terça-feira, 5 de maio de 2009

Entrevista sobre o livro Resistencia Libertaria

Em busca da memória anarquista

Dois historiadores recuperam e analisam a militância anarquista na Argentina dos anos 70, a partir do caso da Resistência Libertária, grupo que teve a maioria de seus militantes seqüestrados. Recuperam e analisam, também, suas formas de organização e as diferenças com outras agrupações.
Os historiadores Fernando López Trujillo e Verônica Diz são os autores da pesquisa.
A Resistência Libertária foi um grupo anarquista dos anos 70. Seus integrantes dedicaram-se ao trabalho de base sindical e comunitário, e tiveram ainda um braço armado que realizou ações para levantar fundos para a continuidade da militância.
Organizados como um partido de quadros, chegaram a possuir entre cem e cento e trinta militantes, a maioria dos quais seriam seqüestrados durante a ditadura. Tudo isso começa a ser conhecido agora, com o trabalho de Fernando López Trujillo e Verônica Diz, autores de um livro sobre este tema praticamente desconhecido.
López Trujillo foi militante da referida agrupação; historiador, em 1997 integrou o grupo fundador do Centro de Documentação e Investigação da Cultura de Esquerda (CEDINCI). Diz é jornalista e professora de história. Pertence à geração que entrou na vida política nos anos 90 e se especializou em feminismo e anarquismo.

Entrevista realizada por Laura Vales

LV: Por que se sabe tão pouco sobre essa militância anarquista?
FLT: Um dos motivos é como ela terminou: a organização foi destruída e os sobreviventes se exilaram fora do país. Também pesou o terror, porque cerca de 80% dos seus militantes passaram por centros clandestinos de tortura.

LV: De onde vinham estes militantes?
FLT: Apareceram muitos grupos anarquistas novos nos anos 71, 72 e 73 que se formaram no calor da mobilização social.

LV: No livro, vocês afirmam que estas pessoas tiveram pouca relação com as organizações pré-existentes.
FLT: Elas não tinham contato com os velhos redutos do movimento. Havia três ou quatro locais, que ainda hoje subsistem, que representavam o que ficou do velho movimento dos anos 20 e 30, mas aqueles novos os agrupamentos nasceram por fora deles e em geral nunca tiveram boas relações.

LV: Por que?
FLT: Em princípio porque a maioria destes locais havia sobrevivido sem se comprometer com a vida social. Enxergaram a chegada de novos grupos como um perigo.
VD: Há uma divisão que se repete historicamente, a concepção de um anarquismo militante e social, que se compromete e se envolve no trabalho com os outros setores da sociedade, oposta a outra posição de “eu não me misturo com ninguém”, que vai acompanhada de acusar a outra de alguma coisa.

LV: Do que, por exemplo?
VD: De ser marxista, ou de não ser anarquista, por exemplo. Essa é uma explicação do porquê estes caminhos se separaram nos anos 70 e também do silêncio em torno da história do livro. O exemplo mais cruel é o de Maria Éster Tello: voltou do exílio da França, com três filhos desaparecidos, os três da Resistência Libertária. Um dia, estava na biblioteca José Ingenieros e propôs: “vamos à marcha da resistência”. E alguém lhe disse: “mas não há nenhum anarquista desaparecido”.

LV: Eram universitários?
VD: Sim, mas a Resistência Libertária desenvolveu-se como um movimento operário, porque tinha inserção nas fábricas.

LV: Vocês contam que a Resistência Libertária propunha-se a lutar pela revolução e ao mesmo tempo contra o autoritarismo da esquerda.
FLT: Sim, tinha um caráter não-autoritário, adotava essa concepção bakuninista de militantes que atuam para organizar as massas, mas que não têm o plano de dirigi-las. O plano de trabalho era a construção do poder, não a tomada do poder, ou seja, não se pensava em alimentar o próprio partido, mas sim em ajudar a criar novas organizações. A Resistência Libertária se agrupou, por exemplo, na Frente Antiimperialista pelo Socialismo, que tinha definições amplas, pluralistas e democráticas. Então, lá pelo ano de 75, a Frente foi cooptada pelo PRT, perdeu essa autonomia e houve uma quantidade de grupos que se desligaram dela.

LV: Ou seja, a relação com o PRT foi de tensão.
VD: Houve tensão e colaboração. Em Córdoba e em La Plata foram compartilhadas certas experiências, pois os militantes eram companheiros de fábricas. Então, para certas operações havia coincidência; também trocavam materiais.

LV: E com os Montoneros?
FLT: Não, em geral a relação com os Montoneros era realizada com muito cuidado porque havia muitos infiltrados. Mas não há documentos sobre políticas de alianças. Por exemplo, não aparece na documentação da Resistência Libertária nada sobre a relação com o Partido Comunista Marxista Leninista de La Plata, que era muito estreita e vinha desde antes da criação da Resistência Libertária, porque o filho de Hebe de Bonafini era amigo dos Tello, freqüentava a casa deles todos os dias.
VD: A casa dos Tello funcionava como uma casa operativa. Muita gente que vinha do Uruguai passou por lá. Tinham uma carpintaria na qual faziam móveis com esconderijos que foram fornecidos a todas as organizações. Os Tello, pai e mãe, eram militantes anarquistas. Na sua casa iam velhos anarquistas expropriadores, era um lugar de reunião nos primeiros anos da Resistência Libertária de La Plata.

LV: O grupo fez ações armadas?
FLT: O problema é o que chamamos de ações armadas. A Resistência Libertária tinha um pequeno aparato militar com finalidade de autodefesa e de expropriação, ou seja, fazia operações de financiamento, ou, em termos comuns, roubos. Se isso é luta armada, bom… Eu creio que isso não é luta armada. Em todo caso, a Resistência Libertária nunca se propôs ser uma organização que operava militarmente contra o Estado.
VD: Mas há todo um mito que a Resistência Libertária era uma organização que praticava a luta armada, e existe uma discussão aberta sobre o tema. Algumas pessoas querem ver nesta organização uma guerrilha anarquista que não existiu, pelo motivo dos militantes andarem armados. Claro, era uma organização política que estava ativa durante a ditadura e obviamente tinha armas.
FLT: Todos tinham armas.
VD: Outra coisa é que a história muda, segundo o ano de militância e a pessoa que conta a história: alguns mais antigos, em La Plata, dizem: “Armas? Nunca! Fazíamos pic-nics e éramos muito horizontais…”. E devemos lembrar que a Resistência Libertária se organizava em células e trabalhava clandestinamente. Claro que, para alguns, é difícil acreditar que essa organização, que teve tantos membros, tomou um rumo diferente daquilo que alguns deles conheceram.
FLT: Esse é o problema: “que teve tantos membros”. Há uma quantidade de gente que deixou a organização em 75, o caminho da Resistência Libertária mudou, então há relatos precisos para os anos de 73 ou 72, mas não para 76.

LV: Porque é difícil estabelecer o que passou?
VD: É que há gente que não abriu a boca durante 30 anos. Por isso este livro é um trabalho inicial. Este é o caso de Rafael Flores, que foi secretário geral de um sindicato (o da seringueira em Córdoba), foi para o exílio e virou um estudioso do tango. Por mais que venha aqui para dar conferência, não quer falar do passado. Em Madri ele é uma personalidade… mas da música. Outros como Hebe Cáceres, deram testemunhos muito comprometedores nos tribunais, mas também se negam a manter contato. Há gente vivendo na Nicarágua e outros que só recentemente começam a querer contar suas histórias.
FLT: Além disso, para nós foi importante destacar a política de massas, não só o aparelho militar, que em última instância não foi o principal. Porque a estratégia era da guerra popular e prolongada, ou seja, estabelecia-se que, a longo prazo, o movimento operário ia gerar uma organização de condução política, e era o movimento operário que tinha que gerar uma organização militar capaz de enfrentar o Estado, que essa não era uma prerrogativa da Resistência Libertária.
VD: E era uma militância que não acumulava para o partido. Por exemplo, não fazia propaganda partidária, senão das organizações de base. Temos uma companheira que se chama Elsa Martinez, que está desaparecida. Era jornalista e a Faculdade de Jornalismo de La Plata registrou-a como uma desaparecida comum. Quando se vai às páginas onde está sua história, são descritas as circunstâncias de sua detenção e indica-se que, com certeza, ela foi seqüestrada por razões econômicas, porque não se conhecia sua militância. E ela era uma mulher de 40 anos, não estávamos falando de alguém que teve um entusiasmo passageiro; é um bom exemplo de qual era a fórmula. No caso dos Tello, a mãe sempre reclamou pelos filhos de forma clara, mas em muitos outros casos isso não aconteceu.

LV: Não se proclamavam anarquistas.
VD: É, mas a repressão só soube da Resistência Libertária quando seus militantes foram presos.

LV: Como aconteceu?
FLT: Começam a ser presos todos os militantes do Partido Comunista de La Plata. Por necessidade econômica da organização, em 77, eles haviam combinado uma série de operações de expropriação que ocasionaram grandes problemas de segurança à Resistência Libertária. Ela já havia sido reprimida em Córdoba e La Plata, mas em 78 foi reprimida em Buenos Aires e La Plata, ao mesmo tempo.

LV: Quantos militantes foram seqüestrados então?
FLT: Mais de 30. A maioria foi parar no Banco, outros na Automotores Orletti, lá para onde levaram todos os uruguaios.

LV: Que contribuição vocês acreditam que essa geração de anarquistas deixou?
FLT: Para nós, ela tem o valor de mostrar a experiência de um grupo que gerou políticas em função da organização das massas e não do recrutamento de militantes, ou seja, exatamente o contrário do que a esquerda faz nos últimos 20 anos. As experiências das assembléias no ano de 2001 mostraram como isso funciona, com a esquerda indo cooptar militantes.
VD: Devolve-se a memória ao anarquismo atual. Nós que militamos no anarquismo desde os finais do ano 90, fazíamos as reivindicações porque as compartilhávamos, mas sem conhecer nossa própria história. Conhecê-la é como ter encontrado um irmão mais velho.

Organização Socialista Libertária Argentina (OSL Argentina)

* Tradução Mônica Herrera

Extraído de http://va.vidasalternativas.eu/?p=1565

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