quarta-feira, 30 de outubro de 2013
domingo, 13 de outubro de 2013
Os jornais, para que servem?
Os jornais, para que servem? (*)
Henry David Thoreau
Ler um jornal é como observar um aquário. Peixes, água, barquinho afundado, bolhas. A visão dos jornais restringe o mundo a um aquário! Um mundo reduzido, um conjunto ou círculo ideológico onde cabem apenas vedetes, uma covarde concessão às idéias dominantes e aos poderes governamentais.
Acompanhei as notícias dos jornais, revistas e TV no período da ditadura. Com raras exceções, não via utilidade melhor aos jornais impressos que dobrá-los, cortá-los, perfurá-los e dependurá-los em um prego perto da bacia da privada. Nem uma palavra pela democracia. O fato do regime ditatorial proibir jornais de falar a verdade não justifica proferir mentiras durante 21 anos. Se um soldado é obrigado pelo seu comandante a descumprir as leis, ferir, matar inocentes, se for pessoa de bem, nada mais lógico do que mudar de profissão. Porque os jornalistas naquele período não fizeram o mesmo?
Esses noticiários nos são vendidos como peixe velho retirado de uma geladeira. Em seus personagens principais, vedetes do mundo esportivo, político, artístico, científico, não se vê nada que lembre respeitáveis cidadãos de uma democracia. E quando retratam o homem comum, ele aparece como criminoso, estúpido, ridículo ou massa de manobra.
Lembro da ocasião em que contratei uma jornalista do Estadão para escrever uma matéria sobre Jaime Cuberos, que acabara de morrer de câncer. Sapateiro, jornalista, autodidata, respeitado no meio acadêmico, maior expressão do anarquismo brasileiro. A matéria seria publicada numa revista alternativa. “Jaime Cuberos? Quem é?” Disse ela, em tom de deboche. Respondemos que o Jornal do Brasil fizera no dia anterior uma resenha sobre sua vida, ao que ela retrucou: “o JB está à beira da falência, esse cara não merece nada além de uma nota paga na seção de efemérides”. Nesse dia eu compreendi a estreiteza da mentalidade da maior parte dos jornalistas.
Mas quem é este público que consome jornais? Quem é este público assim tão totalmente privado da liberdade e que tolera todo tipo de abuso? Seja lá qual for, ele merece menos que qualquer outro ser tratado gentilmente. Os manipuladores da propaganda, com o descaramento habitual daqueles que sabem que as pessoas tendem a justificar quaisquer afrontas não desforradas, calmamente declaram que “as pessoas informadas lêem jornais”. Mas essas informações e esses jornais são igualmente vis, pois dificilmente questionam quem, como, quando, porque certas matérias são escritas, e ignoram por quem e por qual razão uma versão do fato é defendida nos editoriais e outra não.
Os leitores de jornais, raramente proletários e nunca burgueses de verdade, são recrutados quase que completamente de um único estrato social, que, todavia, tem aumentado consideravelmente – o extrato dos empregados qualificados de baixo nível das várias ocupações do setor de “serviços”, tão necessários ao atual sistema de produção: administração, controle, manutenção, pesquisa, ensino, propaganda, entretenimento, pseudo crítica. Só para dar uma idéia de quem são eles. Este público que ainda lê jornais, inclui naturalmente o jovem da mesma classe que ainda está na fase de aprendizado de uma ou outra dessas funções.
Enganados sobre tudo, eles podem apenas repetir absurdos baseados em mentiras – não passam de pobres assalariados que se vêem como donos de propriedades, não passam de místicos ignorantes que se julgam educados, não passam de zumbis com a ilusão de que seus votos significam alguma coisa, e que acompanham diariamente os gráficos das intenções de voto estampados nas manchetes, que pautarão suas conversas nos bares, filas e local de trabalho.
Este público, que gosta de simular conhecimento, na verdade não faz outra coisa senão justificar tudo aquilo que é forçado a sofrer, aceitando passivamente a constante e crescente repugnância do alimento que ingere, do ar que respira, da casa onde mora – este público leitor grita por mudança somente quando afeta a mesmice com a qual se acostumou. Todos os jornalistas, até mesmo aqueles suficientemente atualizados para ecoar alguns poucos modismos criados pela imprensa, continuam presumindo a inocência deste público, continuam usando as mesmas velhas convenções jornalísticas para mostrar o mesmo tipo de aventura distante ordenada por celebridades – celebridades cuja intimidade pode ser vista em grande parte pelo buraco da fechadura da TV.
Os jornais a que me refiro é uma imitação desordenada de uma vida desordenada, uma produção habilmente projetada para nada comunicar. Não serve a nenhum propósito fora daquela hora de enfado que reflete o mesmo enfado. Esta imitação covarde é a enganação do presente e a falsa testemunha do futuro. Sua massa de ficções e grandes espetáculos não passa de uma acumulação inútil de reflexos varridos pelo tempo. Que respeito infantil pelas imagens e pensamentos de políticos profissionais, celebridades de BBB, Fazenda, vedetes de futebol! Esta feira das vaidades é bem adequada para espectadores plebeus, que constantemente oscilam entre o entusiasmo e a decepção, o bipolarismo epidêmico de nossos dias; falta-lhes gosto porque eles nunca tiveram nenhuma experiência feliz em coisa alguma, e recusam admitir suas experiências infelizes porque lhes falta além da coragem também o gosto. Isso explica porque nunca cessam de sofrer todo tipo de fraude, geral e particular, que apela para a auto influenciada credulidade.
O que os jornais de nossos dias escrevem, da mesma forma que durante o tempo da ditadura, é tão desprezível quanto a máxima de que o que não está no processo ou no aquário não está no mundo. Foi justamente a intimidação de testemunhas, a compra de falsos depoimentos, o sumiço de provas cabais, tudo isso promovido pelo governo dos Estados Unidos, que lançaram Sacco e Vanzeti na cadeira elétrica, e que fizeram o advogado deles jurar que nunca mais pisaria num tribunal.
Todo ano a mesma ladainha do mundo do aquário e do processo. Diariamente jornais estampam malditos gráficos de intenção de voto em candidatos de plantão. Como se não houvesse no mundo outra opção à democracia representativa, democracia que deixa de sê-la ao tornar-se representativa. Como se democracia do povo e democracia de representantes ou pseudo representantes do povo fossem a mesma coisa.
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(*) boa parte desse texto constitui desvio de "In Girum" de autoria de Guy Debord
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