Ah! Se não fosse preciso temer a revolução da qual se fez um espectro!... Incapaz de imaginar uma sociedade mais detestável do que a nossa, tenho pela que a sucederá mais desconfiança que temor. Se devesse sofrer com a transformação, consolar-me-ia pensando que os verdugos do dia são as vítimas da vigília e que a expectativa do melhor faria suportar o pior. Mas não é este perigo longínquo que me assombra: vejo um outro, mais perto e sobretudo mais cruel; mais cruel porque não tem qualquer desculpa, porque é absurdo, porque não pode resultar em bem algum: a cada dia pensam-se as probabilidades de guerra do amanhã, e elas, dia-a-dia, tornam-se mais cruéis.
O pensamento retrocede diante de uma catástrofe que aparece no pináculo do século como o término do progresso de nossa era e contudo, é preciso habituar-se: há vinte anos todas as forças do saber exaurem-se para inventar instrumentos de destruição e dentro em pouco bastarão alguns tipos de canhão para abater um exército; colocam-se em armas, não mais, como antes, milhares de pobres diabos cujo sangue era pago, mas povos inteiros que estão a ponto de se estrangularem mutuamente; rouba-se deles o tempo (obrigando-os a servir) para roubar-lhes mais seguramente a vida; a fim de prepará-los para o massacre, atiça-se seu ódio, persuadindo-os de que são odiados; e homens dóceis deixam-se lograr, e logo se verão atirando-se uns sobre os outros, com ferocidade de bestas, turbas furibundas de pacíficos cidadãos a quem uma ordem inábil colocará nas mãos o fuzil, sabe Deus por que ridículo incidente de fronteira ou por que mercantis interesses coloniais!...
Marcharão, como ovelhas ao matadouro, mas, sabendo aonde vão, sabendo que deixam suas mulheres, sabendo que seus filhos sofrerão fome, ansiosos e ébrios, pelas sonoras e mentirosas palavras trombetadas em seus ouvidos.
Marcharão sem se rebelar, passivos e resignados, enquanto são a massa e a força, e poderiam, se soubessem entender, estabelecer o bom senso e a fraternidade em lugar das selvagens práticas da diplomacia.
Marcharão, tão enganados, tão iludidos, que acreditarão ser o massacre um dever e pedirão a Deus para abençoar seus apetites sanguinários.
Marcharão, pisoteando as colheitas que semearam, incendiando as cidades que construíram, com cantos de entusiasmo, com gritos de alegria, com músicas de festa. E seus filhos erigirão estátuas àqueles que melhor tiverem massacrado!...
A sorte de toda uma geração depende da hora em que algum fúnebre homem político der o sinal, que será seguido. Sabemos que os melhores de nós serão forçados e que nossa obra será destruída. Sabemos e trememos de cólera, e nada podemos. Ficamos presos na rede dos gabinetes e das papeladas, cuja destruição provocaria uma agitação por demais violenta. Pertencemos às leis que fizemos para nos proteger e que nos oprimem. Nada somos além de coisas dessa contraditória abstração, o Estado, que torna cada indivíduo escravo em nome da vontade de todos, que tomados isoladamente, desejariam exatamente o oposto do que serão obrigados a fazer.
Se a geração que deverá ser sacrificada fosse ao menos apenas uma! Mas existem outros interesses em jogo.
Os oradores assalariados, os ambiciosos aproveitadores das más inclinações das multidões e os pobres de espírito, a quem a sonoridade das palavras engana, têm a tal ponto exacerbado os ódios nacionais que a guerra de amanhã colocará em perigo a existência de uma raça: um dos elementos que constituíram o mundo moderno está ameaçado, aquele que será vencido deverá moralmente desaparecer e, qualquer que seja este, ver-se-á uma força aniquilada — como se, para o bem, houvesse uma a mais! — ver-se-á formar-se uma Europa nova, sobre tais bases, tão injustas, tão brutais, tão sanguinolentas, embrutecida por tão monstruosa mancha, que não pode ser ainda pior do que a de hoje, mais iniqua, mais bárbara e mais violenta.
Assim, cada qual sente pesar sobre si um imenso desencorajamento. Agitamo-nos num caminho sem saída, com fuzis apontados para nós de todos os telhados. Nosso trabalho parece o dos marinheiros que executam a última manobra quando o navio começa a afundar. Nossos prazeres assemelham-se aos do condenado a quem se oferece uma iguaria de seu agrado, quinze minutos antes do suplício. A angústia paralisa nosso pensamento, e o mais belo esforço de que seja capaz de calcular, soletrando os vagos discursos dos ministros, alterando o sentido das palavras dos soberanos, mudando as palavras atribuídas aos diplomatas e que os jornais divulgam desordenadamente — se será amanhã ou depois de amanhã, este ano ou próximo que nos degolarão. De modo que em vão se buscaria na História uma época mais incerta e mais repleta de angústias... ("O Sentido da Vida", Edouard Rod, páginas 208-213)
Destas linhas resulta que a força está nas mãos daqueles que se perdem por si mesmos, nas mãos de indivíduos isolados que compõem a massa, e que a fonte do mal está no Estado. Parece evidente que a contradição entre a consciência e a vida tenha atingido limites que não poderiam ser ultrapassados, e nos quais a solução se impõe.
Mas o autor não é deste parecer. Ele vê o caráter trágico da vida humana e, após haver mostrado todo o horror da situação, conclui que a vida humana deve transcorrer neste erro.
Extrato de O Reino de Deus Está em Vós" de Leon Tolstoi
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