domingo, 28 de setembro de 2008

Como os ricos influenciam os meios de comunicação de massa?

Os anarquistas tem desenvolvido uma detalhada e sofisticada análise de como os ricos e poderosos usam a mídia para propagandear em seus próprios interesses. A melhor destas análises talvez seja «Propaganda Model» em Manufacturing Consent por Noam Chomsky e Edward Herman, cujas principais teses resumiremos nesta seção (veja também Necessary Illusions de Chomsky para análises suplementares deste modelo de mídia).

A «propaganda modelo» de Chomsky e Herman postula um conjunto de cinco «filtros» que atuam escondendo as notícias e outros materiais disseminados pela mídia. Estes «filtros» resultam em uma mídia que reflete os pontos de vista e interesses da elite e mobilizam «apoio aos interesses especiais que dominam a atividade estatal e privada». [Manufacturing Consent, xi de pág.]. Estes «filtros» são:
(1) tamanho, concentração de propriedades, riqueza do dono e natureza comercial das empresas que controlam os meios de comunicação de massa;
(2) o anúncio como fonte de renda primária dos meios de comunicação de massa;
(3) a confiança da mídia nas informações providas pelo governo, empresários, e «peritos» creditados e aprovados por fontes primárias e agentes do poder;
(4) o «flak» (respostas negativas a determinados relatórios da mídia) como meio de disciplinar as mídias; e
(5) o «anticomunismo» enquanto religião nacional e mecanismo de controle.

«A matéria-prima das notícias tem que atravessar sucessivos filtros que deixam passar apenas um resíduo limpo ajustado para a publicação» Chomsky e Herman sustentam também que tais filtros «fixam as premissas do discurso, da interpretação, e determinam a prioridade do interesse jornalístico, isso explica a base e o tamanho das operações das campanhas propagandisticas». [Manufacturing Consent, pág. 2]. Abaixo faremos uma breve análise da natureza destes cinco filtros (os exemplos foram retirados principalmente das mídias dos EUA).

Enfatizamos novamente, antes de continuar, que este é um resumo da tese de Herman e Chomsky e que não esperamos apresentar aqui a riqueza da evidência e do argumento disponível em Manufacturing Consent ou Necessary Illusions. Nós recomendamos consultar qualquer um destes livros para ter mais informação e evidências sobre a «propaganda modelo» usada pela mídia.

D.3.1 Como o tamanho e a concentração da propriedade, a riqueza do dono, e a natureza comercial das empresas que possuem os meios de comunicação de massa afetam o conteúdo da mídia?


Até mesmo um século atrás, para ter um substancial alcance, as mídias viram-se limitadas pelo grande tamanho do investimento necessário, e com o passar do tempo, esta limitação ficou tornou-se ainda maior. Como ocorre com qualquer outro bem dentro da dinâmica do mercado, isto significa que há barreiras naturais muito efetivas à entrada na indústria da mídia. Devido a este processo de concentração, a propriedade das principais mídias crescentemente concentrou-se em cada vez menos mãos. Como Ben Bagdikian enfatiza em seu livro Media Monopoly, os 29 maiores sistemas de mídia respondem por mais da metade da produção de todos os jornais, e pela maioria das vendas e público em revistas, radiodifusão, livros, e filmes. Destas mídias de «primeira linha» -- não menos que 10 e não mais que 24 sistemas -- juntamente com o governo e os serviços das redes, «definem a pauta das notícias e provêem grande parte das notícias nacionais e internacionais que vão até as linhas das mídias inferiories, e assim para o público geral» [Ibid., pág. 5]

As vinte e quatro companhias do topo são imensuráveis, por serem corporações cujo alvo é o lucro, seus donos e controladores são pessoas muito ricas. Muitas destas companhias estão completamente integradas ao mercado financeiro, de forma que as pressões dos acionistas, diretores, e banqueiros localizados no topo da pirâmide econômica, são poderosas. Estas pressões têm se intensificado nos últimos anos na medida em que as ações das empresas da mídia tornam-se as favoritas do mercado pelo aumento do desregramento da rentabilidade e pelo risco das aquisições.

Os gigantes de mídia também se diversificaram em outros campos. A GE e a Westinghouse, por exemplo, ambas donas das principais redes de televisão, são gigantescas companhias multinacionais, fortemente diversificadas e envolvidas em áreas controversas como produção de armas e energia nuclear. A GE e a Westinghouse dependem do governo para subsidiar suas pesquisas e investimentos na área militar e energia nuclear, e para criar um clima de favorável às suas vendas e investimentos no exterior. Tal dependência do governo também afeta as outras mídias.

Por serem grandes corporações com interesses internacionais de investimento, as principais mídias têm, naturalmente, uma tendência política direitista. Além disso, os membros da classe empresarial detem a maioria dos meios de comunicação de massa, dos quais dependem para continuar vendendo seus produtos e obter receita pela propaganda (que vem em troca dos anúncios das empresas privadas). As empresas também provêem uma substancial gama de «peritos» para programas de notícias gerando uma volumosa «bateria anti-aérea» de contra-argumentos às inquietações populares. As reivindicações que julgam ser de «natureza esquerdista» são inteiramente mergulhadas numa cortina de fumaça de desinformação fabricada pelos «peritos» em «bateria anti-aérea» como descreveremos abaixo.

Então Herman e Chomsky escrevem:

«os meios de comunicação de massa são empresas imensas; são controlados por pessoas muito ricas ou por gerentes que estão sujeitos a delicados constrangimentos pelos donos e por outras forças do mercado do lucro; eles são observados de perto, e tem importantes interesses comuns, o mesmo ocorre com as outras principais corporações, bancos, e governo. Este é o primeiro filtro poderoso que determina a escolha das notícias». [Ibid., pág. 14]

É desnecessário dizer que os repórteres e editores serão recrutados e permanecem em seus empregos com a condição de que o trabalho deles reflita os interesses e necessidades dos seus empregadores. Assim tanto um repórter radical como um editor ambos com os mesmos dons e habilidades muitas vezes acabam tendo carreiras muito diferentes dentro dessa indústria. A menos que o repórter radical mutile seu trabalho, é improvável que tal trabalho seja visto em sua forma original ou sem edições. Assim, a estrutura dentro da empresa de mídia tende não apenas a penalizar pontos de vista radicais como também a encorajar a aceitação do status quo como condição para avançar na carreira. Este processo de seleção torna aos donos desnecessário ordenar editores ou repórteres sobre o que fazer -- para serem bem sucedidos, pois tais profissionais acabam interiorizando os valores dos empregadores neles mesmos.

D.3.2 Qual o efeito da propaganda enquanto fonte de renda primária dos meios de comunicação de massa?


O negócio principal da mídia é vender seu público aos anunciantes. Os anunciantes por sua vez adquirem algo como que uma autoridade de fato, uma vez que sem o seu apoio a mídia deixaria de ser economicamente viável. E é a audiência abundante que desperta o interesse dos anunciantes. Como Chomsky e Herman destacam, «Dizer que a grande audiência reflete a 'democracia' nos meios de comunicação de massa é o mesmo que dizer que o sufrágio universal distribui renda!» [Ibid., p.16].

A discriminação política é portanto estruturada na distribuição de anuncios onde se dá ênfase às pessoas com dinheiro para comprar. Além disso, «muitas companhias sempre recusarão negociar com inimigos ideológicos e com aqueles que julgam danosos aos seus interesses». Assim a evidente discriminação acrescenta força ao «sufrágio universal distribui renda!». Adequadamente, os grandes anunciantes incorporados quase nunca patrocinam programas que contêm críticas sérias sobre suas atividades empresariais, como impactos ecológicos negativos, o funcionamento do complexo militar-industrial, ou o apoio e auxílio empresarial às ditaduras do Terceiro Mundo. Em termos gerais, os anunciantes preferem «evitar programas que envolvem questionamentos sérios e controvérsias pertubadoras que interferem no 'prazer das compras'». [Ibid., p. 18].

Isto também resultou em colocar o proletariado e os jornais radicais em uma séria desvantagem. Sem acesso à propaganda paga, até mesmo o jornal mais popular fica fora do páreo. Chomsky e Herman citam o jornal britânico pró-trabalho e pró-sindical Daily Herald como um exemplo deste processo. O Daily Herald tinha quase que o dobro dos leitores do The Times, Financial Times e The Guardian juntos, mas até mesmo com 8.1% da circulação nacional detinha apenas 3.5% de renda em propaganda na rede e assim não pôde sobreviver no «mercado livre».

Como o Herman e Chomsky destacam, um «movimento de massa sem qualquer apoio de uma mídia importante, e sujeito a grande hostilidade por parte da imprensa ativa, sofre um grande revés, e luta em séria desvantagem». [Ibid., pp. 15-16]. Com a quebra do Daily Herald, o movimento operário perdeu sua voz nas mídia populares.

O anúncio é, portanto, um efetivo filtro que determina novas preferências (e, realmente, a sobrevivência no mercado). .

D.3.3 Por que as mídias confiam nas informações providas pelo governo, empresários, e «peritos» reconhecidos e aprovados pelo governo e empresários?

Dois dos principais motivos para a confiança das mídias em tais fontes são economia e conveniência: Os dirigentes de cúpula determinam que as mídias concentrem os seus recursos onde as notícias importantes acontecem mais freqüentemente, onde os rumores e boatos são abundantes, e onde são fornecidas entrevistas coletivas regulares. A Casa Branca, o Pentágono, e o Departamento de Estado, em Washington, D.C., são os núcleos de tais atividades.

O governo e as fontes empresariais também têm o grande mérito do reconhecimento e da distinção pelo status e prestígio que carregam; além disso, eles têm a maior parte do dinheiro disponível para produzir um fluxo de notícias que as mídias podem usar. Por exemplo, o Pentágono tem um serviço de informações públicas que emprega muitas milhares das pessoas, gastando centenas de milhões de dólares todos os anos, para prover não apenas informações sobre indivíduos ou grupos dissidentes como também para dar informações sobre aqueles que tem ligações com tais grupos.

Apenas o setor empresarial tem os recursos para produzir informações públicas e propaganda ao nível do Pentágono e de outras corporações do governo. A Câmara de Comércio, um coletivo empresarial, recebeu em 1983 um orçamento para pesquisa, comunicações, e atividades políticas, de $65 milhões. Além da Câmara de Comércio dos EUA, há também milhares de estatais e câmaras de comércio locais e associações de comércio ocupando-se de relações públicas e atividades lobísticas.

Para manter sua posição preeminente enquanto fontes, o governo e as agências de notícias empresariais dedicam muito esforço para facilitar as coisas para as agências de notícias. Eles proporcionam às organisações da mídia instalações para reuniões, dão aos jornalistas cópias prévias de discursos e futuros relatórios; programam entrevistas coletivas em horários adequados para sejam publicadas em horários nobres; escrevem boletins de imprensa de uma forma que necessitam pouca edição; e cuidadosamente organizam entrevistas coletivas e sessões para que os fotógrafos tenham «oportunidade para fotografar». Isto significa que, com efeito, as grandes burocracias da elite do poder subsidiam os meios de comunicação de massa contribuindo para uma redução dos custos das mídias na aquisição e produção da matéria-prima das notícias. Deste modo, estas burocracias ganham um especial acesso às mídias.

Assim «os economistas determinam à mídia que concentre seus recursos onde as notícias significantes ocorrem com mais frequencia, onde abundam rumores e boatos importante, e onde haverá entrevistas coletivas regulares. . . [junto aos organismos estatais], aos responsáveis pelas corporações empresariais e grupos de comércio, como também com fornecedores que regularmente fornecem histórias de interesse jornalístico. Estas burocracias apresentam um grande volume de material que transmite às demandas das organisações de notícias um fluxo seguro, demarcado». [Ibid., pp. 18-19]

O domínio das fontes oficiais vai, naturalmente, ser debilitado pela existência de fontes não oficiais altamente respeitáveis que dão visões dissidentes com grande autoridade. Para aliviar este problema, a elite do poder usa a estratégia da «cooptação dos peritos» -- quer dizer, colocando-os na folha de pagamento como consultores, fundeando suas pesquisas, e organisando institutos de pesquisas que os contratarão diretamente, ajudando-os a disseminar as mensagens que julgarem essenciais aos interesses da elite. «Os peritos» nas entrevistas televisivas e nos noticiários são freqüentemente retirados de tais organisações cujos fundos vem principalmente do setor empresarial e de famílias ricas -- um fato que nunca é, naturalmente, mencionado nos programas onde eles aparecem.

D.3.4 De que forma o «flak» é usado pelos ricos e poderosos como meio de disciplinar a mídia?


Usar «fogo antiaéreo» ou «flak» em inglês, significa reagir negativamente a uma declaração ou programa vinculado pela mídia. Isso pode ser expresso por telefonemas, cartas, telegramas, mensagens de e-mail, abaixo-assinados, processos, falas, contas diante do Congresso, ou outras formas de reclamação, ameaça, ou castigo. O fogo antiaéreo pode ser produzido através de organisations ou pode vir de ações independentes de indivíduos. Um fogo antiaéreo por campanhas em larga escala, por organizações ou indivíduos com recursos significativos, pode ser incômodo e custar caro às mídias.

Os anunciantes estão muito preocupados em evitar ofender distritos eleitorais que poderiam produzir flak, em suas buscas por uma programação inofensiva pressiona, as mídias para que evitem abordar determinados fatos, posições, ou programas que provavelmente estimularão o flak. O tipo mais incômodo de flak vem dos empresários e do governo, que possuem fundos para produzí-lo em larga escala.

Por exemplo, durante os anos setenta, a comunidade empresarial patrocinou a criação de instituições como American Legal Foundation, Capital Legal Foundation, Media Institute, Center for Media and Public Affairs, e Accuracy in Media (AIM), que podem ser consideradas como organisações projetadas para o propósito específico de produção de flak. A Freedom House é a mais velha deste tipo de organização nos EUA que não tinha outro desígnio senão a produção de flak, e tornou-se o modelo para as organizações mais recentes.

O Media Institute, por exemplo, foi fundado em 1972 sob os auspícios de ricos empresários, patrocinando projetos de monitoração de midia, conferências, e estudos da mídia. O principal foco de seus estudos e conferências foi o suposto fracasso das mídias em retratar convenientemente os negócios e proporcionar um peso adequado ao ponto de vista empresarial, mas também patrocinou trabalhos como as preconceituosas «exposições» de John Corry sobre a esquerda nos meios de comunicação de massa.

O próprio governo é principal produtor de flak, pelos seus constantes ataques, ameaças, e «correções» da mídia, tentando conter qualquer divergência em torno das linhas de propaganda estabelecidas na política exterior ou doméstica.

É importante destacar que se as máquinas de flak atacam continuamente as mídias, as mídias tratam bem àqueles que as acionam. Mas se as mídias efetivamente ignoram as críticas radicais (como o «modelo de propaganda»), o flak raramente recebe atenção respeitosa, seu papel de propagandistico, suas ligações a corporações e programas da direita nem mesmo são analizados ou mencionados.

D.3.5 Por que a elite de poder usa o «anticomunismo» como religião nacional e mecanismo de controle?

«Comunismo», ou mesmo qualquer forma de socialismo, é considerado claramente que como o grande mal pelos empresários ricos, assim como as idéias de propriedade coletiva de bens produzidos, que dão aos trabalhadores mais poder de pechincha, ou que proporcionam aos cidadãos ordinários mais voz na tomada de decisão das políticas públicas ameaçando a real raiz da posição de classe e o status de superioridade da elite.

Conseqüentemente, a ideologia do anticomunismo foi muito útil, porque ela pode ser usada desacreditar qualquer um que defenda políticas nocivas aos interesses empresariais. A ideologia do anticomunismo também ajuda a dividir a esquerda e os movimentos dos trabalhadores, justifica apoio no exterior aos regimes direitistas pró EUA como um «mal menor» do que o comunismo, e desencoraja os liberais a se opor aos regimes de direita através do medo de serem marcados com ferro como hereges da religião nacional.

Até o fim da Guerra Fria, o anti-comunismo foi extensivamente usado para mobilizar apoio para as cruzadas da elite. Agora, a «Guerra das Drogas» ou o «anti-terrorismo» freqüentemente são apresentados ao público como os odientes e temerosos «inimigos oficiais». Assim, a Guerra da Droga foi a desculpa para que a administração Bush invadisse o Panamá, e os «combatentes narco-terroristas» foram mais recentemente a razão oficial por transportar artefatos e equipamentos militares de vigilância para o México (que está sendo na verdade usado contra os rebeldes zapatistas em Chiapas, cuja insurreição está ameaçando desestabilizar o país colocar em risco os investimentos dos EUA).

Claro que ainda há oficialmente alguns estados inimigos comunistas, como o Norte Coréia, Cuba, e China, e os abusos ou violações dos direitos humanos nestes países são sistematicamente exageradas pelas mídia ao mesmo tempo em que são subestimados ou ignorados abusos semelhantes em estados clientes. Chomsky e Herman se referem à posição da mídia com relação às vítimas de abusos em estados inimigos como vítimas dignas, ao passo que as vítimas que sofrem nas mãos de clientes ou amigos dos EUA são vítimas indignas. Histórias sobre vítimas dignas são muitas vezes transformadas em objetos centrais das campanhas de propaganda, para marcar pontos políticos contra os inimigos.

«Se a elite da comunidade empresarial e a mídia sentem que uma história é útil e dramática, eles a focalizam intensamente e a usam diante do público. Foi o caso, por exemplo, do ataque pelos soviéticos ao avião 007 coreano da KAL no começo de setembro de 1983, que permitiu uma extensa campanha para denegrir um inimigo oficial especialmente em vista da administração e dos planos militares de Reagan».

«Em contraste, o ataque por Israel dirigido a um avião de civil da Líbia em fevereiro de 1973 não produziu nenhum clamor no Ocidente, nenhuma denúncia de 'assassinato de sangue frio', e nenhum boicote. Esta diferença de tratamento foi explicada com precisão pelo New York Times: 'Reconhecer a culpa de Israel pela derrubada do avião líbio na península do Sinai na última semana não servia a nenhum propósito útil'. Mas houve um 'propósito útil' ao focalizar o ato soviético, uma grande campanha de propaganda». [Ibid., p. 32]

D.3.6 Não é uma «teoria da conspiração» sugerir que a elite usa as mídias como instrumento de propaganda?


Chomsky e Herman escrevem sobre isso no prefácio de Manufacturing Consent: «As críticas institucionais que apresentamos neste livro são comumente rebatidas por comentaristas do establishment como 'teorias da conspiração', mas trata-se apenas de uma evasiva. Não usamos nenhuma espécie de hipótese 'conspirativa' para explicar a performance dos meios de comunicação de massa. Na realidade, o foco central de nossa análise situa-se na observação do 'livre mercado', que em grande parte opera em virtude das forças de mercado».

Como atuam tais «forças de mercado»? Um típico e importante procedimento é o processo de «purificação» que determina quem pode ou não trabalhar nas principais mídias. «A maioria daqueles que arrumam emprego nas mídias são escolhidos entre aqueles que adotam a ideologia da direita, com preconceitos interiorizados, e pessoalmente afeitos aos constrangimentos da propriedade, da [burocracia] organizacional, do mercado, e do poder político».

Em outras palavras, os funcionários mais importantes das mídias aprendem a interiorizar os valores de seus patrões. «A censura é em grande parte auto-censura por parte dos repórteres e comentaristas que ajustam a realidade às exigências organizacionais da empresa que trabalham, tais profissionais afinam seu pensamento ao pensamento das pessoas de nível mais alto dentro das organisações da mídia. Assim, com naturalidade, interiorizam, e implementam os constrangimentos impostos pelo mercado proprietário privado e outros centros governamentais de poder». [Ibid., p. xii].

Mas ainda há uma dúvida, não se trata ainda da teoria da conspiração a idéia de que todos os líderes da mídia detem valores semelhantes? Não. Tais líderes «fazem coisas semelhantes porque eles vêem o mundo pelas mesmas lentes, estão sujeitos a constrangimentos e motivos semelhantes, consequentemente acabam manipulando histórias ou mantendo silêncio conjunto numa ação coletiva tácita e dirigida». [Ibid.]

O fato dos líderes de mídia compartilharem os mesmos valores fundamentais não significa, porém, que as mídias são um monólito sólido em todos os assuntos. Os poderosos freqüentemente discordam sobre as táticas que serão necessárias para atingir suas metas, e isto reflete-se nos debates da mídia. Mas as visões que desafiam a legitimidade dessas metas ou sugerem que o poder do estado tende mais a atender os interesses da elite do que os interesse «nacional» serão excluídas dos meios de comunicação de massa.

Portanto, o «modelo da propaganda» que faz com que os administradores da General Motors atuem no sentido de manter e aumentar seus lucros, nada tem a ver com coisas como «teoria da conspiração» .

D.3.7 A «tese da propaganda» na mídia não se contrapõe à natureza «opositora» de muitas reportagens, como aquelas que enfrentam o governo e a corrupção, por exemplo?

Como destacamos acima, a reivindicação que as mídias são «oposição» ou (mais improvável) que elas têm uma «tendência à esquerda» é devida às organizações de Relações Públicas da direita. Isto significa que alguns «fatos inconvenientes» são permitidos atravessar os filtros para dar ocasionalmente uma aparência de «objetividade» -- precisamente para as mídias poderem negar as acusações de se ocupar com propaganda. Como Chomsky e Herman atestam: «Na 'naturalidade' destes processos, permite-se que fatos inconvenientes venham à tona, ainda que com base em suposições, mas a dissensão fundamental é virtualmente excluida dos meios de comunicação de massa (embora permitidos na imprensa marginalizada). Um sistema de propaganda torna-se mais crível e efetivo no contexto patriótico do que no contexto da censura oficial». [Ibid., Prefácio].

Ainda nessa questão acerca da natureza «opositora» das mídias, Herman e Chomsky destacam conceitos de tais mídias direitistas por máquinas de Relações Públicas como a Freedom House. Porém, descobre-se logo que «seus elogios à independência e ao grande zêlo das mídias, ilustram exatamente o oposto». [Ibid.]. Tal flak, inteiramente inútil diante de uma análise séria, ajuda reforçar o mito de uma «mídia de oposição» (do ponto de vista da direita, o «nível real de subordinação à autoridade estatal é frequentemente julgado insatisfatório» e esta é a fonte da crítica deles! [Ibid., pág. 301]). E tais coisas são levadas a sério pelas mídias.

Então, a natureza «opositora» das mídias é um mito, mas isso não significa que as mídias não apresentem uma análise crítica. Herman e Chomsky de fato argumentam que os «meios de comunicação de massa não são um sólido monólito em todos os assuntos». [Ibid., pág. xii] e não negam que isso venha à tona (às vezes pela própria mídia). Mas, argumentam, «a discordancia das mídias sobre um ou outro tema. . . não prova absolutamente nada sobre a suficiência ou precisão das suas coberturas. Na realidade, os meios de comunicação de massa são em larga escala literalmente insuficientes e imprecisos. . . Mesmo quando a coisa mais importante é a simples apresentação do fato -- sua colocação, tom, repetições, e pano de fundo, bem como os fatos relacionados, dão a ele um determinado significado (ou provêem uma determinada compreensão). . . não há nenhum mérito nisso pois tais coisas podem ser feitas por uma investigação diligente e céptica, quando há preconceito aos radicais o fato acaba sendo suprimido». [Ibid., pp xiv-xv]

Extraído de FAQ ANARQUISTA http://www.geocities.com/projetoperiferia5/secD3.htm

sábado, 27 de setembro de 2008

Até que ponto o estatismo e o capitalismo afetam a sociedade?

D.1 Por que o estado intervém?

O estado é forçado a intervir na sociedade por causa dos efeitos anti-sociais do capitalismo. A teoria abstrata individualista do «cada um por si» na qual o capitalismo se baseia, resulta em um alto grau de estatismo, uma vez que o próprio sistema econômico não possui nenhum meio para combater sua própria dinâmica socialmente destrutiva. O estado também tem que intervir na economia, não apenas para proteger os interesses da classe dominante mas também para proteger a sociedade do impacto atomizante e destrutivo do capitalismo. Além disso, o capitalismo tem uma tendência inerente de provocar períodos recessivos ou depressivos, e a tentativa de minimizá-los tornou-se parte da função do estado. Porém, uma vez que é impossível evitá-los (eles são gerados dentro do próprio sistema -- veja seção C.7) na prática, o estado apenas tenta adiá-los e abrandar sua gravidade. Comecemos pela necessidade da intervenção social.

A base do capitalismo é transformar trabalho e terra em mercadoria. Porém, como Karl Polyani demonstra, «trabalho e terra não são outra coisa senão a própria vida, são ambientes naturais vitais. Incluir o trabalho e a terra no mecanismo de mercado implica em subordinar a essência da própria sociedade às leis do mercado». [The Great Transformation, pág. 71]. Isto significa que a sociedade humana «torna-se um acessório do sistema econômico», com toda a humanidade colocando-se inteiramente nas mãos da oferta e da procura. Mas tal situação não «poderia existir por um período de tempo sem aniquilar aquilo que existe de humano e de substancial da sociedade; destruiria o homem fisicamente e transformaria seu ambiente em um deserto».
[Ibid., pp. 41-42]

Esperar que uma comunidade permaneça indiferente ao açoite do desemprego, às perigosas condições de trabalho, e a uma jornada de 16 horas diárias de trabalho, constantemente trocando de local de trabalho e de profissão, fora o trauma moral e psicológico que acompanha tudo isso-- apenas porque, no final das contas, os efeitos
econômicos poderiam ser melhores -- é um absurdo.

Semelhantemente, esperar que os trabalhadores permaneçam, por exemplo, indiferentes às péssimas condições de trabalho, esperando pacificamente por um novo patrão que lhes ofereça condições melhores, ou esperar que os cidadãos esperem que os capitalistas comecem voluntariamente a agir com responsabilidade para com o meio ambiente, é assumir um papel servil e apático para a humanidade. Afortunadamente, a mão-de-obra recusa-se ser mercadoria e os cidadãos recusam-se ficar parados sem fazer nada enquanto os ecossistemas do planeta são destruídos.

Então, a intervenção estatal acontece como uma forma de proteção aos efeitos maléficos resultantes do funcionamento do mercado. Como o capitalismo está baseado na atomização da sociedade em nome da «liberdade» no mercado competitivo, não é de surpreender que a defesa contra os efeitos anti-sociais do mercado adquira um formato estatista -- havendo poucas outras estruturas capazes de prover tal defesa (as instituições sociais foram arruinadas, senão esmagadas, pela elevação do capitalismo ao primeiro plano).

Assim, ironicamente, o «individualismo» produz uma tendência «coletivista» dentro da sociedade na medida em que o capitalismo destrói as formas comunais de organisação social em favour de outras baseadas no individualismo abstrato, na autoridade, e na hierarquia -- todas as «qualidades» encarnadas no estado. Em uma sociedade livre (isto é, comunal), a autodefesa social não seria estatista, seria de natureza semelhante ao sindicalismo e à cooperação -- indivíduos que trabalham juntos em associações voluntárias para assegurar uma sociedade livre e justa (veja seção I).

Além da proteção social, a intervenção estatal é requerida para proteger a economia de um país (e assim, os interesses econômicos da classe dominante). Como Noam Chomsky demonstra, até mesmo os E.U.A., o berço da «livre-empresa», foi marcado por «uma ampla intervenção na economia depois da independência e conquista dos recursos e dos mercados [...] simultaneamente à ereção de um desenvolvimento estatal centralizado comprometido com a criação e entrincheiramento de indústrias e comércio domésticos com produção local subsidiada, e barrando importações britânicas mais baratas, construiu-se uma base legal para o poder corporativo privado. De várias outras maneiras escaparam do estrangulamento, e numerosas outras formas proveram um escape das vantagens comparativas ([i])». [World Orders, Old and New, p. 114]

No caso da Inglaterra e de um conjunto de outros países (e mais recentemente Japão e os países recentemente industrializados do Extremo Oriente, como a Coréia) a intervenção estatal foi, bem estranhamente, a chave para desenvolvimento e para o sucesso no «mercado livre». Em outros países «desenvolvidos» que tiveram o infortúnio de se sujeitar às «reformas do livre-mercado» (por exemplo o Ajuste Estrutural do Programa neo-liberal) em vez de seguir o intervencionismo dos japoneses e dos modelos coreanos, os resultados foram devastadores para a grande maioria, com aumentos drásticos na pobreza, o aumento dos sem-teto, desnutrição, etc. (para a elite, os resultados foram bem diferentes, naturalmente).

No século XIX, os estados apenas aderiram ao laissez-faire porque poderiam beneficiar-se dele e tinham uma economia suficientemente forte para sustentá-lo. «Apenas na metade do século XIX, então suficientemente poderosa para enfrentar qualquer competição, a Inglaterra [ela mesmo!] aderiu ao livre-câmbio». [Noam Chomsky, Op. Cit., pág. 115].

Antes disto, foram usados tanto o protecionismo como outros métodos para provocar o desenvolvimento econômico. Uma vez que o laissez-faire começou a arruinar a economia do país, foi revocado imediatamente. O protecionismo, por exemplo, frequentemente costuma proteger uma economia frágil e o militarismo sempre foi o modo favorito da elite dominante para ajudar a economia, como ainda é o caso, por exemplo, no «Sistema do Pentágono» dos E.U.A. (veja seção D.8).

A intervenção do estado sempre foi uma característica do capitalismo. Como disse Kropotkin, «o sistema de 'não-intervenção do Estado' nunca existiu em parte alguma. Em todos lugares onde o Estado esteve, a intervenção do Estado foi, e ainda é, o pilar principal e o criador, direto e indireto, do Capitalismo e de seu poder em cima das massas. Em nenhuma parte, desde que os Estados cresceram, as massas tiveram a liberdade de resistir à opressão dos capitalistas [...] O estado sempre interferiu na vida econômica em favor do explorador capitalista. Sempre lhe concedeu proteção no roubo, deu ajuda e apoio para seu contínuo enriquecimento. E não poderia ser diferente. Agir assim era uma das funções -- a missão principal -- do Estado». [Evolution and Environment, pp. 97-8].

Suas limitadas tentativas ao laissez-faire sempre foram um fracasso, resultando em um retorno às suas raízes estatistas. O processo do laissez-faire seletivo e coletivista foi, e é, uma característica do capitalismo no passado remoto. Realmente, como disse Noam Chomsky, «aquilo que é chamado de 'capitalismo' é basicamente um sistema de mercantilismo corporativo, com gigantescos e largamente irresponsáveis tiranos privados que exercitam vasto controle em cima da economia, de sistemas políticos, e da vida social e cultural, operando em íntima cooperação com estados poderosos que intervêm maciçamente na economia doméstica e na sociedade internacional. Isso é dramaticamente verdade nos Estados Unidos, ao contrário de muitas ilusões. Os ricos e privilegiados não estão nem um pouco mais dispostos a enfrentar disciplina de mercado do que estiveram no passado, e estão pouco se lixando se isto é ou não bom para a população em geral». [Anarquismo, Marxismo e Esperança para o Futuro, Red and Black Revolution, cap. 2]

Então, ao contrário do que normalmente se pensa, a intervenção estatal sempre estará associada ao capitalismo devido a:
(1) sua natureza autoritária;
(2) sua inabilidade em prevenir os resultados anti-sociais do mercado competitivo;
(3) sua suposição equivocada de que a sociedade deveria ser «um acessório ao sistema econômico»;
(4) o interesse de classe da elite governante; e
(5) a necessidade em primeiro plano de impor suas relações sociais autoritárias em uma população relutante.

A intervenção do estado é tão natural para o capitalismo como o vínculo empregatício, a escravidão assalariada. Como resume Polyani, «o movimento contrário ao liberalismo econômico e ao laissez-faire possuiu todas as características inconfundíveis de uma reação espontânea [...] e uma mudança similar de laissez-faire para 'coletivismo' aconteceu em vários países em uma fase definida do desenvolvimento industrial pelo qual passavam, apontando a profundidade e a independência das causas subjacentes do processo». [Op. Cit., pp. 149-150].

O «governo não pode desejar uma sociedade descentralizada, pois isto significaria que tanto o governo como a classe dominante se veriam privados de sua fonte de exploração; nem pode deixar a sociedade sustentar-se a si mesma sem intervenção oficial, pois o povo perceberia logo que governo só serve mesmo para defender os donos de propriedades [...] e faria de tudo para se libertar tanto do governo como dos donos de propriedades». [Errico Malatesta, Anarchy, p. 22].

É importante não esquecer que a intervenção estatal foi necessária para dar prioridade ao «livre» mercado. Citando novamente Polyani, «na medida em que o sistema [o mercado] não é estavel, os economistas liberais precisam e, sem qualquer exitação, pedem a intervenção do estado para estabelecê-la, e uma vez estabelecida pedem para mantê-la». [Op. Cit., pág. 149]. Protecionismo e subsídio (mercantilismo ) -- somado ao uso liberal da violencia do estado contra a classe trabalhadora -- torna-se uma exigencia fundamental na priorização da proteção do capitalismo e da indústria. (veja seção F.8 - Qual papel o estado exerceu na criação do capitalismo?).

Em resumo, embora o laissez-faire possa aparecer eventualmente como base ideológica do capitalismo -- a religião que justifica o sistema -- seria uma coisa rara se fosse realmente praticado. Assim, enquanto os ideólogos elogiam a «livre-empresa» como o manancial da moderna prosperidade, as corporações e companhias banqueteiam na mesa do Estado.

O recente entusiasmo pelo «mercado livre» é na realidade o produto de um longo surto de prosperidade, que por sua vez foi um produto da guerra econômica coordenada pelo estado e pela altamente intervencionista economia keynesiana (um surto de prosperidade que os apologistas do capitalismo usam, ironicamente, como «evidência» de que o «capitalismo» funciona), trata-se de mais uma dose insalubre de nostalgia a um passado que nunca existiu.

É estranho como uma coisa que nunca existiu pudesse produzir tanto!

([i])vantagem comparativa. Diz-se da mercadoria (merchandise) que uma nação (nation) pode produzir e exportar, para a qual sua desvantagem absoluta (absolute disadvantage) seja menor. Por outro lado, a nação deve importar a mercadoria em que sua eficiência (efficiency) seja menor e na qual tem uma desvantagem comparativa (comparative disadvantage). Portanto, essa nação tende a especializar-se na produção de bens em que tenha maior vantagem comparativa em termos de custo.



D.1.1 A intervenção estatal é a raiz de todos os males?

Usualmente, não. Mas isso não significa que a intervenção não exerça efeitos danosos na economia ou na sociedade. Devido à sua natureza centralizada e burocrática é impossível que não produza efeitos perversos. Em muitos casos, porém, a intervenção do estado inevitavelmente acaba gerando um agravamento da situação. Como Malatesta destaca, «a evidência prática [é] que qualquer ação do governo é sempre inspirada pelo desejo de dominação, sempre engendrada para defender e ao mesmo tempo aumentar e perpetuar seus privilégios e os privilegios da classe que representa e defende». [Anarchy, p. 21].

Porém, para os economistas liberais (ou «neo-liberais» e «conservadores» como são chamados hoje), a intervenção estatal é a raiz de todos os males, e para eles, é precisamente a interferência do estado no mercado que causa os problemas que a sociedade atribui ao mercado.

Mas tal posição é ilógica, pois «quem fala em regular fala em limitar: mas como limitar um privilégio antes que ele venha a existir? [...] seria um efeito sem uma causa» e assim «regular é um corretivo para privilegiar» e não vice-versa. [P-J Proudhon, System of Economic Contradictions, pág. 371].

Como Polyani explica, a premissa neo-liberal é falsa, porque a intervenção estatal sempre «lida com algum problema que surge fora das modernas condições industriais ou, de qualquer modo, do método com que o mercado lida com eles». [Karl Polyani, Op. Cit., pág. 146]. Na realidade, algumas medidas «coletivistas» normalmente foram levadas a cabo por partidários convictos de que o laissez-faire era como que um inflexível método de oposição a todas as formas de socialismo (freqüentemente introduzido para arruinar o apoio às idéias socialistas causadas pelos excessos do «mercado livre» capitalista).

Não se trata aqui da intervenção estatal agir fora de seu ambiente, ela ocorre por causa das pressões sociais e performances econômicas. Isto pôde ser observado em meados do século XIX quando o laissez-faire brilhou com mais intensidade na história do capitalismo.

Como discute Takis Fotopoules, «a tentativa para estabelecer o puro liberalismo econômico, no sentido do livre-câmbio, um suporte competitivo ao mercado e ao Padrão Ouro [ii], não durou mais de 40 anos, e antes das décadas de 1870 e 1880, a legislação de protecionista voltou à tona. [...] Também foi significante o fato de todos os principais poderes capitalistas atravessarem um período de livre-câmbio e laissez-faire, seguido por um período de legislação anti-liberal». [The Nation-state and the Market, p. 48, Society and Nature, Vol. 3, pp. 44-45].

A razão do retorno à legislação protecionista foi a Depressão de 1873-86 que marcou o fim da primeira experiência em cima do puro liberalismo econômico. Paradoxalmente, então, a tentativa de liberalizar os mercados conduziu a mais regulações. Levando em conta nossa análise prévia, isto não é surpreendente. Nem os donos do país nem os políticos desejam ver a sociedade destruída, resultando em abrir caminho ao laissez-faire. Os apologistas do capitalismo fazem vista grossa ao fato de que «no começo da Depressão, a Europa alcançara o auge do livre-câmbio». [Polyani, Op. Cit., pág. 216]. A intervenção Estatal ocorreu em resposta às rupturas sociais resultantes do laissez-faire. Não foi ela que as causou.

Semelhantemente, é uma falácia declarar, como Ludwig Von Mises fez, que «enquanto houver auxílio desemprego, haverá desemprego».

Esta declaração não só é apenas anti-historica como também ignora a existência do desemprego involuntário que fez com que o estado comece a pagar um auxílio no intuito de eliminar tanto a possibilidade de crimes quanto a de auto-ajuda do proletariado, o que possivelmente arruinaria o status quo. A elite está bem atenta ao perigo que representa a organização dos trabalhadores em seu benefício próprio.

Tristemente, na procura por respostas ideologicamente corretas, os apologistas do capitalismo frequentemente ignoram o bom senso. O povo que acredita que o povo existe para a economia e não a economia para o povo, sacrifica tanto a si como sua sociedade hoje em benefício de supostas vantagens economicas nas gerações futuras (o que na realidade, implica em lucros atuais para a classe dominante).

É o mesmo que aceitar a ética matemática de que um aumento no tamanho da economia amanhã vale mais que uma ruptura social hoje. Assim Polyani conclui que: «uma calamidade social é principalmente um fenômeno cultural, não um fenômeno econômico que possa ser medido através de estatísticas de renda» [Op. Cit., pág. 157]. E é da própria natureza do capitalismo ignorar e menosprezar o que não pode ser medido.


([ii] padrão-ouro. Sistema monetário há muito abandonado em todo o mundo em que cada unidade da moeda corrente de um país tinha um lastro equivalente em ouro, podendo ser resgatada em espécie.



D.1.2 É verdade que a intervenção estatal resulta da democracia?


Não. A intervenção social e econômica pelo estado moderno começou muito tempo antes da difusão do voto universal. Na Inglaterra, por exemplo, foram introduzidas medidas «coletivistas» em um momento em que ainda existiam restrições de propriedade e de sexo aos votantes.

A natureza centralista e hierárquica dos «representantes» significava que a população em larga escala tinha um reduzido controle real dos políticos, que eram muito mais influenciados por grandes empresários, lobbyes de grupos corporativos, latifundiários e burocratas estatais. Isto significa que enquanto as pressões verdadeiramente populares e democráticas são contidas pelo estado capitalista, os interesses das elites encontram plena satisfação pelas ações estatais.

O «New Deal», ou novo pacto, juntamente com as medidas keynesianas do pós-guerra, a não foi outra coisa senão o estado intervindo para sair do buraco econômico da depressão, movido mais por razões materiais do que pela democracia.

Assim, Takis Fotopoules argumenta: «o fato . . . da 'confiança empresarial' estar em seu mais baixo nível explica em larga escala a atitude bem mais tolerante daqueles que controlam a produção, aceitando medidas que interferem em seu próprio poder econômico e lucros.

Na realidade, isso apenas ocorre quando -- e contanto que -- o intervencionismo estatal receba o sinal verde daqueles que de fato controlam a produção». [The Nation-state and the Market, p. 55, Society and Nature, Vol. 3, pp. 44-45].

Um exemplo deste princípio pode ser visto em 1934 no Wagner Act nos E.U.A. que deu aos trabalhadores sua primeira e última vitória política naquele país. O ato legalizou as reuniões sindicais, mas limitou as lutas operárias a procedimentos legais, significando que eles poderiam ser controlados mais facilmente. Além disso, esta concessão foi uma forma de apaziguamento que resultou em que os envolvidos se preocupassem mais nas ações sindicais do que com o questionamento das bases fundamentais do sistema capitalista.

Uma vez superado o medo do militante sindical, o Wagner Act foi arruinado e solapado por leis novas, leis que tornaram ilegais as táticas que forçavam os políticos a priorizar o Wagner Act, aumentando assim os poderes dos patrões em cima dos trabalhadores.

O clássico chavão ideológico liberal de que 'a democracia popular é uma ameaça ao capitalismo' é a raiz da falácia de que a intervenção estatal resulta da democracia. A noção de que a limitaçao dos privilégios dos ricos fará com que surjam leis que beneficiem a todos tem mais a ver com a fé comovedora dos liberais clássicos no altruísmo dos ricos do que com sua compreensão da natureza humana ou da história. Só o fato deles se juntarem a John Locke e reivindicar que todos tem que cumprir as regras firmadas pelos governantes diz muito sobre o conceito que eles tem de «liberdade».

Naturalmente, alguns dos liberais clássicos mais modernos (libertários de direita, por exemplo) defendem um «estado democrático» que não interfira em assuntos econômicos. Porém, esta não é nenhuma solução na medida em que apenas livra a cara da responsabilidade estatista diante dos reais e prementes problemas sociais causados pelo capitalismo sem colocar qualquer outra coisa em seu lugar.

Os anarquistas concordam que o estado, devido a sua centralização e burocracia, esmaga a natureza espontânea da sociedade e é um impedimento ao progresso e à evolução social. Ora, deixar o mercado seguir seu curso ao seu bel prazer significa que o povo deve se contentar em permanecer sentado enquanto observa as forças do mercado destroçarem suas comunidades e meio-ambiente. Libertar-se da intervenção estatal sem libertar-se do capitalismo e criar uma sociedade livre, comunal, implicaria em menos meios de alcançá-la do que há agora. Os resultados de tal política, como a história mostra, seria uma catástrofe para o proletariado (e para o meio ambiente) e apenas benéfica à elite (seus autores, naturalmente).

A implicação da falsa premissa que se há intervenção é porque há democracia é que o estado existe para o benefício da maioria que usa o estado para explorar a minoria rica! Incrivelmente, muitos apologistas capitalistas aceitam isto como uma conclusão válida da premissa deles, embora seja obviamente tal premissa além de ser um reductio ad absurdum ela também vai contra os fatos da história.

D.1.3 A intervenção estatal tem um caráter socialista?


Não. O socialismo libertário tem a ver com auto-libertação e autogestão das atividades da pessoa. Deixar o estado agir em nosso lugar opõe-se diametralmente a essa idéia. Além disso, essa questão insinua que socialismo está conectado com seu carrasco, o estatismo, e que tal socialismo significa ainda mais controle burocrático e até mesmo mais centralização.

A identificação do socialismo com o estado é algo que tanto os estalinistas como os apologistas capitalistas estão de acordo. Porém, como veremos na seção H.2, que o «socialismo estatal» na realidade não passa de capitalismo estatal -- a transformação do mundo em «um escritório e uma fábrica» (usando a expressão de Lenin). Não é por acaso que a maioria das pessoas sãs unem-se aos anarquistas rejeitando-o. Quem quer trabalhar debaixo de um sistema no qual, se a pessoa não gosta do patrão (isto é, o estado), ela não pode nem mesmo deixá-lo?

A teoria de que intervenção estatal é «socialismo progressivo» conduz descaradamente à ideologia do laissez-faire capitalista, sem contar que laissez-faire capitalista está mais para ideologia do que para realidade. O capitalismo é um sistema dinâmico e evolui com o passar do tempo, mas isto não significa que o fato de mover-se para longe de seu ponto de partida teórico, negue sua natureza essencial e se torne socialista. O capitalismo nasceu da intervenção estatal, e com exceção de um período muito curto de laissez-faire que terminou em depressão, sempre dependeu da intervenção estatal para sua existência.

A reivindicação de que a intervenção estatal é «socialista» também ignora a realidade da concentração do poder sob o capitalismo. O verdadeiro socialismo equaliza poder redistribuindo-o às pessoas, mas, como Noam Chomsky mostra, «[em] uma sociedade altamente desigual, é muito improvável que programas de governo sejam igualadores.

Pelo contrário, naturalmente serão projetados e manipulados pelo poder privado para o benefício deles mesmos; uma expectativa que em grande escala acaba sendo atingida». [The Chomsky Reader, p. 184]. «Bem esta social equivale a socialismo» é nonsense.

Semelhantemente, na Inglaterra, a nacionalização de aproximadamente 20% da economia (os setores mais improdutivos, diga-se de passagem) em 1945 pelo Governo Trabalhista foi resultado direto, não do socialismo, mas do medo da classe dominante. Como Quintin Hogg, na ocasião um membro conservador do parlamento, disse, «Se você não der reformas sociais ao povo, ele lhe dará uma revolução social».

As lembranças das revoluções pela Europa e da Primeira Guerra Mundial estavam obviamente frescas em muitas mentes, e de ambos os lados. Nenhuma daquelas nacionalizações foi particularmente temida como «socialismo». Como foi dito pelos anarquistas na ocasião, «a verdadeira opinião dos capitalistas pode ser [melhor] observada pelas oscilações da Bolsa de Valores e pelas declarações dos empresários [do que] pela opinião dos graúdos do parlamento. . . [pois dá para] ver que a classe proprietária não está descontente com os relatórios e as tendências do Partido Trabalhista» [Vernon Richards, ed., Neither Nationalisation nor Privatisation -- Selections from Freedom 1945-1950, p. 9].

Como os anarquistas encaram a intervenção estatal? Normalmente somos contra ela, embora a maioria de nós acredite que oferecer serviços médicos e proporcionar seguro desemprego (por exemplo) seja mais socialmente útil do que produzir armas, isso não substitui soluções mais anárquicas, melhores do que a alternativa do «mercado livre» capitalista. Isto não significa que estamos contentes com a intervenção estatal que na prática arruina auto-ajuda do proletariado, a ajuda mútua e a autonomia. Além disso, a intervenção estatal de natureza «social» é freqüentemente paternalista, algo que gira em torno das «classes médias» (ou seja, tipos profissionais,
administradores e assistentes sociais que se proclamam «peritos»). Porém, enquanto não for criada uma contracultura anarquista viável, temos poucas opções exceto «apoiar» o menos mal (mas não nos enganemos, esse menos mal não deixa de ser um mal).

É inegavel que tal «apoio» estatal pode ser usado de muitas maneiras como meio de recuperar algum poder e trabalho anteriormente roubado de nós pelos capitalistas. S intervenção estatal pode dar aos trabalhadores mais opções do que eventualmente poderiam ter sem ela. Se a ação estatal não fosse usada desse modo, é provável que os
capitalistas e seus «peritos» contratados procurariam arruiná-la ou limitá-la. Na medida em que a classe capitalista alegra-se em usar o estado para empurrar seu poder e seus direitos de propriedade nas gargantas dos não-possuidores, os trabalhadores fazem aquilo que podem e isso é de se esperar. Seja como for, isto não oculta dos anarquistas os aspectos negativos do chamado estado do bem-estar social e de outras formas de intervenção estatal (veja a seção J.5.15 que trata das perspectivas anarquistas no estado do bem-estar social).

Um dos problemas da intervenção estatal, como viu Kropotkin, é que a absorção das funções sociais pelo estado «necessariamente favorece o desenvolvimento de um individualismo desenfreado, tacanho. Na proporção em que as obrigações para com o Estado cresce em número, os cidadãos ficam evidentemente aliviados das suas obrigações uns para com os outros» [Mutual Aid, pág. 183].

No caso das «funções sociais» do estado, na versão do Serviço Nacional de Saúde britânico, embora criadas como resultado da atomização social causada pelo capitalismo, elas tenderam a reforçar o individualismo e a falta de responsabilidade pessoal e social que em primeiro plano produziu a necessidade da ação. (A seção J.5.16 discute formas de comunidade e auto-ajuda e seus históricos precedentes).

O exemplo das indústrias nacionalizadas é um bom indicador da natureza não-socialista da intervenção estatal. Nationalização quer dizer substituir o burocrata do capital por um burocrata do estado, com uma pequena real melhoria para os sujeitados ao «novo» regime. Na plenitude do Partido Trabalhalhista Britânico nas nacionalizações do pós-guerra, os anarquistas foram acusados de anti-socialistas.

A nacionalização representou a «real consolidação da velha classe capitalista individualista em uma nova e eficiente classe de patrões promissores do. . . capitalismo estatal» «instalando industriais realmente criativos em posições administrativas ditatoriais» [Vernon Richards, Op. Cit., p. 10].

Os anarquistas são favoráveis a atividades autogeridas e à ação direta para a conquista de melhorias e para defender mudanças no aqui e no agora. Na medida em que nós mesmos organizamos nossas greves e manifestações, podemos melhorar nossas vidas. Isto não significa usar a ação direta para conquistar leis favoráveis que substituam leis menos favoráveis seja um desperdício de tempo. Longe disto. Porém, a menos que as pessoas comuns do povo usem sua própria força e organização em seus locais de trabalho e em suas comunidades para forçar a lei, o estado e os patrões, na primeira oportunidade, jogarão as leis que vão contra seus interesses na lata de lixo mais próxima. A confiança no estado e em sua proteção social contra o poder e a
concentração do mercado é uma confiança morta. No final das contas, tudo o que o estado proporciona (ou supostamente proporciona), é sempre menos do que aquilo que podemos conquistar por nós mesmos diante de nossos desejos e interesses. Portanto, não é difícil ver como bem-estar estatal é vulnerável às pressões da classe capitalista (que de altruismo não tem nada).



D.2 Até que ponto os ricos influenciam na política?

Em poucas palavras, a resposta é: influenciam em larga escala, direta e indiretamente. Embora já tenhamos abordado isso na seção B.2.3 («Como a classe dominante mantém o controle do estado?»), vamos analizar mais esse tema.

Normalmente, a política estatal em uma democracia capitalista fecha-se à influência popular e escancara-se à influência das elites e ao interesse dos ricos. Vamos considerar primeiramente a possibilidade de influência direta. É óbvio que eleições custam dinheiro e que só os ricos e as corporações podem de fato se dispor participar delas para valer.

Mesmo que os sindicatos dessem dinheiro para um partido político ele não seria páreo diante das classes empresariais. Nas eleições presidenciais dos EUA em 1972, por exemplo, foram gastos $500 milhões, dos sindicatos vieram apenas algo em torno de $13 milhões.

Quase que todo o restante veio indubitavelmente das grandes corporações e de bilionários. Nas eleições de 1956, o último ano em que as contribuições dos sindicatos e dos empresários eram diretamente contabilizadas, as contribuições de 742 empresários equivaliam às contribuições de sindicatos que representavam 17 milhões de trabalhadores.

E isto em um tempo quando os sindicatos tinham um grande número de sócios e antes do declínio das organizações dos trabalhadores.

Então, logicamente, as políticas serão dominadas pelos ricos e poderosos -- se não na teoria, certamente de fato -- pois apenas os ricos podem concorrer e apenas o apoio dos ricos aos sindicatos propicia fundos suficientes e cobertura favorável da mídia para que os candidatos tenham uma chance (vide seção D.3, «Como os ricos
influenciam os meios de comunicação de massa?»). Mesmo em países com forte movimento sindical ligado a partidos de base operária, a agenda política é dominada pela mídia. Na medida em que a mídia está nas mãos dos empresários e depende deles para anunciar seus negócios, é difícil ver uma tomada de posição independente ser levada seriamente.

Além disso, os fundos disponíveis dos partidos operários sempre são menores que os dos partidos que os capitalistas apóiam, isso significa que fica difícil competir em igualdade de condições. Também não devemos esquecer o fato da estrutura estatal ser projetada para assegurar que o poder real não fique nas mãos dos representantes eleitos mas nas mãos da burocracia estatal (veja seção J.2.2) o que assegura que qualquer agenda favorável aos trabalhadores será derrubada ou tornada inofensiva aos interesses da classe dominante.

A isto deve ser somado que o poder econômico tem uma grande influência indireta em cima dos políticos (e portanto em cima da sociedade e da lei). É fácil perceber como o poder econômico controla as mídias e o conteúdo delas. Porém, além disto há o que pode ser chamado de «Confiança de Investidor» que é outra fonte importante de influência.

Se um governo começa a aprovar leis ou a agir de modo conflitante com os interesses das empresas, o capital pode ficar relutante em investir (e pode igualmente retirar seu dinheiro e investir em outro lugar).

A reviravolta econômica resultante causará instabilidade política, não dando ao governo outra escolha senão dar linha aos interesses privilegiados dos empresários. «O que é bom para os empresários» é bom para o país, porque se os empresários sofrem, todo mundo vai sofrer junto.

David Noble provê um bom resumo dos efeitos de tais pressões indiretas por parte do empresariado «eles detem a habilidade de transferir a produção de um país para outro, de fechar uma fábrica aqui e reabri-la ali, de dirigir e redirecionar investimento onde o 'clima' é mais favorável [aos negócios]. . . eles fazem com que as corporações lancem os trabalhadores uns contra os outros a fim de obter mão-de-obra mais barata e um trabalhador mais complacente (que dá a enganosa aparência de maior eficiência). . . eles compelem regiões e nações a uma competição mútua na tentativa de atrair investimentos oferecendo incentivos fiscais, repressão aos trabalhadores, relaxamento nas leis ambientais e outras facilidades como infra-estrutura pública subsidiada. . . Assim emerge o grande paradoxo de nossa era, onde as nações que mais prosperam (atraem investimento corporativo) são as mais propensas a rebaixar os padrões de vida dos trabalhadores (salários, benefícios, qualidade de vida, liberdade política).

O resultado líquido deste sistema de extorsão é um aviltamento universal das condições e expectativas da maioria da população em nome da competitividade e da prosperidade». [Progress Without People, pp. 91-92]

Temos que reconhecer que até mesmo quando um país abaixa seu padrão de vida para atrair investimentos ou encoraja sua própria classe empresarial para investir (como os EUA. e o Reino Unido fizeram por meio da recessão para disciplinar a força de trabalho pelo alto desemprego), isso não é nenhuma garantia de que o capital ficará. Os trabalhadores dos EUA viram os lucros das companhias onde trabalhavam subir enquanto os salários deles permaneciam estagnados, outras centenas de milhares de trabalhadores tiveram seus salários «reduzidos» ou perderam seus empregos enquanto as fábricas onde trabalhavam se mudava para os sweatshops [i] do México ou para o Sudeste da Ásia. No oriente distante, os trabalhadores japoneses, de Hong Kong, e da Coréa do Sul também tem visto seus salários reduzidos mais do que em países repressivos e autoritáriose como a China e Indonésia.

Além da mobilidade do capital, há também a ameaça representada pela dívida pública. Como nota Doug Henwood, «a dívida pública é uma poderosa forma de garantir que o estado permaneça seguro nas mãos do capital. Quanto mais elevada a dívida de um governo, mais ele tem que agradar seus banqueiros. Os banqueiros não gostam de incertezas, eles recusarão rolar velhos débitos ou efetuar novos financiamentos exceto com cláusuras ainda mais punitivas. A explosão da dívida federal dos EUA nos anos oitenta aumentou imensamente o poder dos credores em suas exigencias por austeras políticas fiscais e monetárias para aquecer a economia dos EUA e tirá-la do buraco onde caiu pela queda da atividade econômica entre 1989-92». [Wall Street, pp. 23-24]. Além disso, não devemos esquecer que Wall Street, direta e indiretamente, fez uma fortuna em cima de dividas.

Comentando os planos de Clinton para a retomada dos programas sociais pelo Governo Federal dos EUA, Noam Chomsky abordou um ponto importante de que «sob condições de relativa igualdade, tais programas poderiam ser um movimento em direção à democracia. Mas sob as atuais circunstâncias, tal retomada significa um elemento que acelera ainda mais os processos de corrosão da democracia.

As principais corporações, empresas de investimento, e daí por diante, podem constranger ou controlar diretamente os atos dos governos nacionais, e podem também lançar uma mão-de-obra nacional contra outra. O jogo é muito mais fácil quando o único jogador competitivo que remotamente poderia influenciar a 'grande besta' é o governo do estado, até mesmo o médio empreendimento pode ganhar nesse jogo. A sombra lançada pelos empresários [em cima da sociedade e dos políticos] pode tornar-se ainda mais espessa, o poder privado pode obter as maiores vitórias em nome da liberdade». [Noam Chomsky, «Rollback III», Z Magazine, March, 1995]

A chantagem econômica é uma arma muito útil na intimidação da liberdade.

[i] sweatshop. loja ou fábrica que explora os empregados com horas excessivas de trabalho por baixos salários e em más condições ambientais.



D.2.1 A fuga de capitais é uma arma poderosa?

Sim. A fuga de capital é um instrumento que os empresários usam para dar um recado a qualquer governo que fica muito independente e começa a considerar os interesses daqueles que o elegeram, para que ponha-se em seu lugar. É por isso que é por demais ingênuo esperar que um grupo diferente de políticos reajam de modo diferente às mesmas influências e interesses institucionais.

Não foi coincidência que o Partido Trabalhista Australiano e o Partido Socialista Espanhol introduziram políticas «thatcherites» ao mesmo tempo em que a «dama de ferro» as implementava na Inglaterra. O governo trabalhista da Nova Zelândia foi um caso típico onde «poucos meses após sua reeleição [em 1984], o ministro das finanças Roger Douglas fixou um programa econômico de 'reformas' que faria Thatcher e Reagan parecerem freiras. . . . Quase tudo foi privatizado e as conseqüências disso apareceram ao longo do mercado. Concentração de riqueza, algo desconhecido na Nova Zelândia surgiu repentinamente, junto com desemprego, pobreza e criminalidade». [John Pilger, «Breaking the one party state,» New Statesman, 16/12/94]

Um exemplo extremo de fuga de capital sendo usado para «disciplinar» uma administração malcriada pode ser visto entre 1974 e 1979 em cima do governo trabalhista britânico. Em janeiro de 1974, o Index FT da Bolsa de Valores de Londres subiu acima de 500 pontos. Em fevereiro, com o início da greve dos mineiros, o Primeiro Ministro convocou (e perdeu) uma eleição geral.

O novo governo trabalhista (que incluia muitos esquerdistas em seu gabinete) começou a falar coisas como nacionalização dos bancos e da indústria pesada. Em agosto de 1974 Tony Benn anunciou planos para nacionalizar a indústria naval. Em dezembro o Index FT caira 150 pontos. Antes de 1976 o Tesouro já estava gastando $100 milhões por dia comprando de volta seu próprio dinheiro para elevar a libra. [The Times, 10/6/76].

O jornal The Times destacou que «o declínio adicional no valor da libra aconteceu apesar do alto nível das taxas de juros. . . . os investidores disseram que as pressões contra a libra não eram pesadas nem persistentes, mas havia uma falta quase total de interesse entre os compradores.

A extrema e surpreendente queda da libra ocorreu em virtude da posição unânime dos banqueiros, políticos e funcionários de que a moeda estava subvalorizada». [27/5/76]

O governo trabalhista, peitado pelo poder do capital internacional, acabou tendo que receber uma «ajuda» temporária do FMI que impôs um pacote de cortes e controles, diante disso a resposta dos trabalhistas foi, com efeito, «faremos qualquer coisa que você quiser» conforme um economista descreveu. Os custos sociais destas políticas foram desastrosos, com o desemprego chegando à cifra inédita de um milhão de trabalhadores. E não esqueçamos que «o corte que efetuaram nas despesas correspondeu ao dobro do prometido ao FMI» em sua tentativa de mostrar simpatia ao empresariado. [Peter Donaldson, A Question of Economics, p. 89]

Capital quer mais capital e quando investe em algum país não é para outra coisa senão usurpar mais valia. O capital não investe em ambientes adversos. Em 1977 o Banco da Inglaterra não obteve apoio do governo para abolir o controle do câmbio. Mas entre 1979 e 1982 o Partido Conservador aboliu esse controle, juntamente com as restrições aos empréstimos aos bancos e construtoras:



«O resultado da abolição do controle cambial tornou-se quase que imediatamente visível: investidores importantes então no Reino Unido começaram a ir para o estrangeiro. No Guardian de 21 setembro, 1981, Victor Keegan destaca que 'os números publicados na última semana pelo Banco da Inglaterra revelam que os fundos de pensão passaram a investir 25% de seu montante no exterior (alguns anos atrás quase nada era aplicado) e não houve nenhum investimento importante em todo Reino Unido desde que foram abolidos controles cambiais'». [Robin Ramsay, Lobster no. 27, p. 3].

Por que? O que havia de tão ruim no Reino Unido? Não deu outra, o proletariado estava mobilizado, os sindicatos não estavam «algemados por leis ou subjugados», como o jornal The Economist comentou em 27 de fevereiro de 1993, os programas sociais do welfare state poderiam ser mantidos.

Os ganhos parciais das lutas anteriores ainda permaneciam, e o povo tinha suficiente dignidade para não aceitar qualquer trabalho que lhe era oferecido nem ter que aguentar práticas de um patrão autoritário. Estes fatores criaram «inflexibilidade» no mercado de trabalho, de forma que o proletariado teve que receber algumas lições sobre como funciona uma economia «sadia».

Assim, através de fuga de capital, uma população rebelde e um governo ligeiramente radical foram conduzidos de volta para o inferno.

D.2.2 Qual o alcance da propaganda da classe empresarial?

A classe empresarial gasta muito dinheiro para assegurar que as pessoas aceitem o status quo. Recorrendo novamente aos EUA como exemplo (onde tais técnicas são comuns), são usados vários meios para conseguir que as pessoas identifiquem «livre-empresa» (significando poder privado subsidiado pelo estado sem interferencia nas prerrogativas administrativas) como «o modo americano». O sucesso destas campanhas é evidente, tanto que boa parte do proletariado agora objetam os sindicatos como tendo poder demais ou rejeitam irracionalmente todas as idéias radicais como «comunismo» independente do conteúdo delas.

Antes das 1978, os empresários estadunidenses estavam gastando por ano $1 bilhão de propaganda dirigida ao povo comum (uma propaganda conhecida como «astroturf» pelos experts publicitários, que tinha como alvo obter apoio popular à classe empresarial, pela contratação de cidadãos influentes como de porta-vozes dos interesses da classe empresarial). Em 1983 existiam 26 fundações de propósito gerais dedicadas neste trabalho com dotações que ultrapassavam $100 milhões, sem contar com dúzias e dúzias de fundações incorporadas. Todos eles, juntamente com o poder da mídia, asseguraram que a força da violência -- sempre um meio ineficiente de controle -- fosse substituída pela «fabricação do consenso»: um processo por meio do qual os limites aceitaveis de expressão são definidos pelos ricos.

Este processo funcionou por algum tempo. Por exemplo «em abril de 1947, o Conselho de Propaganda anunciou uma campanha de $100 milhões que usaria toda mída para 'vender' o sistema econômico americano -- como eles o concebiam -- para o povo estadunidense; o programa foi descrito oficialmente como 'o maior projeto de educação do povo estadunidense sobre os fatos econômicos da vida'.

As Corporações 'começaram extensos programas de doutrinação de empregados', o Fortune, principal jornal empresarial, convocou seus leitores cativos para 'Cursos de Educação Econômica' ao mesmo tempo em que os convidava a ter um compromisso com o 'sistema de livre-empresa -- quer dizer, americanismo'. Uma pesquisa conduzida pela American Management Association (AMA) concluiu que muitos daqueles líderes incorporados consideravam 'propaganda' e 'educação econômica' como sinônimos, 'queremos que nosso povo pense direito'. . [e que] 'alguns empregadores vejam. . . [isto] como um tipo de 'batalha de lealdade contra os sindicatos' -- uma batalha bastante desigual, diante dos recursos disponíveis». [Noam Chomsky, World Orders, Old and New, pp.
89-90]

Várias instituições são usadas para comunicar as mensagens das grandes corporações, por exemplo, a Joint Council on Economic Education, uma organização tida como beneficente, financia educação econômica para professores e provê livros, folhetos e filmes como suplemento pedagógico.

Em 1974, 20.000 professores participaram de seus seminários. A meta é induzir os professores a apresentarem as corporações aos seus alunos sob um prisma não crítico. O dinheiro para esta máquina de propaganda vem da American Bankers Association, AT&T, the Sears Roebuck Foundation e da Ford Foundation.

Conforme G. William Domhoff destaca, «embora tais coisas [e coisas semelhantes] não provoquem a aceitação ativa de todas as políticas e perspectivas das elites do poder, no que diz respeito aos assuntos econômicos ou outros assuntos domésticos, elas tem sido capazes de assegurar o isolamento, a suspeita e o desenvolvimento apenas parcial das opiniões divergentes». [Who Rules America Now??, pp. 103-4] em outras palavras, idéias «inaceitáveis» passam a ser marginalizadas, os limites da expressão passam a ser definidos, e tudo o mais dentro da sociedade aparentemente baseia-se em uma «a feira livre de idéias».

Os efeitos desta propaganda empresarial são sentidos em todos os aspectos da vida. E isso é uma prova de que a classe empresarial dos EUA é uma classe extremamente consciente. O restante da população americana, por sua vez, considera a palavra «classe» um palavrão!

Extraído de http://www.anarchy.be/faq/index.html e traduzido por Railton de Sousa Guedes. Vide também FAQ ANARQUISTA em http://www.geocities.com/projetoperiferia2/indice.htm

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Censurado pelo Centro de Midia "Independente" - Brasil


http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/09/428450.shtml

Definições

Direita, Esquerda, Pobre

Direita: Aquele que diz estar do lado do rico e está.

Esquerda: Aquele que diz estar do lado do pobre e não está.

Pobre: Aquele que não sairá de sua condição enquanto submeter-se à direita e confiar na esquerda.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

In Girum Imus Nocte Et Consumimur Igni - Parte 2.2


"In Girum", tanto as imagens como a narração, tem dois temas principais. O primeiro é a água, daí as citações poéticas de Li Po, Omar Khayam, Heraclitus, Bossuet, Shelley, evocando o fim dos tempos e associando o fluir da água com o fluir de tempo. O segundo tema é o fogo, o brilho momentâneo, a revolução, São-Germain-des-Prés, a mocidade, o amor, a negação da noite, o Diabo, as batalhas e as “missões não realizadas” onde o encanto do “caminho dos viajantes” é destruído, os desejos na noite do mundo (“nocte consumimur igni”). Mas a água remanescente do tempo finalmente domina e extingue o fogo. O brilho da mocidade de São-Germain-des-Prés, o fogo ardente da Brigada Luz, os avanços “sob o fogo do canhão do tempo” submergem na água corrente do seu século... Guy Debord, 1977

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Jan Zizka (1955) - Parte 1.2



"Jan Ziska" juntamente com "Jan Hus" e "Proti Vsem" compoem a épica trilogia de Otakar Vavra que foca a vida e a morte do padre/revolucionário Jan Hus e a Revolução Hussita (1419-1437).

O ator Zdenek Stepanek interpreta tanto o pregador intelectual Jan Hus como o implacável General Jan Zizka, duas personalidades históricas que ocupam um lugar especial na identidade tcheca. Hus é venerado pela coerência de suas convicções, já o legado de Zizka é mais controvertido pela natureza violenta do levante que ele conduziu.

Jan Zizka e seus seguidores hussitas foram os primeiros guerreiros/cavaleiros na história armados com pistolas e ferramentas agrícolas. O filme "Jan Zizka" retrata as estratégias de guerra que permitiu o estabelecimento de um regime de comunismo de consumo durante período de quase 20 anos pelas principais cidades da Bohemia.

Esta complexa peça de história, raramente discutida fora da República Tcheca, mostra uma vertente libertária cristã, muitas vezes descarada e propositalmente boicotada por professores, padres católicos, pastores protestantes, e até mesmo por alguns marxistas e anarquistas.

Este filme lembra um pouco Sergei Eisenstein, mas é bem mais complexo que "Nevsky," e bem mais fiel aos fatos históricos. Enfim, "Jan Zizka" aborda um momento revolucionário quase que desconhecido pelos libertários em geral, mas não menos importante que a Comuna de Paris, a Revolução Espanhola, a Revolta dos Cravos em Portugal, os primeiros anos da Revolução Russa. A Trilogia Hussita é no mínimo instigante.

Jan Zizka (1955) - Parte 2.2

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Hurlements en Faveur de Sade - 1952



[PUBLIC DOMAIN.] Em 1952 um situacionista amigo de Cornelius Castoriadis filma "Alaridos a favor de Sade". A película é em sua maior parte (pouco mais de uma hora) sem imagem (ou seja, com a tela negra) e sem som. Hurlements en faveur de Sade é considerado por alguns como a obra prima de Debord. Um filme inquietante que coloca na berlinda tanto artistas como espectadores.

"Após sairmos dessa bagunça e criarmos uma sociedade sadia, livre, as gerações futuras olharão para trás e verão Guy Debord como a personalidade do século XX que mais contribuiu para essa libertação". Ken Knabb em "http://www.geocities.com/projetoperiferia4/introbra.htm

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A importância de negar-se o serviço militar

Leon Tolstoi


 

Existe um provérbio russo que diz: Podes desobedecer a teu pai e a tua mãe, mas obedecerás ao couro de um asno, ou seja, a um tambor. E este provérbio se aplica literalmente aos homens de nosso tempo que não tem aceito a doutrina de Cristo, ou que a aceitam deformada pela Igreja que essencialmente renega todo sentimento humano, homens que não obedecem outra coisa senão a um tambor. Apenas uma coisa os pode libertar do tambor: a profissão da verdadeira doutrina de Cristo.


 

Os povos europeus apreciam trabalhar por estabelecer novas formas de vida, elaboradas desde há muito tempo nas consciências, mas é sempre o velho despotismo grosseiro que lhes guia a vida. As novas concepções da vida não somente não se realizam, como até mesmo as antigas, aquelas que a consciência humana tem denunciado desde há tanto tempo -- por exemplo, a escravidão, a exploração de uns pelos outros em proveito do luxo e da ociosidade; os suplícios e as guerras -- se afirmam a cada dia de uma maneira cruel. A causa é que não existe uma definição do bem e do mal aceita por todos os homens, de maneira que qualquer que seja a forma de vida posta em prática, há de ser sustentada pela violência.


 

Ao homem pareceu simpático inventar uma forma superior de vida social, garantindo, ao seu parecer, a liberdade e a igualdade, mas não poderia livrar-se da violência, posto que ele mesmo é um violador.


 

Qual o efeito disso? Por grande que seja o despotismo dos governantes, por terríveis que sejam os males que este despotismo despeje sobre os homens, o homem ligado à vida social terá que ver-se sempre submetido a ele. Este homem, ou aplicará sua inteligência para justificar a violência existente e para encontrar o que é mau, ou se consolará pensando que logo encontrará o meio de derrubar o governo e de estabelecer outro, tão bom, que transformará tudo o que agora é mau. E, enquanto espera que se realize esta mudança, rápida ou lenta, das formas existentes, mudança pela qual espera a salvação, obedecerá com servilismo aos governos que existem, sejam lá quais forem, e quaisquer que sejam suas exigências. Embora não aprove o poder que, em dado momento, emprega a violência, não apenas não nega a violência, nem os meios de empregá-la, como também a julga necessária. E, por esta causa sempre obedecerá à violência governamental existente. O homem social é um violador, e inevitavelmente há de ser também um escravo.


 

A submissão com a qual -- sobretudo os europeus que tão orgulhosos se mostram da liberdade -- tem aceito uma das medidas mais despóticas, mais afrontosas que jamais teriam podido inventar os tiranos, o serviço militar obrigatório, prova isso mais do que qualquer coisa. O serviço militar obrigatório, aceito sem contradição por todos os povos, sem revolucionar-se, e até com júbilo liberal, é uma prova resplandecente da impossibilidade para o homem social livrar-se da violência e modificar o estado de coisas existentes.


 

Que situação pode ser mais insensata, mais insensível do que a que se encontra agora os povos europeus que gastam a maior parte de seus recursos fazendo os preparativos necessários para destruir seus vizinhos, homens dos quais nada lhes separa e com os quais vivem na mais estreita comunhão espiritual? Que pode haver de mais terrível para eles que estar sempre esperando que um louco que se proclame imperador diga algo que possa ser desagradável a outro louco semelhante? Que pode haver de mais terrível que todos esses meios de destruição inventados a cada dia: canhões, bombas, granadas, metralhadoras, pólvora seca, torpedeiros e outros engenhos mortais? Sem embargo, todos os homens, como bestas empurradas pelo chicote em direção ao matadouro, irão com docilidade para onde quer que lhes enviem, perecerão sem sublevar-se e matarão outros homens sem mesmo perguntar-se porque o fazem, e não apenas não se arrependerão disso, como também se mostrarão orgulhosos dessas medalhas que é autorizado a carregar por haver matado bastante, e levantam monumentos ao louco desgraçado, ao criminoso que lhe obrigou a cometer tais atos.


 

Os homens da Europa liberal se regozijam de poder escrever toda classe de tolices e de divulgar o quanto se gasta nos banquetes, nos encontros, nas câmaras, e se crêem completamente livres, semelhante a bois que pastam no pasto do açougueiro acreditando ser completamente livres. Sem embargo, talvez nunca o despotismo do poder tenha causado tantas desgraças aos homens como agora, nem lhes tenha depreciado tanto como hoje. Jamais o descaro dos violadores e a covardia de suas vítimas alcançou o grau que contemplamos.


 

Quando os jovens se apresentam nos quartéis, são acompanhados pelos pais e mães, e se comprometem matar até mesmo eles. É evidente que não há humilhação nem vergonha que não suportem os homens da atualidade. Não há covardia nem crime que não cometam, desde que isso lhes cause o menor prazer e lhes livre do perigo mais insignificante. Nunca a violência do poder e a depravação dos dominados chegou a tal extremo. Sempre houve e há entre os homens possuídos de força moral algo que considerem sagrado, algo que não cedem por preço algum, algo pelo qual estão prontos a suportar privações, sofrimentos, até mesmo a morte; algo que não trocariam por nenhum bem material. E quase cada homem, por pouco desenvolvido que seja, o possui. Ordene a um camponês russo que cuspa na óstia ou blasfeme o altar e ele morrerá antes de fazê-lo. Estão enganados, crêem que as imagens são sagradas e não consideram o que verdadeiramente é sagrado (a vida humana), consideram a lei uma coisa sagrada que não desobedecem por nada. Mas há um limite à submissão, há nele um osso que não se dobra. Mas onde está este osso não civilizado que não se venda como escravo ao governo? Qual será esse algo sagrado que nunca abandonará?


 

Não existe; é completamente frouxo e se dobra por inteiro. Se existisse para ele algo sagrado, então, levando em conta tudo o que há nessa patética sociedade hipócrita em que vive, esse algo deveria ser a humanidade, ou seja, o respeito ao homem em seus direitos, à sua liberdade, à sua vida. O que significa isso?


 

Ele, o sábio instruído que nas escolas superiores tem aprendido tudo o que a inteligência humana elaborou antes dele, ele que se coloca acima da multidão, ele que continuamente fala da liberdade, dos direitos, da intangibilidade da vida humana, é eleito, é revestido de um traje grotesco, e ordena levantar-se, saudar, humilhar-se, ante todos os que tem um grau a mais no uniforme, ordena prometer que matará seus irmãos e seus pais, e estar pronto a fazer todas estas coisas. A única pergunta que faz é quando e como deverá passar estas ordens. No outro dia, uma vez livre desses encargos, voltará novamente e com mais afinco a prédica dos direitos, da liberdade, da intangibilidade da vida humana, etc., etc.


 

Exatamente isso! É com tais homens que prometem matar a seus pais, que os liberais, que os socialistas, que os anarquistas, que os homens sociais em geral pensam organizar uma sociedade onde o homem seja livre! Mas que sociedade moral e razoável pode-se edificar com semelhantes homens? Com semelhantes homens, qualquer combinação que se faça não pode resultar mais que um rebalho de animais dirigidos aos gritos pelos chicotes dos pastores.


 

Este é um fardo pesado sobre os ombros dos homens, um fardo que os oprime, e os homens cada vez mais oprimidos buscam uma maneira de livrar-se dele.


 

Sabem que unindo suas forças poderiam retirar o fardo e lançá-lo fora, mas não conseguem chegar a um acordo sobre a maneira de fazê-lo, enquanto isso cada qual se inclina cada vez mais, deixando que o fardo se apóie sobre os ombros dos outros. E o fardo lhes esmaga mais e mais, e todos já teriam perecido se não houvesse quem lhes guiasse em alguns atos, não pelas considerações das conseqüências exteriores dos atos, mas sim pelo acordo do rito com a consciência.


 

Esses homens são os cristãos; em vez do fim exterior cujo logro exige o consentimento de todos, se consagram a um fim interior acessível sem que nenhum consentimento seja necessário. Nisso está a essência do cristianismo. Por isso, a salvação do servilismo em que se encontram os homens, impossível aos homens de idéias socialistas, tem-se realizado pelo cristianismo; a concepção real da vida deve ser suprida pela concepção cristã da vida.


 

O fim geral da vida não pode ser inteiramente conhecido -- diz a doutrina cristã a cada um -- e se apresenta diante de ti unicamente como a aproximação cada vez maior, de todos, de um bem infinito; a realização do reino de Deus, na medida em que tu conheces indubitavelmente o objetivo da vida pessoal que consiste em realizar em ti a perfeição maior, o amor necessário para a realização do reino de Deus. Este fim, tu conhecerás sempre, e é sempre factível.


 

Tu podes ignorar os melhores fins particulares exteriores; podem surgir obstáculos entre eles e tu; mas ninguém nem nada pode deter a aproximação em direção ao aperfeiçoamento interior e o aumento do amor em ti e nos outros. Basta ao homem substituir o objetivo exterior, social, embusteiro, pelo único fim verdadeiro, indiscutível, acessível, interior da vida, para em seguida ver cair todas as cadeias que pareciam impossíveis de romper, e se sentirá completamente livre.


 

O cristão rechaça a lei do Estado porque não tem necessidade dela nem para ele nem para os demais, posto que julga a vida humana mais garantida pela lei do amor que professa, que pela lei sustentada pela violência.


 

Para o cristão que conhece as necessidades da lei do amor, as necessidades da lei da violência não somente não podem ser-lhe obrigatórias, como se apresentam diante dele como erros que devem ser denunciados e destruídos.


 

A essência do cristianismo é o cumprimento da vontade de Deus que não pode ser possível pela atividade exterior que consiste em estabelecer e aplicar formas exteriores de vida, a vontade de Deus é apenas possível pela atividade interior, pela mudança da consciência, e consequente melhora da vida humana. A liberdade é a condição necessária da vida cristã. A profissão do cristianismo livra o homem de todo poder exterior, e ao mesmo tempo lhe dá a possibilidade de esperar o melhoramento da vida que busca em vão pela mudança das formas exteriores da vida.


 

Os homens acham que sua situação melhora graças às mudanças das formas exteriores da vida, e, sem embargo essas mudanças nem sempre resultam em uma modificação da consciência.


 

Todas as mudanças exteriores das formas que não são conseqüência de uma modificação da consciência, não somente não melhoram a condição dos homens, como com freqüência a agravam. Não são os decretos do governo que tem abolido a matança de crianças, as torturas, a escravidão, é a evolução da consciência humana que tem provocado a necessidade destes decretos; e a vida não melhora em passo mais rápido do que o passo do movimento da consciência, ou seja, a vida melhora na medida em que a lei do amor ocupa na consciência do homem o lugar antes ocupado pela lei da violência.


 

Se as modificações da consciência exercem um influxo sobre as modificações das formas exteriores da vida, isso faz parecer aos homens que a recíproca seria verdadeira, e como é mais agradável e mais fácil (os resultados da atividade são visíveis) dirigir a atividade sobre as mudanças exteriores, preferem sempre empregar suas forças não em modificar sua consciência e sim em mudar as formas de vida, e por esta causa, na maioria dos casos, se ocupam não da essência do assunto mas de sua forma. A atividade exterior inútil, mutável, que consiste em estabelecer e aplicar formas exteriores de vida, oculta aos homens a atividade interior, essencial na mudança de sua consciência, que é a única que pode melhorar sua vida. E este erro é o que retarda cada vez mais a melhora geral da vida dos homens.


 

Una vida melhor não pode lograr-se sem o progresso da consciência humana, e por isso, todo homem que deseja melhorar a vida, deve dedicar-se a melhorar sua consciência e a dos demais. Mas isso é precisamente o que os homens não querem fazer, ao contrário, empregam todas suas forças em mudar as formas de vida esperando que reportarão uma modificação de consciência.


 

O cristianismo, e unicamente o cristianismo, livra os homens da escravidão em que se encontram na atualidade, e apenas o cristianismo lhes dá a possibilidade de melhorar realmente sua vida pessoal e a vida geral. Isto deveria ser claro para todos; mas os homens não podem aceitar isso enquanto a vida, segundo as concepções sociológicas, não for completamente conhecida, tanto no terreno dos costumes, como no terreno das crueldades, e enquanto os sofrimentos da vida social e governamental não forem estudados em todos os sentidos.


 

Com freqüência é citado como a prova mais convincente da insuficiência da doutrina de Cristo, o fato desta doutrina conhecida há dezenove séculos ainda não ter sido aceita e admitida além de seu formato exterior. Essa doutrina é conhecida há muito tempo e ainda não é um guia para a vida dos homens. Muitos mártires do cristianismo sofreram em vão sem mudar a ordem existente e isso é uma clara prova de que tal doutrina não é verdadeira nem factível. É o que dizem os homens.


 

Falar e pensar assim é o mesmo que dizer e pensar que um grão que não dá imediatamente flores e frutos, e que se desloca na terra, é mau e estéril.


 

O fato da doutrina de Cristo não ser aceita em toda sua importância desde o momento em que apareceu, e não ser admitida além de uma forma exterior, alterada, era inevitável e necessário.


 

Uma doutrina que destruiu toda a antiga concepção do mundo e estabeleceu uma nova, não podia ser aceita de imediato em toda sua importância, não podia ser aceita além de seu aspecto exterior e disforme. E, ao mesmo tempo, sua aceitação sob esta forma, foi para que os homens, incapazes de compreender a doutrina e a via moral, fossem guiados pela mesma via a aceitá-la em toda sua verdade.


 

Podemos imaginar os romanos e os bárbaros aceitando a doutrina de Cristo no sentido que agora compreendemos? Será que os romanos e os bárbaros poderiam crer que a violência levava ao aumento da violência, e que as torturas, os suplícios, as guerras não explicam e não resolvem nada, mas que embrulham e complicam tudo?


 

A grande maioria dos homens daquele tempo não era apta a compreender a doutrina de Cristo pela via moral. Era necessário guiar-lhes pela mesma via, pelos meios que mostravam na prática, que cada cisão da doutrina entranhava um mal.


 

A verdade cristã em outra época, mais elevada pelo espírito do sentimento profético, se converteu em verdade acessível até mesmo para o homem de espírito mais simples, e em nossos dias, esta verdade se revela a cada um.


 

A evolução da consciência não se faz por saltos, não é descontínua e nunca se pode encontrar os limites que separam os períodos da vida da humanidade; e sem embargo, existem, como existem entre a infância e a adolescência, entre o inverno e a primavera, etc.. Se não há uma risca limítrofe, há um período transitório, e é o que agora atravessa a humanidade européia. Tudo está preparado para a passagem de um período ao outro, não falta mais que um impulso que realize esta mudança. E este impulso pode dar-se a cada momento. A consciência social nega desde há muito as formas antigas da vida, e está pronta a adotar as novas. Todos sabem dela e igualmente a sentem. Mas a inércia do passado, o temor do porvir fazem com freqüência que o que está preparado há muito tempo na consciência de todos não torne-se ainda uma realidade, às vezes basta uma palavra para que a consciência se imponha, e esta força importante na vida comum da humanidade -- opinião pública -- transforma imediatamente, sem luta e sem violência, toda a ordem existente.


 

A situação da humanidade européia com o funcionalismo, os impostos, o clero, as prisões, as guilhotinas, as fortalezas, os canhões, a dinamite, parece, com efeito, horrível, mas apenas parece. Tudo isso, todos os horrores que se cometeram, não se baseiam mais do que em nossa representação. Todas essas coisas, não apenas não deveriam existir, como também deveriam deixar de existir diante do estado da consciência humana. A força não está nas prisões, nos grilhões, nos canhões, na pólvora, a força está na consciência dos homens que aprisionam, constroem, manejam os canhões. E a consciência desses homens está em luta com a contradição mais manifesta, com a contradição mais temível, e se vê atraída por pólos opostos. Cristo disse que venceu o mundo, e ele o venceu de fato.


 

O mal deste mundo, apesar de todos seus horrores não mais existe, porque tem desaparecido da consciência dos homens. E não precisa mais que um pequeno impulso para que se destrua o mal, e este dê lugar a uma nova forma de vida.


 

Nos primeiros tempos do cristianismo, o guerreiro Teodoro foi executado por declarar ao seu comando que por ser cristão não poderia portar armas, seus condenadores o olharam estupefatos, considerando-o louco, e não apenas não ocultaram tal ato, como também o expuseram à reprovação geral.


 

Mas hoje quando na Áustria, na Prússia, na Suécia, na Rússia, e em toda Europa, o número de refratários cresce de uma maneira considerável, esses casos não parecem mais aos potentados como casos de loucura; mas como atos bem perigosos, e os governos não mais não os lançam à execração geral, mas os ocultam com cuidado, sabedores que os homens se livram de sua escravidão, de sua ignorância, não pelas revoluções, pelas associações operárias, pelos congressos da paz, pelos livros, e sim pelo modo mais simples, isto é; que cada candidato a tomar parte na violência contra seus irmãos e contra si mesmo pergunte com assombro: Por quê hei de fazê-lo?


 

Não são as complicadas instituições, as associações, os julgamentos, etc., que salvarão a humanidade, será o simples arrazoamento, quando se tornar geral. E pode e deve sê-lo logo. A situação dos homens de nossa época é semelhante a do homem atormentado por um horrível pesadelo; o homem vê a si mesmo em uma situação extraordinária, diante de um mal horrível que avança sobre ele; compreende que aquilo não pode acontecer, mas não consegue deter o mal que se aproxima cada vez mais, é tomado pelo desespero, e já no limite faz uma pergunta a si mesmo: mas é isso verdade? E basta que duvide da verdade do mal para que em seguida desperte e se dissipe toda a angústia que sofria.


 

O mesmo ocorre com este estigma da violência, da servidão, da crueldade, da necessidade de participar desta terrível contradição, entre a consciência cristã e a vida bárbara na qual se encontram os povos europeus. Mas quando despertarem do sonho em que estão mergulhados, quando despertarem para a contemplação superior da vida revelada pelo cristianismo há mil e novecentos anos, quando esta chama queimar por toda parte, repentinamente desaparecerá tudo aquilo que é tão terrível, como ocorre ao despertar-se de um pesadelo, a alma, a consciência daquele que sofre esse pesadelo se fartará de satisfação, e até mesmo lhe será difícil compreender como semelhante insensatez pôde vir-lhe em um sonho.


 

Bastará despertar um instante desse aturdimento perpétuo no qual o governo trata de nos manter, bastará contemplar o que fazemos sob o ponto de vista das exigências morais, bastará contemplar o que pedimos às crianças, e o que fazemos aos animais, para horrorizá-los de toda a evidência da contradição em que vivemos. É necessário apenas que o homem desperte do estado hipnótico em que vive, que mire sobriamente o que o Estado exige dele para que, não apenas negue obediência, mas sinta uma perplexidade e uma indignação indizível do atrevimento de virem até você com semelhantes exigências.


 

E este despertar pode produzir-se de um momento para outro.