Nos últimos dias, os noticiários televisivos brasileiros têm dado extrema atenção à guerra “contra o tráfico” na cidade do Rio de Janeiro. Com a iminência da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, o processo de “pacificação” das favelas foi intensificado. Unidades da chamada “polícia pacificadora” têm sido implantadas em importantes e estratégicas favelas para os traficantes de drogas e armas.
Embora seja um processo violento, resta nele algo de admirável: certa responsabilidade social, certo pacifismo como fim, certa caridade no bom sentido cristão de buscar o benefício dos pobres. A motivação por trás dessas ações talvez não seja das mais nobres e talvez não tenha nada de cristã, porém relembremos uma frase costumeiramente atribuída a Madre Tereza de Calcutá: “O que eu faço é uma gota no meio de uma oceano. Mas sem ela, o oceano será menor.”
A mídia mostra moradores das favelas “pacificadas” declarando satisfação e embora seja triste vê-los se contentando com tão pouco, é importante que transformações como essa sejam valorizadas ao menos em seu resultado.
Mas analisemos o outro lado da moeda, os noticiários fazem o povo enxergar essa situação como uma terrível guerra entre o bem e o mal em que os traficantes encarnam a própria figura de Satanás. E há muitos casos nos quais os próprios moradores das favelas (às quais foram degredados desde a escravatura ou por conta das condições de vida miseráveis de sua terra natal, em outras regiões do Brasil, por culpa dos grandes latifundiários) são vistos como criminosos por morarem em terras das quais não são legalmente (ou seja, aos olhos do Estado, sustentáculo dos poderosos) donos, como se documentos tivessem mais valor do que o direito, que Deus deu igualmente a todos, do uso da terra para trabalhar e construir abrigo. Discurso típico do espetáculo burguês que hipnotiza nossa sociedade e faz com que tudo continue como está, os pobres sejam cada vez mais marginalizados e quem jamais compartilha suas posses seja santificado.
“(…)
O SENHOR se levanta para pleitear, e põe-se de pé para julgar os povos.
O SENHOR entrará em juízo contra os anciãos do seu povo, e contra os seus príncipes; é que fostes vós que consumistes esta vinha; o espólio do pobre está em vossas casas.
Que tendes vós, que esmagais o meu povo e moeis as faces dos pobres? Diz o Senhor DEUS dos Exércitos.
Diz ainda mais o SENHOR: Porquanto as filhas de Sião se exaltam, e andam com o pescoço erguido, lançando olhares impudentes; e quando andam, caminham afetadamente, fazendo um tilintar com os seus pés;
Portanto o Senhor fará tinhoso o alto da cabeça das filhas de Sião, e o SENHOR porá a descoberto a sua nudez,
Naquele dia tirará o Senhor os ornamentos dos pés, e as toucas, e adornos em forma de lua,
Os pendentes, e os braceletes, as estolas,
Os gorros, e os ornamentos das pernas, e os cintos e as caixinhas de perfumes, e os brincos,
Os anéis, e as jóias do nariz,
Os vestidos de festa, e os mantos, e os xales, e as bolsas.
Os espelhos, e o linho finíssimo, e os turbantes, e os véus.
E será que em lugar de perfume haverá mau cheiro; e por cinto uma corda; e em lugar de encrespadura de cabelos, calvície; e em lugar de veste luxuosa, pano de saco; e queimadura em lugar de formosura.
Teus homens cairão à espada e teus poderosos na peleja.
E as suas portas gemerão e prantearão; e ela, desolada, se assentará no chão.” (Isaías 3:13-26)
Abandonemos o pecado de Israel, fujamos da hipnose em que nos mantém o Espetáculo e permitamos que somente Deus seja legislador de nossa moral. A propriedade exclusiva da terra é um roubo, uma usurpação da graça de Deus e um dos principais fatores responsáveis pela violência na cidade do Rio de Janeiro. Não pode haver paz onde não há liberdade, não pode haver liberdade sem igualdade social e não há igualdade social onde não há amor ao próximo. Existem pessoas morando em barracos nos morros cariocas porque muitos de seus ascendentes, quando “libertos” da escravatura, não encontraram alternativa, não havia oportunidades pra quem era negro, pobre e rude, recém-alforriado; porque há vastíssimos pedaços de terra sob o controle de poucas pessoas que nelas praticam a monocultura (exaurindo o solo) e criam gado para sustentar a indústria da carne que só enriquece cada vez mais os latifundiários, e adoece o povo e o planeta; há barracos nos morros porque nas orlas das praias que Deus nos concedeu não há espaço para os pobres que se proliferam como animais por falta de instrução, cultura e uma religião que apregoe a verdade do Evangelho pra que tem sede de Jesus (mal do qual eles não têm culpa porque não há espaço pra descendentes de escravos nas escolas dos ricos e a Cristandade está ocupada demais para cuidar do rebanho do Senhor).
Esquecemo-nos de que a mesma mídia que demoniza o traficante é financiada pela burguesia (embora com dinheiro provido pelo povo trabalhador) que, em suas propagandas, semeia, rega e fertiliza a cobiça no coração dos homens. E essa mesma burguesia, que mantêm e controla a grande mídia, foi quem incentivou a vinda de uma imensa quantidade de nordestinos para a ilusória “terra das oportunidades”.
O tráfico de armas e drogas é um problema social que precisa ser tratado com amor, de maneira preventiva muito antes de ser bombardeado. Quanto foi gasto com prevenção e tratamento de viciados? Quanto foi investido na conscientização da população? Isso é realmente desejável pelo Estado? Para um regime que sustenta a desigualdade social, é sempre necessário um poderio militar considerável e, de forma alguma, o povo miserável pode ser conscientizado! O tráfico é usado como desculpa para que o Estado encha as ruas de cães-de-guarda das riquezas ilícitas aos olhos de Deus. É o próprio Estado o principal responsável pelo tráfico. Não nos esqueçamos que fábricas de armas também são grandes indústrias que pagam alguns impostos e, em troca, têm que receber a proteção governamental.
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente.
Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;
E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa;
E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas.
Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes.
Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;
Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos.
Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo?
E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim?” (Mateus 5:38-48)
Cada um de nós defende suas bolsas e carteiras com unhas e dentes. Olhamos para todos os lados e estamos atentos a todos os sons. Ao menor sinal do que consideramos perigoso, nos preparamos para correr, bater, gritar, chamar a polícia (para que ela maltrate ou, no mínimo, coaja violentamente e prenda o “malfeitor”) e o pior: pedir ao Deus de Jesus Cristo que nos proteja e conceda sucesso em tais desígnios. Ignoramos que é esse demasiado valor que damos às coisas corruptíveis que faz com que os preguiçosos e imorais ou pobres coitados, que não têm a mínima culpa de sua marginalização (pois tiveram seus ascendentes arrancados de sua terra natal onde eram livres), desejem nossos bens.
“Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem, e onde os ladrões minam e roubam;
Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam
Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.” (Mateus 6:19-21)
Chegam-nos notícias de que o processo de “pacificação” das favelas mexicanas não funcionou e os moradores clamam pelo retorno da velha ordem dominada pelos traficantes e milícias.
Quanto tempo vocês acham que durará a paz nas “favelas pacificadas” do Rio de Janeiro? Façam suas apostas!
“A indiferença que não te deixa por a mão no bolso é a mesma do louco que corta seu rosto. (…) Porque prefere (…) enriquecer a indústria da segurança privada, comprar colete à prova de bala do que doar cesta básica.”[1]
[1] Trecho de letra do grupo de rap Facção Central.
2010/11/28
Extraído de
- projetogerrardwinstanley
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