mundo está porém de acordo em que certos gestos repetidos a cada dia, como abrir a porta ou encher um copo, são perfeitamente reais; mas esses gestos estão num plano tão trivial da realidade que se contesta, com razão, que possam justificar uma nova especialização da pesquisa sociológica. E vários sociólogos parecem pouco inclinados a imaginar outros aspectos da vida cotidiana, a partir da definição de Henri Lefebvre, isto é, "o que resta quando se retiram do vivido todas as atividades especializadas". Descobre-se então que a maioria dos sociólogos - e todos nós sabemos como eles gostam das atividades especializadas e nelas acreditam cegamente! - reconhece atividades especializadas em tudo, e a vida cotidiana em lugar nenhum. A vida cotidiana está sempre mais além. Está com os outros. Em todo o caso, nas classes não sociológicas da população. Alguém disse que seria interessante estudar os operários, como cobaias provavelmente inoculadas com o vírus da vida cotidiana, pois eles, por não terem acesso às atividades especializadas, só tem a vida cotidiana para viver. Esse modo de se debruçar sobre o povo, em busca de um longínquo primitivismo do cotidiano; e sobretudo esse contentamento escancarado, essa arrogância ingénua de participar de uma cultura da qual ninguém consegue disfarçar a indiscutível falência, a radical incapacidade de compreender o mundo que a produz, tudo isso é assombroso.

Existe uma vontade manifesta de proteger~se por trás de uma formaçâo do pensamento que se baseou na segmentação de domínios artificiais, a fim de rejeitar o conceito inútil, vulgar e incômodo de "vida cotidiana". Tal conceito abrange um resíduo da realidade catalogada e classificada, resíduo com o qual alguns não gostam de se confrontar, porque é ao mesmo tempo o ponto de vista da totalidade; implica a necessidade de um Juizo global, de uma política. Certos intelectuais parecem vangloriar-se de sua participação pessoal no setor dominante da sociedade, por possuírem uma ou várias especializações culturais; isso porém os coloca no lugar ideal para perceberem que toda a cultura dominante está nitidamente roída pelas traças. Mas, seja qual for a opinião que se tenha sobre a coerência dessa cultura ou sobre seu interesse, em detalhe, a alienação que ela impôs aos ditos intelectuais é de fazer com que eles se julguem, do Céu dos sociólogos, como totalmente alheios à vida cotidiana das populações comuns ou situados no topo da escala do poder humano, como se eles também não fossem uns pobres coitados.

É verdade que as atividades especializadas existem; têm até, em certa época, um uso geral que sempre convém reconhecer de modo desmitificado. A vida cotidiana não é tudo, embora esteja em osmose com as atividades especializadas a ponto de, sob certo aspecto, nunca ninguém estar fora da vida cotidiana. E, se recorrermos à conhecida representação espacial das atividades, a vida cotidiana terá de ser colocada no centro de tudo. Nela se inicia cada projeto, e cada realização a ela retorna em busca de uma verdadeira significação. A vida cotidiana é a medida de tudo: da realização - ou melhor, da nâo-realização - das relações humanas; da utilização do tempo vivido; da pesquisa na arte; da política revolucionária.

Convém relembrar que o velho estereótipo científico do observador desinteressado é um ardil. No caso, a observação desinteressada é ainda menos possível que em qualquer outra situação. O que torna difícil o reconhecimento de um terreno da vida cotidiana não é apenas o fato de ele ja ser o ponto de encontro de uma sociologia empírica com a elaboração conceptual, mas também de ser neste momento o desafio de toda a renovaçâo revolucionária da cultura e da política.

A vida cotidiana não criticada significa o prolongamento das formas atuais, profundamente deterioradas, da cultura e da política, formas cuja gravíssima crise, sobretudo nos países mais modernos, se traduz pela despolitização e pelo neo-analfabetismo generalizados. Em compensação, a crítica radical, e por atos, da vida cotidiana existente pode levar a uma superação da cultura e da política no sentido tradicional, isto é, a um nível superior de participação na vida.

Mas, pode alguém perguntar, por que essa vida cotidiana, que a meu ver é a única real, é tão completa e imediatamente depreciada por pessoas que, afinal, não têm nenhum interesse direto nisso e são, na maioria, favoráveis a uma renovação do movimento revolucionário?

Julgo que é por estar a vida cotidiana organizada dentro de parâmetros de uma pobreza escandalosa, E sobretudo porque essa pobreza da vida cotidiana nada tem de acidental: é uma pobreza imposta a todo momento pela coação e pela violência de uma sociedade dividida em classes; pobreza organizada historicamente de acordo com as necessidades da história da exploração.

O uso da vida cotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido, é comandado pela predominância da raridade do tempo livre e raridade dos possíveis modos de utilizar esse tempo livre.

Assim como a história acelerada de nossa época é a história da acumulação e da industrialização, o atraso da vida cotidiana e sua tendência ao imobilismo são o produto das leis e dos interesses que comandaram essa industrialização. A vida cotidiana apresenta de fato, até o momento, uma resistência ao que é histórico. Isso julga antes de tudo o histórico, como herança e projeto de uma sociedade de exploração.

A enorme pobreza da organização consciente, a falta de criatividade das pessoas na vida cotidiana expressam a necessidade fundamental de inconsciência e de mistificação numa sociedade exploradora, numa sociedade da alienação.

Henri Lefebvre aplicou uma extensão da idéia de desenvolvimento desigual para caracterizar a vida cotidiana, descompassada mas não cortada da historicidade, como um setor atrasado. Acho que se pode qualificar esse nível da vida cotidiana como setor colonizado. Todos sabem que, na escala da economia mundial, o subdesenvolvimento e a colonização são fatores que interagem. Tudo leva a crer que o mesmo acontece na escala da formação econômico-social da práxis.

A vida cotidiana, mistificada por todos os meios e controlada policialmente, é uma espécie de reserva para Os bons selvagens que fazem funcionar, sem compreendê-la, a sociedade moderna com o rápido crescimento de seus poderes técnicos e a expansão forçada de seu mercado. A história - isto é, a transformação do real - não é utilizável atualmente na vida cotidiana porque o homem do cotidiano é o produto de uma história que ele não controla. É ele quem faz essa história, mas não livremente.

A sociedade moderna se constitui de fragmentos especializados, praticamente intransmissíveis, e a vida cotidiana, na qual quase todas as questões surgem de modo unitário, torna-se naturalmente o reino da ignorância.

Essa sociedade, através de sua produção industrial, esvaziou o sentido dos gestos do trabalho. E nenhum modelo que esses gestos humanos já tiveram perdura em nosso cotidiano.

Tal sociedade tem tendência a atomizar os homens em consumidores isolados, a proibira comunicação, A vida cotidiana torna-se assim vida privada, domínio da separação e do espetáculo.

De tal forma que a vida cotidiana é também o terreno do qual os especialistas abdicam. É nela que, por exemplo, um dos raros indivíduos capazes de compreender a mais recente imagem científica do universo torna-se estúpido e considera atentamente as teorias artísticas de Alain Robbe-Grillet, ou envia petições ao Presidente da República a fim de influir em sua política. É a esfera da ausência de reação, da confissão da incapacidade de viver.

Não se deve portanto caracterizar o subdesenvolvimento da vida cotidiana apenas por sua relativa incapacidade de integrar técnicas. Esse aspecto é um produto importante, mas ainda parcial, do conjunto da alienação diária, que pode ser definida como a incapacidade de inventar uma técni~ ca de libertação do cotidiano.

E é verdade que muitas técnicas modificam com maior ou menor nitidez certos aspectos da vida cotidiana: os eletro domésticos, como já dissemos, e também o telefone, a televisão, a gravação musical em discos, as viagens aéreas mais acessíveis etc. Esses elementos intervêm desordenadamente, ao acaso, sem que ninguém tenha previsto suas conexões e conseqüências. Mas é certo que, no conjunto, esse movimento de introdução das técnicas no cotidiano, sendo finalmente enquadrado pela racionalídade do capitalismo moderno burocratizado, atua mais no sentido de uma redução da independência e da criatividade das pessoas. Assim as cidades novas de hoje retratam claramente a tendência totalitária da organização da vida pelo capitalismo moderno: os indivíduos isolados (geralmente isolados no âmbito da célula familiar) vêem, nesse gênero de cidade, sua vida reduzida à pura trivialidade da repetição, junto com a assimilação obrigatória de um espetáculo igualmente repetitivo.

Parece portanto que a censura que as pessoas exercem sobre a questão de sua própria vida cotidiana se explica pela consciência de sua insustentável miséria, bem como pela sensação talvez inconfessada mas inevitavelmente experimentada, de que todas as verdadeiras possibilidades, todos os desejos que foram impedidos pelo funcionamento da vida social, estavam nela, e não nas atividades ou distrações especializadas, Isto é, o conhecimento da riqueza profunda, da energia perdida na vida cotidiana, é inseparável do conhecimento da miséria da organização dominante dessa vida: só a existência perceptível dessa riqueza inexplorada leva a definir por contraste a vida cotidiana como miséria e como prisão; depois, no mesmo impulso, leva a negar o problema.

Em tais condições, ocultar a questão política suscitada pela miséria da vida cotidiana equivale a ocultar a profundidade das reivindicações relativas à riqueza possível de nossa vida; reivindicações que levariam forçosamente a reinventar a revolução. Neste aspecto, a fuga à política não é contraditória com o fato de ser militante do Partido Socialista Unificado, por exemplo, ou de ler com confiança o jornal L'Humanité.

Tudo depende efetivamente do nível em que se ousa formular o problema: como vivemos? Como ficamos satisfeitos? Insatisfeitos? Isso sem nos deixarmos nunca intimidar pelas diversas formas de publicidade que visam a persuadir que o homem pode ser feliz por causa da existência de Deus, ou do dentifrício Colgate, ou do CNRS [Centro Nacional da Pesquisa Científica, da França].

Parece-me que a expressão "critica da vida cotidiana" poderia, e deveria, também harmonizar-se com essa inversão: seria a critica que a vida cotidiana exerceria, soberanamente, sobre tudo o que lhe é inutilmente exterior.

A questão do uso dos meios técnicos, na vida cotidiana e alhures, é mera questão política (e, entre todos os meios técnicos existentes, os que são utilizados são de fato selecionados de acordo com os objetivos de manutenção da predominância de uma classe). Quando se considera a hipótese de um futuro, tal como é pensado pela literatura de ficção científica no qual aventuras interstelares coexistem com uma vida cotidiana mantida nesta terra com a mesma indigência material e o mesmo moralismo arcaico, isso significa, exatamente, que ainda haveria uma classe de dirigentes especializados, mantendo a seu serviço as massas proletárias das fábricas e dos escritórios; e que as aventuras interstelares seriam apenas a empresa escolhida por esses dirigentes, a maneira que teriam achado para desenvolver sua economia irracional, o cúmulo da atividade especializada.

Já foi perguntado: "A vida privada está privada de quê?" Da vida, que dela está cruelmente ausente. As pessoas também estão privadas ao máximo de comunicação; e de realização pessoal. Caberia dizer: não podem fazer, pessoalmente, sua própria história. As hipóteses para responder de modo positivo a essa questão sobre a natureza da privação só podem ser enunciadas sob a forma de projetos de enriquecimento: projetos de outro estilo de vida; ou seja, de um estilo... Ou então, se considerarmos que a vida cotidiana está na fronteira entre o setor dominado e o setor não dominado da vida, ou seja, o lugar do aleatório, será preciso substituir o presente gueto por uma fronteira sempre deslocável; trabalhar sem esmorecer para organizar novas oportunidades.

A questão da intensidade do vivido aparece hoje, por exemplo, com o uso da droga, nos mesmos termos com que a sociedade da alienação consegue formular qualquer questão: isto é, em termos de falso reconhecimento de um projeto falsificado, em termos de fixação e de apego. Convém notar também a que ponto a imagem do amor, elaborada e divulgada nesta sociedade, é parecida com a da droga. Nela, a paixão é primeiro reconhecida como recusa de todas as outras paixões; depois, é impedida e, afinal, só se encontra nas compensações do espetáculo reinante. La Rochefoucauld escreveu: "Quase sempre o que nos impede de entregarmonos a um vício é o fato de termos vários". Eis uma constatação muito positiva se, deixando de lado os pressupostos moralistas, a pusermos de pé, como base de um programa de realização das capacidades humanas.

Todos esses problemas estão na ordem do dia porque, visivelmente, nosso tempo é dominado pelo surgimento do projeto, defendido pela classe operária, de abolir toda a sociedade de classes e de começar a história humana; projeto dominado portanto, como corolário, por uma resistência encarniçada, bem como pelos desvios e fracassos que até o momento enfrentou.

A atual crise da vida cotidiana se inscreve nas novas formas de crise do capitalismo, formas que passam despercebidas a quem só pensa em computar a chegada das próximas crises cíclicas da economia.

O desaparecimento, no capitalismo desenvolvido, de todos os antigos valores, de todas as referências da antiga comunicação, bem como a impossibilidade de substituí-los por outros, sejam eles quais forem, antes de terem dominado racionalmente, na vida cotidiana e alhures, as novas forças industriais que nos escapam cada vez mais, são fatos que produzem não apenas a insatisfação quase oficial de nossa época, insatisfação muitíssimo aguda entre os jovens, mas também o movimento de autonegação da arte. A atividade artística sempre fora a única a explicar os problemas clandestinos da vida cotidiana, embora do forma velada, deformada, parcialmente ilusória. Diante dos olhos, temos o testemunho da destruição de toda a expressão artística moderna: é a arte moderna.

Se considerarmos a crise da sociedade contemporânea em toda extensão, não creio que ainda seja possível olhar os lazeres como uma negação do cotidiano. Admitimos que era preciso "estudar o tempo perdido". Mas vejamos a evolução dessa idéia de tempo perdido. Para o capitalismo clássico, o tempo perdido é aquele que é exterior à produção, à acumulação, à poupança. A moral leiga, ensinada nas escolas da burguesia, implantou essa regra de vida. Mas acontece que o capitalismo moderno, por uma manobra inesperada, preci sa aumentar o consumo, "elevar o nível de vida" (não esquecer que essa expressão é inteiramente destituída de sentido). Como, ao mesmo tempo, as condições da produção, parcelar e cronometrada ao extremo, tornaram-se indefensáveis, a moral que já existe na publicidade, na propaganda e em todas as formas do espetáculo dominante admite, ao contrário, que o tempo perdido é o do trabalho, agora justificado apenas pelos vários graus do que se ganha e que permite comprar descanso, consumo, lazer - isto é, uma passividade cotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo.

Agora, se considerarmos a facticidade dos imperativos do consumo criados e estimulados pela indústria moderna - se reconhecermos o vazio dos lazeres e a impossibilidade de descanso -, a pergunta pode ser formulada de modo mais realista: o que não é tempo perdido? Ou seja: o desenvolvimento de uma sociedade da abundância deve chegar à abundância de quê?

Isto pode servir de critério para muita coisa. Quando, por exemplo, num dos jornais onde se exibe a inconsistência dos chamados intelectuais de esquerda - refiro-me a France-Observateur - vê-se um título que anuncia algo como "o carro de passeio ataca o socialismo", diante de um artigo explicando que os russos já buscam individualmente, a exemplo dos americanos, um consumo particular dos bens e que começam naturalmente pelo carro, é o caso de se pensar que nem era necessário ter assimilado, depois de Hegel, toda a obra de Marx para perceber que um socialismo que se enfraquece porque o carro de passeio invadiu o mercado nada tem a ver com o socialismo pelo qual o movimento operário lutou. De modo que não é a um estágio da táti(a OU do dogmatismo dos dirigentes burocráticos da Rússia que nos devemos opor, mas à base, àquilo que faz com que a vida das pessoas não mude efetivamente de sentido, E não se trata da fataçodade obscura da vida cotidiana, condenada a permanecer reacionária. E uma fatalidade imposta exteriormente à vida cotidiana, em todos os aspectos, pela esfera reacionária dos dirigentes especializados, seja qual for a etiqueta sob a qual eles planificam a miséria.

A atual despolitizaçâo de muitos ex-militantes de esquerda, o afastar-se de uma certa alienação para atirar-se noutra, a da vida privada, não tem tanto o sentido de um retorno à privatizaçâo como refúgio contra as "responsabilidades da historicidade", mas o de um afastamento do setor político especializado, e sempre manipulado por outros; setor em que a única responsabilidade verdadeiramente assumida foi a de deixar todas as responsabilidades nas mãos de chefes sem controle; onde o projeto comunista foi enganado e desiludido. Assim como não se pode opor como um todo a vida privada à vida pública, sem perguntar: qual vida privada? qual vida pública? (porque a vida privada contém os fatores de sua negação e de sua superação tanto como a ação coletiva revolucionária pôde alimentar os fatores de sua degenerescência), também não se pode fazer o balanço de uma alienação dos indivíduos na política revolucionária por se tratar da alienação da própria política revolucionária. É justo considerar de modo dialético o problema da alienação, assinalar as possibilidades de alienação sempre renovadas na própria luta travada contra a alienação, mas convém enfatizar que tudo isso deve ser aplicado no mais alto nível de pesquisa (por exemplo, a filosofia da alienação no seu todo), e não no nível do estalinismo, cuja explicação é infelizmente mais grosseira.

A civilização capitalista ainda não foi superada em nenhum lugar mas continua a produzir inimigos. A próxima tentativa do movimento revolucionário, radicalizado pelas lições dos anteriores fracassos, e cujo programa reivindicatório deverá enriquecer-se na proporção dos poderes práticos da sociedade moderna poderes que desde já constituem virtualmente a base material que faltava às correntes chamadas utópicas do socialismo -, essa próxima tentativa de total contestação do capitalismo saberá inventar e propor um outro uso da vida cotidiana, e logo se apoiará em novas práticas cotidianas, em novos tipos de relações humanas (não ignorando que o que se conservar, no interior do movimento revolucionário, das relações dominantes na sociedade existente levará insensivelmente a reconstituir, com diversas variantes, essa mesma sociedade).

Assim como outrora a burguesia, em sua fase ascendente, teve de liquidar de modo impiedoso tudo o que ultrapassava a vida terrena (o Céu, a eternidade), assim também o proletariado revolucionário - que nunca poderá admitir, sem deixar de existir como tal, um passado ou modelos terá de renunciar a tudo o que ultrapassa a vida cotidiana. Ou que pretende ultrapassá-la: o espetáculo, o gesto ou a palavra "históricos", a "grandeza" dos dirigentes, o mistério das especializações, a "imortalidade" da arte e sua importância exterior à vida. O que significa: renunciar a todos os subprodutos da eternidade que sobreviveram como armas no mundo dos dirigentes.

A revolução na vida cotidiana, quebrando sua atual resistência no histórico (e a todo tipo de mudança), criará condições tais que o presente consiga dominar o passado, e que a parte da criatividade ganhe da repetitividade. É de se esperar que o lado da vida cotidiana expresso pelos conceitos da ambiguidade - malentendido, comprometimento, abuso - perca a importância, em proveito de seu oposto, a escolha consciente ou o desafio.

O atual questionamento artístico da linguagem, contemporâneo da metalinguagem das máquinas, que é a linguagem burocratizada da burocracia no poder, seá então superado por formas superiores de comunicação. A presente noção de texto social decifrável deverá chegar a novos processos de escrita desse texto social, na direção daquilo que buscam atualmente meus camaradas situacionistas com o urbanismo unitário e o esboço de um comportamento experimental. A produção central de um trabalho industrial inteiramente reconvertido provocará o arranjo de novas configurações da vida cotidiana, a criação livre de acontecimentos.

A crítica e a perpétua recriação de toda a vida cotidiana, antes de serem feitas naturalmente por todos os homens, devem ser empreendidas nas condições da presente opressão, a fim de derrubar essas condições.

Não é um movimento cultural de vanguarda, mesmo com pretensões revolucionárias, que pode realizar isso. Tampouco um partido revoluciotiárioo de modelo tradicional, mesmo que conceda atenção à crítica da cultura (entendendo por esse termo o conjunto dos instrumentos artísticos ou conceptuais pelos quais uma sociedade explica a si mesma e se oferece objetivos de vida). Tal cultura como tal política estão desgastadas, e não é sem motivo que a maioria das pessoas perdeu o interesse por elas. A transformação revolucionária da vida cotidiana não está reservada a um vago futuro: apresenta-se a nós como urgente, diante do desenvolvimento do capitalismo e suas insuportáveis exigências; a alternativa seria o reforço da escravidão moderna. Essa transformação revolucionária marcará o fim de toda expressão artística unilateral, armazenada sob a forma de mercadoria, simultâneo ao fim de toda política especializada.

Será essa a primeira tarefa da organização revolucionária de um novo tipo.

Guy-Ernest Debord
IS número 6, agosto de 1961


Esta palestra foi feita, por meio de um gravador, em 17 de maio de 1961, no Groupe de Recherches sur la vie quotidienne [grupo de pesquisa sobre a vida cotidiana] reunido por H. Lefebvre no Centre d'étudies sociologiques do CNRS.

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