quinta-feira, 7 de maio de 2009

À espera dos escravos globais

Está prestes a se concretizar a união das duas formas decadentes de sociedade capitalista.

ROBERT KURZ

Em que mundo vivemos? A resposta dos ideólogos é sempre a mesma: num mundo de economia de mercado e democracia, no qual a economia de mercado e a democracia nunca são suficientes. Quanto mais as catástrofes se acumulam nessa ordem mundial, mais incisivos, a cada novo colapso, são os pedidos estereotipados feitos pela ignorância asinina da consciência oficial por "mais economia de mercado" e "mais democracia". Esses dois conceitos tornaram-se uma espécie de mantra que, à força da repetição exaustiva, se diluiu numa cantilena sem sentido.

Nesse poço dos desejos oculta-se uma contradição elementar. De um lado, ergue-se a pretensão de que a sociedade é capaz de deliberar conscientemente sobre assuntos de interesse comum e tomar as devidas decisões racionais ("democracia"). De outro, no entanto, trata-se expressamente da auto-regulação mecânica de um nexo sistêmico autônomo, cujas leis surdas se sedimentaram em fatos naturais ("economia de mercado", vulgo capitalismo).

Na verdade, a vida social não é norteada pela discussão e pela consciente decisão comum dos membros da sociedade. Isso porque o procedimento democrático não se acha anteposto aos efeitos galvanizadores da "física social" de mercados anônimos, mas posposto. Todas as decisões de instituições democráticas não representam assim um emprego autônomo do cabedal simbólico dos recursos, mas são antes plasmadas de antemão pelo automatismo do sistema econômico, que, como tal, não se presta a debates.

Por trás dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, da forma como os concebeu Montesquieu, há um "quarto poder" -o poder estrutural do sistema total de mercado. Desde Rousseau, esse ídolo econômico, que zomba de todo procedimento democrático, atende na teoria política pelo nome abstrato de "bem comum". Ao jogo democrático sujeitam-se, portanto, somente alternativas predeterminadas (algo como a livre escolha entre a cruz e a caldeirinha), do modo como as concebem os cegos "processos naturais" da física social.

A construção social da democracia de mercado ou do mercado democrático contém assim um inconfessado aspecto ditatorial e totalitário, que se exprime no conceito de soberania estatal. Esse princípio do Estado moderno foi formulado, em seus primórdios, pelo jurista francês Jean Bodin (1529-1596). Segundo Bodin, o conceito de soberania implica "o poder absoluto e perpétuo de um Estado para promulgar ou revogar leis" e também fazê-las cumprir, se necessário com uso da força. Com toda paz de espírito, prossegue Bodin: "Já o conceito de "felicidade" não é exigível. Isso porque um Estado, embora bem governado, pode não obstante se ver castigado pela pobreza. Não temos o conceito de "felicidade" como essencial para a definição do Estado. Não se poderia dizer com mais clareza que se trata aqui de um fim situado além das necessidades humanas.

Em vista da soberania, contudo, a diferença entre o príncipe absoluto de Bodin e o Estado democrático moderno é um tanto irrelevante. O problema não foi resolvido, antes "reificou-se" num grau superior. À medida que os monarcas soberanos foram substituídos pelo procedimento democrático, a lei sistêmica surda, impassível de discussão, tornou-se ao mesmo tempo cada vez mais insofismável. No contexto interno, a soberania nada mais faz do que pôr em prática o "terror estrutural da economia". No contexto externo, esse terror se prolonga nos interesses concorrentes dos Estados nacionais capitalistas. Desde as "guerras de formação dos Estados" nos séculos 16 e 17, como as chamou o historiador suíço Carl Jakob Burckhardt, até as guerras mundiais do século 20, estivemos sempre às voltas com o rearranjo de forças da soberania estatal, nunca com anseios da população. Só depois de 1945 as instituições características da história capitalista renunciariam a tal padrão imutável em favor do sistema mundial futuro: Estados nacionais soberanos, reunidos na "comunidade de Estados civilizados" da ONU, ligados pelo direito das pessoas e (ao menos em perspectiva) pelos procedimentos democráticos, bem como pela noção de Estado de Direito, cuja base é o sistema produtor de mercadorias e sua forma político-econômica de conceber o sujeito.

Desde o final dos anos 70, porém, essa aprazível nova ordem mundial é abalada por uma crise de raiz causada pelo "quarto poder" das coações econômicas estruturais: como todos sabem, a revolução microeletrônica substitui em proporções crescentes, na vasta gama das atividades rotineiras, a força de trabalho humana pela tecnologia informática e robotizada. Do ponto de vista dos mercados, as pessoas -e sua força de trabalho- tornam-se "supérfluas". Hoje é de toda urgência que a soberania estatal não interfira no "quarto poder" do mecanismo de mercado. O cidadão do Estado democrático é pressuposto como "força de trabalho"; fora dessa definição, seu próprio status político e jurídico desaparece.

Para restringir a "superfluidade" em massa das pessoas não há instrumental democrático que baste, a não ser um cinismo entranhado. Quem se mostra incapaz da reprodução burguesa de sua vida tem de aceitar o "destino" que lhe cabe e se apegar às regras do jogo. A miséria causada pela economia de mercado é encarada, à maneira pós-moderna, como "pluralidade de projetos de vida" ou como uma espécie de folclore da diferença. Que aos "supérfluos" seja negado de fato o direito à vida marca, por assim dizer, o triunfo das regras jurídicas procedimentais da democracia liberal.

É ilustrativo que essa interpretação democrática do mundo não seja mais sustentável tão logo a "superfluidade" transgrida uma certa medida crítica. Quando a concorrência deixa de ter substância econômica, ela só pode levar à selvageria: por trás do sujeito jurídico burguês que firma contratos, sobressai a careta original do desbragado poder capitalista -agora, sem dúvida, não mais o poder constituinte da história de ascensão burguesa em oposição aos produtores pré-modernos, mas o poder de destruição recíproca do material humano amansado pelo capitalismo, numa história de declínio e decadência.

Porém o desenvolvimento da crise é escalonado, em seus efeitos, por regiões do globo. Tal como as diversas sociedades foram inseridas com um "descompasso" histórico no moderno sistema produtor de mercadorias, assim também o grau e a extensão da crise apresentam-se com o respectivo descompasso, de modo que a periferia relativamente subdesenvolvida, ao contrário da perspectiva de Marx para o século 19, prefigura o futuro dos centros capitalistas desenvolvidos. Todo o Terceiro Mundo, mas também grande parte do sul da Europa, é ameaçado por uma constante ruína do desenvolvimento econômico nacional, que já ocorreu em diversos países: a moeda nacional entra em colapso e torna-se moeda de indigentes; o estoque de capital converte-se irremediavelmente em "indústrias fantasmas" não rentáveis, que atrasam ou não pagam salários; a infra-estrutura reduz-se a frangalhos, água e energia só fluem esporadicamente, interrompe-se o serviço de coleta de lixo, os órgãos públicos de saúde fecham as portas, seguindo o exemplo dos correios. O Estado retira-se de cena, e o que resta de sua política econômica é gerido pelo FMI.

Se tal situação persistir por muito tempo, chega-se à luta armada pela sobrevivência em todos os níveis da sociedade. A soberania estatal esfacela-se e as antigas elites burocráticas lutam com unhas e dentes para apropriar o restante dos despojos econômicos. Em países como o Afeganistão ou a Somália, praticamente não existe mais Estado. A fé na livre concorrência não se externa como "jovial dissenso" pós-moderno nas regiões que se desintegram, mas em graus diversos de guerra civil, cujo desfecho nunca levará ao surgimento de formações estatais de sopro renovado. Na opinião de Martin van Creveld, historiador militar israelense, a guerra do século 21 não será mais travada entre Estados, mas entre "organizações não-estatais" dos mais diversos tipos.

Esse processo não é apreendido pelo Ocidente como o rematado fracasso de seu sistema social, mas como simples "problema de segurança" externo. O capitalismo democrático ocidental em crise aumenta sua petulância, já demonstrada em relação a seus próprios "supérfluos", ao lidar com países e continentes inteiros que se revelam inaptos à reprodução de mercado. Ora, eles que se conformem pacificamente a seu inevitável destino! Se preciso for, a "segurança" há de ser restabelecida com intervenções militares de âmbito mundial (as chamadas "missões de paz").

Mas as guerras desse novo imperialismo de segurança não são mais movidas em busca de uma nova repartição da soberania sobre determinados territórios. Num espaço econômico globalizado, de cunho empresarial, toda política expansionista tradicional perde o sentido. Em vez disso, trata-se de proteger os poucos segmentos capitalistas ainda capazes de se reproduzir contra os ímpetos de violência enfurecida dos marginalizados e contra sua luta encarniçada pela sobrevivência. As ilhas de produção e fornecimento de serviços para o mercado mundial devem ser mantidas a salvo da falta de civilidade dessas populações empobrecidas, verdadeiras vagas oceânicas, devem ser preservadas em sua atividade desordenada, até que elas também se tornem "supérfluas".

Não se visa à conquista ou à incorporação para ganhar certos recursos (não-humanos, é claro). Ao contrário, a orientação estratégica é manter bem longe do sistema o enorme contingente de "supérfluos" da periferia, vistos com toda desconfiança. As catástrofes produzidas pela própria economia universal de mercado devem ser isoladas o máximo possível. Desse ponto de vista, as correntes de refugiados devem ser barradas nas fronteiras ocidentais, e as regiões em conflito, "contentar-se" com o nível de pobreza. O imperialismo de segurança, nesse sentido, é ao mesmo tempo um imperialismo de exclusão em nome na "Fortaleza Europa" e da "Fortaleza América do Norte". O objetivo implícito só pode ser uma hierarquia da exclusão escalonada por continentes, a qual se estende, na Europa, de alguns poucos Estados diretamente associados à Otan e à UE (algo como a Hungria), passando por um leque de Estados-operetas só parcialmente vinculados (algo como a Croácia), até protetorados ou homelands de todo dependentes, geridos por organizações internacionais (algo como Kosovo).

Se, desde 1945, a concorrência entre os blocos capitalistas dos Estados Unidos e da UE era atenuada pelo interesse comum da concorrência com o bloco oriental e seu capitalismo de Estado, depois do fim da Guerra Fria a lógica do imperialismo de exclusão e segurança globais constitui um novo metainteresse comum, cujo móbil é a crise velada do sistema global produtor de mercadorias. A Otan transforma-se, de um instrumento da Guerra Fria num mundo bipolar, em polícia mundial num mundo unipolar, sob a batuta dos Estados Unidos, última potência planetária com seu incontrastável poderio bélico. Mas essa polícia mundial só pode funcionar se a Otan exigir uma espécie de monopólio global da força. Isso significaria que o aparato militar de todos os Estados que não podem ou não querem se integrar à Otan teria de ser forçosamente eliminado. Agindo assim, o próprio Ocidente põe em dúvida o princípio da soberania estatal e torna a ONU obsoleta: o capitalismo não é mais capaz de reconhecer sua própria ordem jurídica internacional.

É muito improvável, no entanto, que o imperialismo ocidental de segurança se instaure efetivamente. Os gigantescos gastos necessários para manter sob controle militar um mundo que se esboroa não é mais economicamente viável nem mesmo para a aliança ocidental. Os resultados obtidos até agora por tal polícia planetária já deixam a desejar. Antes, é de supor que Estados-pesadelos, dotados de mísseis e arsenais atômicos como a Rússia, a China, a Índia ou o Paquistão, que há muito se acham na berlinda da dinâmica global de crise, liberem forças destrutivas no momento do colapso interno de sua soberania, forças essas que botarão no chinelo a polícia mundial. Aliás, Milosevic será fichinha perto do que se arma no horizonte.

Simultaneamente, a própria soberania dos Estados ocidentais se esfarela. Mesmo a última potência mundial, com seu aparato militar, depende hoje em dia do movimento autônomo do capital financeiro transnacional, que solapa qualquer soberania política. Burocracias militares e político-econômicas supranacionais, com processos de decisão obscuros como a Otan e a UE, o Banco Mundial e o FMI, ganham dinâmica própria em relação às instituições politicamente legitimadas. Por fim, acontecimentos como o massacre dos colegiais em Littleton, os pogroms racistas de jovens alemães ou as bombas-relógios do "Combat 18" e dos "Lobos Brancos" em Londres mostram que a soberania estatal interna dos centros ocidentais se encontra tão ameaçada quanto no resto do mundo.

Em toda parte a concorrência econômica e social desenfreada destrói o domínio estatal, sem criar outra forma de vínculo comunitário. Para o século 21, portanto, delineia-se a tendência de uma "desestatização negativa": um número crescente de funções estatais será absorvido por organizações paraestatais sem controle algum. A atual soberania será substituída, de um lado, pelo império dos cartéis transnacionais, pelos fundos de capital financeiro e por rudimentos de uma polícia global, e, de outro, pelo império da máfia, dos senhores da guerra e dos grupos terroristas armados. É somente questão de tempo até que essas duas formas decadentes da sociedade capitalista unam esforços para, a ferro e fogo, sujeitar os 5 bilhões de pessoas desta Terra a uma ordem mundial que já está nos estertores.

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão; publicou no Brasil, entre outros, "O Colapso da Modernização" e "O Retorno do Potemkim" (Paz e Terra); é co-editor da revista "Krisis"; ele escreve uma vez por mês na série "Autores" da Folha.

Tradução de José Marcos Macedo.

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