quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Cristianismo e Anarquismo por Leon Tolstoi

Leão Tolstoi

Cristianismo e anarquismo

Janeiro de 2010
Traduzido por Railton de Sousa Guedes com base na versão em espanhol publicada em maio de 2003 por Chantal López e Omar Cortés

Livro em pdf para impressão: http://tinyurl.com/yl9ungl

Índice
Nota da edição espanhola
Nota da presente edição
Sobre a revolução.
Os acontecimentos atuais na Rússia.
Carta a Nicolau II.
Importância de negar-se o serviço militar.
Aos políticos 1.
Aos políticos 2.
Aos políticos 3.
Aos políticos 4.
Aos políticos 5.
Aos políticos 6.
Aos políticos 7.

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Nota da edição espanhola

Com os presentes ensaios de Leão Tolstoy, trazemos de volta uma velha, árdua e constante polêmica em nosso meio: Pode haver compatibilidade entre anarquismo e cristianismo? Ou será que não existe a menor base nem mesmo para estabelecer uma ponte de comunicação?

Há informações suficientes para asseverar que esta comunicação, de fato, se tem dado; e este pequeno trabalho, na realidade, é uma mostra inequívoca do que afirmamos. Também poderíamos falar das posturas, sem dúvida anarquistas, florescentes em várias das chamadas seitas milenaristas que proliferaram durante a Idade Média e igualmente das posições anarquistas na concepção do personalismo mounieriano, cujas teses passaram a formar parte do anarquismo atual através das opiniões de Carlos Diaz, fiel representante desta corrente; além das inquestionáveis análises e juízos de Ivan Illich que dão pleno testemunho da comunicação existente entre anarquismo e cristianismo.

Por estas razões decidimos publicar esta obra, já que nosso trabalho, no campo das edições virtuais, pretende oferecer a um amplo público todas as posições que se assemelham, acercam ou confluem para o anarquismo, independentemente das fortes polêmicas que possam gerar na comunidade anarquista internacional.
Maio de 2003, Chantal López e Omar Cortés


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Nota da presente edição

É com satisfação que aproveito essa oportunidade para dizer aos leitores em geral e aos anarquistas em particular que, para respirar, a anarquia tem que virar carne e osso. Sem essa condição ela é apenas uma palavra vaga, uma definição de dicionário, talvez bela, mas disforme e oca.

Como nos tempos de Tolstoi, ao contrário do que muitos pensam, a anarquia não apenas vive, como também silenciosamente avança firme, a passos largos, na conquista de novos territórios.

Plena de paz, como a água cristalina de um rio vencendo obstáculos e montanhas contornando-os, a anarquia segue em frente superando aquilo que Ellul chamou de tecnologia, que Marx chamou de capitalismo, que Debord chamou de espetáculo, que Kropotkim chamou de competição e que os anabatistas há cinco séculos chamam de parque de diversões do diabo.

Estou definitivamente convencido de que os melhores cristãos foram anarquistas, de que os maiores anarquistas seriam melhores se fossem cristãos e de que a coerência não está na muleta da teoria nem na definição da palavra, mas na realização e na prática efetiva.
São Paulo, janeiro de 2010, Railton de Sousa Guedes


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Sobre a revolução (1)
 
Não há pior surdo que aquele que não quer ouvir. Os revolucionários dizem que sua atividade tem por objeto a destruição do tirânico estado atual de coisas que oprime e deprava aos homens. Mas, para aniquilá-lo há que contar de antemão com os meios para ter ao menos uma probabilidade de conseguir isso, caso contrário, não há a menor probabilidade de derrotá-lo. Os governos existem; desde há muito tempo conhecem a seus inimigos e os perigos que os ameaçam, e por esta razão tomam as medidas que tornam impossível a destruição do estado de coisas por meio do qual se mantém. E os motivos e os meios que os governos usam são os mais fortes que podem existir: o instinto de sobrevivência e o exército disciplinado.

A tentativa revolucionária de 14 de dezembro ocorreu sob as condições mais favoráveis; era uma época de transição, e a maior parte dos revolucionários pertenciam ao exército. E como! Entretanto em São Petersburgo e em Toultchine a insurreição foi sufocada quase sem esforços pelas tropas submissas ao governo, e logo veio o reinado de Nicolau I, inepto, brutal, que depravou aos homens e durou cerca de trinta anos. E todas as tentativas de revolução, sem tapeação, posteriores àquela, começando pelas aventuras de algumas dezenas de jovens de ambos sexos que pensavam que armando os camponeses russos com algumas centenas de pistolas, venceriam um exército aguerrido de milhões de soldados. Bastava os trabalhadores gritarem com a bandeira em mãos: Abaixo o despotismo! Para logo em seguida serem facilmente dispersos por algumas dezenas de gorilas e cossacos armados de chicotes. Tal repressão também foi vista nas explosões e assassinatos de 1870, precursores do 1° de março (2). Todas essas tentativas terminaram, e não poderiam terminar de outra maneira, com a perda de muita gente de valor e com o aumento da força e da brutalidade por parte do governo. As coisas não tem mudado de lá para cá. No lugar de Alexandre II veio Alexandre III, depois Nicolau II. No lugar de Bogoliepov, veio Glazov, no lugar de Spiagnine, veio Plehwe; e depois de Bobrikov, veio Obolensky.

Eu ainda não havia terminado de escrever este trabalho quando Plehwe perdeu seu cargo, e para substituí-lo pensava-se nomear outro ainda mais odioso que ele, tanto que depois da morte de Plehwe, o governo tornou-se ainda mais cruel. Ninguém pode negar o valor de homens como Khaltourine (3), Ryssakov e Mikhaikov (4), e dos que mataram Bobrikov e Plehwe, que sacrificaram suas vidas para alcançar um fim inacessível. De igual maneira tampouco pode-se deixar de reconhecer o valor e a abnegação daqueles que a custa dos maiores sacrifícios incitaram o povo à revolução, e dos que imprimem e propagam folhetos revolucionários.

Mas é impossível não ver que a atividade desses homens não pode resultar outra coisa senão a derrota e a piora da situação em geral. O que faz com que homens inteligentes, morais, possam entregar-se inteiramente a uma atividade tão claramente inútil, pode explicar-se unicamente porque na atividade revolucionaria, há algo de excitante na luta , no risco de vida, que sempre atrai à juventude. É comovente ver a energia de homens fortes e capazes direcionada para matar animais, percorrer grandes trajetos de bicicleta, saltar obstáculos, lutar, etc., e é ainda mais triste ver esta energia sendo gasta arrastando homens para uma atividade perigosa que destrói sua vida, ou, pior ainda, para atividades legais, ou, mais precisamente, para atividades definidas como legais, onde se proíbe, sob pena de castigo, qualquer um que atente contra o que se reconhece ser direito dos indivíduos. Aqui, a despeito dessa definição ter como base a liberdade, o que ocorre na verdade é, na maioria dos casos, uma violação à liberdade do homem. Por exemplo, nossa sociedade reconhece o direito do governo dispor do trabalho (impostos), e até mesmo da pessoa (serviço militar) de seus cidadãos. Reconhece que alguns homens tem o direito da posse exclusiva da terra, quando sem embargo, é evidente que tais direitos, ao proteger a liberdade de uns, não apenas priva outros de liberdade, como também do modo mais brutal priva a maioria de dispor de seu trabalho e até mesmo de sua pessoa.

Definir liberdade como direito de fazer tudo o que não atinja a liberdade de alguns, tudo o que não é proibido pela lei; evidentemente, não corresponde ao conceito da palavra liberdade. E não poderia ser de outro modo, porque uma definição semelhante atribui ao conceito de liberdade a qualidade de algo positivo, quando liberdade é uma concepção negativa. Liberdade é ausência de travas. O homem é livre somente quando ninguém lhe proíbe, sob a ameaça da violência, de executar certos atos.

Os homens não podem ser livres em uma sociedade onde os direitos das pessoas estão definidos de uma maneira onde se exige ou se proíbe certos atos sob pena de castigo. Os homens podem ser verdadeiramente livres apenas quando todos igualmente estiverem convencidos da inutilidade, da ilegitimidade da violência, e obedeçam as regras estabelecidas, não por medo da violência ou da ameaça, e sim, pela convicção arrazoada.

Mas não faltará quem me objete, dizendo que não há uma sociedade semelhante, logo, em nenhuma parte pode existir a verdadeira liberdade; mesmo admitindo não haver sociedade que não reconheça a violência como necessária, esta necessidade também tem seus diversos graus. Toda a história da humanidade é a gradual substituição da violência pela convicção razoável. Ademais, a sociedade reconhece claramente a estupidez da violência, e se acerca cada vez mais da verdadeira liberdade. Isto é elementar e deveria ser claro para todos se desde há muito não se houvesse estabelecido entre os homens a inercia diante da violência e o emaranhado voluntário dos conceitos para sustentar esta violência que só é vantajosa para os dominadores.

A influência mútua pela convicção razoável, baseada nas leis de uma razão comum a todos, é própria dos homens e dos seres razoáveis. Esta submissão voluntária de todos às leis da razão e o fato de proceder cada um para com os demais da mesma forma como quer que procedam para com ele, é própria à natureza do homem razoável que é comum a todos. Esta relação mútua dos homens, que realiza o mais elevado ideal de justiça, é propagada por todas as religiões, e a humanidade não cessa de aproximar-se dela.

Por esta razão é evidente que nos espera uma liberdade cada vez maior, não pela introdução de novas formas de violência como fazem os revolucionários que tratam de aniquilar a violência existente com o emprego de outra violência, e sim propagando entre os homens a consciência do ilegítimo, da criminalidade, da violência e a possibilidade de ser substituída pela convicção arrazoada, ao mesmo tempo em que cada indivíduo vai empregando cada vez menos a violência. Esparramando este convencimento e abstendo-se da violência, cada homem tem um meio acessível e o mais poderoso: convencer-se a si mesmo, ou seja, aquela pequena parte do mundo que nos é submissa, e graças a este convencimento, separar-se de toda participação na violência e levar uma vida na qual a violência deva resultar inútil.

Pensa com seriedade, compreende e define o sentido de tua vida e de teu destino – a religião te ensinará – trata, na medida do possível, de realizar em tua vida o que consideres como teu destino. Não tomes parte no mal que reconheces e censuras. Vive de maneira que a violência não te seja necessária, e te ajudarás da maneira mais eficaz a adquirir a consciência da criminalidade, da inutilidade da violência, e procedendo assim, pela via mais segura, poderás esperar a libertação dos homens, o objetivo dos revolucionários convictos.

Não há liberdade quando não se permite dizer o que se pensa, nem quando não se pode viver como se crê necessário.

Ninguém pode obrigar-te a dizer o que não acreditas ser útil e nem a viver como não queiras, e todos os esforços dos que te contradizem não farão mais que fortalecer a influência de tuas palavras e de teus atos.

Mas essa negativa de atividade exterior, não seria um sinal de debilidade, de covardia, de egoísmo? Esse distanciamento da luta não ajudaria o aumento do mal?

Existe uma opinião semelhante; e provocada por revolucionários. Mas esta opinião não é apenas injusta, como também revela má fé. Cada homem que deseja colaborar para o bem geral de todos os homens deverá tratar de viver sem recorrer em nenhum caso à proteção de sua pessoa e de sua propriedade pela violência, deverá tratar de não submeter-se às exigências das superstições religiosas e governamentais, não deverá em nenhum caso tomar parte na violência governamental, seja nos tribunais, seja nas administrações, ou em qualquer outro serviço, não deverá usufruir, sob nenhuma forma, de dinheiro arrancado do povo pela força, não deverá tomar parte no serviço militar, fonte de todas as violências. Atento a estas coisas, este homem saberá por experiência, quais são os verdadeiros valores e quais são os sacrifícios necessários para seguir o caminho do emprego de uma atividade completamente revolucionária.
A recusa em pagar impostos ou tomar parte no serviço militar, tem amparo na lei religiosa e moral, que os governos não podem negar, apenas esta recusa, firme e atrevida, quebra as estruturas sobre as quais se sustêm os governos e isso será mil vezes mais seguro que o emprego das greves por mais longas que sejam, que os milhões de folhetos socialistas, que as revoluções melhor organizadas ou a matança de políticos.

E os governantes sabem disso, o instinto de conservação lhes diz onde está o perigo principal. Não tem medo das tentativas violentas, pois tem em suas mãos uma força invencível; mas sabem também que são impotentes contra a convicção razoável, afirmada pelo exemplo da vida.

A atividade espiritual é a força maior e mais poderosa. Move o mundo. Mas para que seja a força que move o mundo é preciso que os homens creiam em sua potência, que se sirvam dela sem mesclar procedimentos de violência que aniquilam sua força. Os homens devem saber que todas as muralhas da violência, mesmo aquelas que parecem mais fortes, não se derruba pelas conjurações, pelos discursos parlamentares, ou pelas polêmicas dos periódicos, e muito menos pelas revoluções ou matanças; se derruba unicamente pela explicação que cada um faz do sentido e do objetivo de sua vida e a execução firme, valorosa, sem compromissos, em todos os aspectos da vida, das exigências da lei superior, interior da vida. Seria bem desejável que os jovens, que não ligam para o passado, que querem com sinceridade servir ao bem dos homens, que compreendessem que a atividade revolucionária que lhes atrai, não somente não alcança um fim persuasivo, como também lhe é completamente contrário, esgota suas melhores forças da vida, pela qual podem servir a Deus e aos homens. A atividade revolucionária, com mais frequência, produz um efeito contrário ao seu objetivo, que não se alcança exceto pela clara consciência de cada indivíduo sobre seu destino e sobre sua dignidade humana, e, portanto, pela vida firme, religiosa e moral que não admite nenhum compromisso, nem por palavras ou atos, com o mal da violência que se censura e se deseja destruir.

Se um por cento da energia que é gasta agora pelos revolucionários para alcançar fins exteriores inalcançáveis fosse empregada no trabalho interior espiritual, há muito tempo essa energia haveria derretido esse mal, como a neve ao sol do verão, contra o qual os revolucionários tanto tem lutado e ainda lutam em vão.
Yasnaia Poliana, 22 julho (4 agosto 1904).


Notas
(1) Este artigo serviu de prefácio a um folheto de M. V. Tcherkov, intitulado, A revolução violenta ou a libertação cristã.
(2) 1° de março de 1881. Morte de Alexandre II.
(3) Tentou explodir o Palácio de Inverno em 1880.
(4) Dois dos autores da morte de Alexandre II.


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Os recentes acontecimentos na Rússia

Há dois meses, recebi de um periódico da América do Norte um cabograma pré-pago para uma resposta de cem palavras: perguntavam minha opinião sobre a importância, objetivo e consequências prováveis da agitação dos zemstvos. Tendo sobre este ponto uma opinião mui clara e em desacordo com a maioria, achei por bem responder.

Aqui vai minha resposta:

A agitação dos Zemstvos tem por objetivo a limitação do despotismo e a instituição de um governo representativo. Os instigadores desta agitação esperam alcançar com ela seu objetivo ou dar continuidade à perturbação social? Em ambos os casos o resultado provável será o adiamento do verdadeiro melhoramento social, pois este não se obtém senão pelo aperfeiçoamento religioso e moral do individuo. A revolução política coloca diante dos indivíduos a ilusão perniciosa da melhora social pela mudança das formas exteriores, e geralmente estanca o verdadeiro progresso, o que pode ser visto em todos os Estados constitucionais: França, Inglaterra, América.

O conteúdo deste telegrama apareceu no Moskovkia Viédemosti com algumas inexatidões, e em seguida passei a receber, e ainda recebo, cartas cheias de censuras pela ideia que emitiu; além disso, periódicos americanos, ingleses e franceses me perguntaram o que penso sobre os acontecimentos que atualmente se desenvolvem na Rússia Não quis responder nem um nem outro; mas depois das matanças de São Petersburgo, e dos sentimentos de indignação, de medo, de cólera e de ódio que têm provocado na sociedade, creio é dever meu explicar-me com mais detalhes e clareza, do que brevemente o fiz nas cem palavras do periódico americano.

O que direi talvez ajude alguns homens a libertar-se dos manifestos sentimentos de censura, de vergonha, de irritação e de ódio; do desejo de luta, da vergonha, e da consciência de impotência que agora sentem a maioria dos russos; talvez isto lhes ajude a reconcentrar sua energia sobre essa atividade interior, moral, que apenas procura o verdadeiro bem tanto para os indivíduos como para a sociedade, e que sem embargo, é bem mais necessária do que as complicadas atividades exteriores que desenvolvem os atuais acontecimentos.

Eis o que penso dos acontecimentos atuais:

Considero não apenas o governo russo, como qualquer governo, como uma instituição complicada, consagrada pela tradição e pelo costume a cometer impunemente a violência, os crimes mais espantosos, as matanças, a pilhagem, a promoção do alcoolismo, o embrutecimento, a depravação, a exploração do povo pelos ricos e pelos poderosos. Por esta razão penso que todos os esforços dos que desejam melhorar a vida social devem tender a livrar os homens dos governos, cuja inutilidade é em nossa época cada vez mais evidente. Este objetivo, segundo meu entendimento, se consegue por apenas um meio, e único: pelo aperfeiçoamento interior, religioso e moral dos indivíduos.

Quanto mais superiores forem os homens do ponto de vista religioso e moral, melhores serão as formas sociais sob as quais se agruparão, e o governo terá que recorrer menos aos procedimentos do mal e da violência Caso ocorra o contrário, homens religiosa e moralmente piores, o governo será mais poderoso e será maior o mal que cometerá.

De forma que o mal causado aos homens pelo governo é sempre proporcional ao estado moral e religioso da sociedade, qualquer que seja sua forma.

Sem embargo, certas pessoas, diante de todo o mal cometido na atualidade pelo governo russo – um governo especialmente cruel, grosseiro, estúpido e embusteiro – pensam que todo esse mal não se produziria se o governo russo estivesse organizado como deveria estar, sobre o modelo de outros governos existentes (que são as mesmas instituições, boas para cometer impunemente sobre seus povos todo tipo de crimes); e para buscar remédio, essas pessoas empregam todos os meios disponíveis pensando que a mudança de formas exteriores pode modificar a estrutura.

Uma atividade semelhante me parece ineficaz, fora da razão, arbitrária (ou seja, que os homens atribuam a si mesmo direitos que não têm) e inútil.

Considero esta atividade ineficaz, porque a luta pela força – em geral, pelas manifestações exteriores (e não unicamente pela força moral) por parte de um grupo pequeno de pessoas contra um governo poderoso que defende sua existência e que para isso dispõe de milhões de homens armados e disciplinados, e de milhões de rublos – sob o aspecto do possível êxito, não é mais do que ridícula, e é evidente que, sob o ponto de vista da sorte desses desgraçados, deixando-se arrastar perdem sua vida nesta luta desigual.

Esta atividade me parece inaceitável, posto que até mesmo na hipótese do triunfo dos que realmente lutam contra o governo, a situação dos homens não poderia melhorar.

O atual governo, que procede pela força, é tal, somente porque a sociedade que domina está composta de homens moralmente bem débeis, onde uns, guiados pela ambição, pelo lucro e pelo orgulho, sem serem molestados pela consciência, tratam por todos os meios de conquistar e manter poder; os outros por medo e também por amor à ganância e à ambição, ou graças ao embrutecimento, ajudam aos primeiros ou também se submetem. De qualquer modo e sob qualquer forma que esses homens se agrupem, resultará sempre um governo semelhante e igualmente violento.

Considero esta atividade anormal, porque os homens, que na atualidade lutam na Rússia contra o governo – os membros liberais dos Zemstvos, os médicos, os advogados, os escritores, os estudantes, os revolucionários e alguns milhões de trabalhadores separados do povo influenciados pela propaganda – por mais que creiam e se intitulem representantes do povo, não tem nenhum título para ele.

Esses homens, em nome do povo, exigem liberdade do governo, liberdade de imprensa, liberdade de consciência, liberdade de reunião, a separação da Igreja e do Estado, a jornada de trabalho de oito horas, a representação nacional, etc. E perguntado o povo, os cem milhões de camponeses sobre o que pensam dessas reclamações, o verdadeiro povo custará responder, porque todas essas reclamações, até mesmo a jornada de trabalho de oito horas, para a grande massa dos camponeses não tem nenhum interesse.

Os camponeses não necessitam de nada disso, o que lhes falta é outra coisa. O que esperam e desejam, faz muito tempo, o que pensam e continuamente falam – e para o qual não há nenhuma palavra em todas as proclamações e discursos liberais, e que apenas são mencionados nos programas revolucionários e socialistas – o que o povo espera e deseja é a franquia da terra do direito de propriedade, a socialização da terra. Quando o camponês usufruir da terra, seus filhos não mais irão para as fábricas, e os que quiserem ir estabelecerão por si mesmos o número de horas de trabalho e de salário.

É comum ouvir-se: deem liberdade e o povo exporá suas reclamações. Isso é falso. Na Inglaterra, França, e América, a liberdade da imprensa é absoluta, sem embargo, nos parlamentos não se fala da socialização da terra, não se fala da socialização nos periódicos, e a questão do direito do povo sobre a terra sempre acaba relegada ao último lugar.

Por esta causa os liberais e os revolucionários, que dizem interessar-se e conhecer as necessidades do povo, não tem nenhum direito para com ele; não representam o povo, os liberais e os revolucionários não representam mais do que eles mesmos.

Também, segundo minha opinião, esta atividade além de ser ineficaz, inaceitável, arbitrária, é também prejudicial, posto que afasta os homens daquela atividade única – o aperfeiçoamento moral do indivíduo – pela qual, e somente por ela, pode-se alcançar os objetivos dos homens que lutam contra o governo.

Um não impede o outro, se me objetará. Mas isso não é verdade. Ninguém pode fazer duas coisas de uma só vez. Ninguém pode aperfeiçoar-se moralmente, e ao mesmo tempo tomar parte em atos políticos que arrastam os homens às intrigas, astúcias, lutas, cólera, chegando até mesmo ao assassinato. A liberdade política não ajuda a nos livrar da violência governamental, pelo contrário, torna os homens ainda mais ineptos à única liberdade que pode redimi-los.

Enquanto os homens forem incapazes de resistir às seduções do medo, do lucro, da ambição, da desigualdade, que humilham a uns e depravam a outros, formarão sempre uma sociedade composta de violadores, de impostores e de suas vítimas. Para que isto não suceda, cada indivíduo deve fazer um esforço moral sobre si mesmo. Os homens sentem isso no fundo de sua alma, mas de um modo ou de outro preferem esperar, sem fazer esforços, o que sempre se consegue pelo esforço.

Explicar, por esforços próprios, sua missão para com a sociedade, estabelecer sua relação para com os homens, ter como base a lei eterna do não fazer aos demais o que não queres que façam a ti, reprimir suas más paixões, que nos entregam ao poder dos outros homens, não ser nem amo nem escravo de ninguém, não fingir, não mentir, nem por temor nem por lucro, não enganar as exigências da lei suprema da consciência.
Tudo isso exige esfôrço.

Imaginar, pelo contrário, que a instituição de determinada forma de governo conduzirá, por uma via mística qualquer, todos os homens à equidade e à virtude. Imaginar que para chegar a isso, sem nenhum esforço do pensamento, basta repetir o que dizem os homens de um partido, mover, discutir, mentir, fingir, insultar e debater. Ora, tudo isso se faz por si só, sem que haja necessidade de esforços. Os homens que querem que assim seja, acabam persuadidos de que assim é.

E então surge uma teoria cheia de regras a qual trata de provar que os homens podem, sem esforços, obter os resultados do esforço. Essa teoria é semelhante à anterior, com regras que pregam sua própria perfeição, a fé na redenção dos pecados pelo sangue de Cristo ou a graça divina transmitida pelos sacramentos, funcionando como substitutos ao esforço pessoal. Essa aberração psicológica baseada na teoria de melhorar a vida social pela mudança das formas exteriores, produziu e produzirá males horríveis, e mais do que qualquer coisa, impede o verdadeiro progresso da humanidade.

Os homens reconhecem que tem em sua vida algo de ruim, algo que é preciso melhorar. Mas ao homem não lhe é factível mais do que melhorar uma coisa: a si mesmo. Mas para melhorar a si mesmo, é preciso antes de tudo, reconhecer o que não é bom, e isso, o homem não quer fazer. Eis aqui onde se fixa toda sua atenção, não sobre o que esteve sempre em nossa faculdade de fazer, e sim sobre as condições exteriores que não são de nossa incumbência e cuja mudança não pode melhorar a situação dos homens, como tampouco o odre melhora a qualidade do vinho. E aqui começa uma atividade estéril, enojada, orgulhosa (pois corrigimos os outros), perversa (pode-se matar aos que constituem um obstáculo ao bem comum), e depravada.

Reconstituamos as formas sociais e a sociedade prosperará. Como seria bom se o bem da humanidade se lograsse tão facilmente! Por desgraça, ou melhor, por fortuna, pois se alguns pudessem tirar a vida de outros, isso seria a maior desgraça dos homens, e as coisas não são assim. A vida humana se modifica não pela mudança das formas exteriores mas apenas pelo trabalho interior de cada indivíduo sobre si mesmo. E cada esforço para operar sobre as formas exteriores ou sobre os demais, não faz mais do que interferir e diminuir a vida daqueles que – como todos os políticos, reis, ministros, membros do parlamento, revolucionários de todos os tipos, liberais – cedem a este erro pernicioso.

Os homens que julgam de uma maneira superficial, os homens ligeiros que se divertem com a constante carniçaria fratricida que ocorre em São Petersburgo e com todos os acontecimentos que giram em torno desse crime, pensam que a causa principal de tais acontecimentos está ligada ao despotismo do governo russo, e que se a forma autocrática do governo russo fosse substituída pela constitucional ou republicana, semelhantes acontecimentos não poderiam repetir-se.

Mas o mal principal (se alguém prestar atenção em sua importância) que sofre agora o povo russo, não está nos acontecimentos de São Petersburgo; está na guerra afrontosa e cruel, prontamente iniciada por uma dezena de homens imorais. Esta guerra já matou centenas de milhares de russos, e ainda ameaça matar ou mutilar outros tantos; tem lançado ruína não apenas aos homens desta geração, como também aos da geração futura que arcarão com os enormes impostos resultantes das dívidas, fora a perda das almas dos homens depravadas pela guerra. O que ocorreu em São Petersburgo em 9 de janeiro não é nada comparando-se com o que ocorre no campo de batalha onde se mutilam cem vezes mais homens do que os que pereceram em 9 de janeiro em São Petersburgo. E a perda desses homens na guerra não revolta a sociedade como as matanças de São Petersburgo, pelo contrário, a maioria olha isso tudo com indiferença, outros olham com compaixão o envio para lá de milhares de homens para a mesma insensata matança, que não tem objetivo.

Este mal é horrível! Assim, pois, se é para falar dos males do povo russo, há que se falar da guerra; os acontecimentos de São Petersburgo não são mais que uma circunstancia acessória que acompanha o profundo mal que existe, e se é necessário encontrar o meio que nos livre destes males, há que ser de tal caráter, que nos livre ao mesmo tempo dos dois.

A mudança da forma despótica de governo para uma forma constitucional republicana, não livrará a Rússia nem do primeiro nem no segundo mal. Todos os Estados constitucionais – como o Estado russo – estupidamente se armam, e – como a Rússia – quando os poucos homens que detém o poder resolvem, enlevam seu povo à luta fratricida; a guerra da Abisinia, do Transvaal, da Espanha, de Cuba e das Filipinas, da China, do Tibet, a guerra contra os povos da África, todas estas guerras foram feitas tanto por governos constitucionais como por governos republicanos; igualmente todos esses governos, quando creem necessário, reprimem com ferro e fogo as revoltas e manifestações da vontade do povo quando as consideram violação da legalidade, ou seja, aquilo que o governo, em certo momento considera ser a lei.

Quando há em um Estado uma constituição qualquer, o poder se mantêm pela violência, poder que pode ser monopolizado por alguns homens, por meios diferentes. De qualquer forma, sempre haverá probabilidade de ocorrer os mesmos acontecimentos que agora ocorrem na Rússia – a guerra e a repressão dos revoltosos.

Assim, a importância dos fatos que tem ocorrido em São Petersburgo, não tem nada a ver com o que pensam esses homens apressados, a saber, esses homens que nos tem mostrado o mal proceder do governo despótico da Rússia, e que por consequência tratam de substituí-lo por um governo constitucional. A importância desses acontecimentos é muito maior; o fato do governo russo ser em seus atos especialmente grosseiro, faz-nos ver com mais clareza o mal proceder do governo russo do que o mal proceder dos outros governos, a questão não é a inutilidade de um ou de outro governo, mas a inutilidade de todos os governos, ou seja, daquele grupo de homens que tem a possibilidade de impor sua vontade em cima da vontade da maioria do povo.

O conhecimento, a situação, e as impressões dos russos, dos europeus, e sobretudo dos americanos, são completamente análogas às dos homens que subiram ao templo, dos quais nos fala o evangelho de Lucas capítulo 18:10, 11, 13, o fariseu e o cobrador de impostos. (5)

Na Inglaterra, Alemanha, França, América, o proceder maléfico dos governos estão bem desmascarados, tanto que os cidadãos destes países, em vista dos acontecimentos da Rússia, imaginam sinceramente que o que passa na Rússia não ocorre além dela, e que eles gozam de uma liberdade absoluta e que não tem necessidade de melhorar sua situação. Mas a verdade é que se encontram em um estado ainda mais extremo de escravidão: dos que não compreendem que são escravos e estão orgulhosos de sua situação.

Sob este aspecto nossa situação, a dos russos, é mais evidente (no que diz respeito à violência é mais grosseira) e melhor situada, porque nos é fácil compreender que cada governo sustentado pela força é um grande e inútil chicote; por esta razão, o dever dos russos e de todos os homens escravizados pelos governos está não em substituir uma forma de governo por outra, mas em suprimir todo governo.

Em suma, minha opinião sobre os acontecimentos é a seguinte: o governo russo como todos os governos que existem – americano, francês, japonês, inglês – é um horrível, inumano, prepotente bandido cuja atividade malfeitora se manifesta incessantemente. Por este motivo todos os homens razoáveis devem, com todas suas forças, livrar-se de qualquer forma de governo, como os russos devem livrar-se do governo russo.

Para livrar-se dos governos não é necessário lutar contra eles pelas formas exteriores (insignificantes até o ridículo diante dos meios de que dispõem os governos) é preciso unicamente não participar em nada, basta não sustentá-los e então cairão aniquilados. E para não participar em nada dos governos nem sustentá-los é preciso estar livre da fragilidade que arrasta os homens aos laços dos governos que lhes fazem seus escravos ou seus cúmplices.

Livrar-se desta fragilidade não é possível exceto ao homem que formou um juízo sobre o Todo, isto é, sobre Deus, e cuja lei única, superior, desliga desta fragilidade o homem religioso e moral.

É aqui que os homens veem e compreendem com mais clareza o mal proceder dos governos – como ocorre atualmente, nós, os russos, compreendemos com clareza o mal desse nosso governo estúpido, cruel e embusteiro, que já sacrificou centenas de milhares de homens, que arruína e deprava milhões de pessoas, e que agora lança os russos ao fratricídio – os homens devem tratar de formar neles mesmos uma consciência limpa, firme, religiosa; devem tratar de cumprir com mais escrúpulos a lei divina que emana desta consciência e que exige de nós não a transformação do governo existente ou o estabelecimento dessa organização social que, segundo nossas limitadas opiniões, garantiriam o bem geral, mas exigir de nós apenas uma coisa; o aperfeiçoamento moral, ou seja, o despojo de todas as debilidades, de todos os vícios que fazem de nós escravos dos governos e cúmplices de seus crimes.

Havendo terminado este artigo e perguntava-me se devia publicá-lo ou não, quando recebi uma carta anônima bem importante.

Aqui vai:

Desde há algum tempo não consigo recobrar a calma. Quando alguém começa a falar de trabalhadores mortos, sinto ódio por eles e sofro uma espécie de mal físico.
Há cadáveres aos montes, mulheres e crianças ensanguentadas conduzidas em carruagens ... Mas é isso que é horrível? Não! Ver os soldados com seus semblantes bonachões, vulgares, sem pensamento, sem compreensão, isso que na realidade é horrível. Os soldados que golpeiam a neve com a sola de suas botas, esperando a hora de fuzilar alguém. Horrível é também o povo, com seu aspecto ordinário, curioso. Até mesmo os tipos mais bondosos saem pelas ruas para ver por si mesmos ou saber pelos outros sobre coisas espantosas, sobre cadáveres ensanguentados, mutilados, etc. Como se pudesse haver algo mais espantoso do que esses soldados como eles sempre foram. Quer dizer, aquelas boas pessoas não buscam outra coisa senão estremecimentos de horror.

Mas não sei como definir o que é mais terrível. Talvez seja, assim me parece, o fato dos soldados não compreenderem o significado de tudo aquilo, a vulgaridade de seus semblantes, pois dali a uma hora voltarão a matar, a tingir a terra com sangue; o mais espantoso em meu modo de ver é a ausência de qualquer laço entre os homens. Sim, acredito que isto é o mais terrível! Embora sejam de uma mesma aldeia, a única coisa que os diferencia é que enquanto alguns vestem um capote cinza, outros vestem um capote negro, e é inteiramente incompreensível porque os de cinza gracejam falando do frio enquanto olham pacificamente para os homens vestidos de negro que passam diante deles, cada qual sabe que tem cartuchos para dez disparos e que uma ou duas horas mais tarde esses cartuchos serão usados. E os homens vestidos de negro olham para eles como se isso devesse ocorrer.

Leem sobre isso nos livros, falam sobre o que separa os homens e não compreendem o quão horrível isso é, tais coisas tornam-se visíveis por toda parte, como ocorre nesses dias por aqui. Repentinamente tudo isso deixa de existir e os capotes cinza, os casacos negros, as jaquetas elegantes não mais funcionam, e todos passam a se ocupar de seus afazeres, cada qual de maneira diferente; ninguém se espanta, ninguém entre eles sabe porque alguns atiram, porque outros caem, porque os demais observam.

Normalmente, sempre surge um ou outro abominando essa via terrível, buscando sem hostilidade nem ódio à voz da conciliação! Mas nestes dias tudo isso foi momentaneamente interrompido! A única coisa que restou foi esta única e espantosa atitude. Parece que um abismo te separa de cada homem, de forma que tu não podes colocar-se a disposição dele. Este sentimento é espantoso!

Cinco vezes peguei e larguei esta carta, até que por fim decidi-me escrevê-la. Talvez porque seja incômodo calar-se para sempre. Todos falam da necessidade de ajudar aos trabalhadores e parecem compadecer-se de sua sorte. Mas não é a situação dos operários que é horrível, não são eles que necessitam de ajuda, e sim aqueles que arrastam o povo, e que tem pena dele, e aqueles que no dia seguinte olham os vidros quebrados, as portas arrebentadas, os sinais das balas, e caminham sem ver o sangue gelado sobre a calçada, pisoteando-o.


Sim, o principal é que existe mesmo uma coisa que separa os homens, e de tal forma que elimina qualquer laço entre eles. O importante é pois isolar o que separa os homens e substituí-lo por algo que os una. O que separa os homens é toda forma exterior violenta de governo; a única coisa que os une é a aproximação de Deus, o inspirar-se nEle. Deus é único para todos, aproximar-se de Deus é a única forma dos homens se aproximarem uns dos outros.

Reconheçam ou não, diante de nós desponta um mesmo ideal de perfeição, superior, e apenas a aspiração a este ideal pode destruir a desunião e aproximar os homens.
Yasnaia Poliana, fevereiro 1905.

Nota
(5) «Dois homens foram ao templo orar. Um deles era um fariseu orgulhoso, e o outro um desonesto cobrador de impostos. O orgulhoso fariseu 'orava' assim: 'eu Lhe agradeço, ó Deus, porque não sou um pecador como todos os demais, especialmente como aquele cobrador de impostos ali! Porque eu nunca engano os outros, eu não cometo adultério, jejuo duas vezes por semana, e dou a Deus um décimo de tudo quanto ganho'. Mas o cobrador de impostos ficou em pé de longe e não tinha coragem nem para levantar os olhos ao céu quando orava, porém batia no peito com grande arrependimento, exclamando: 'Ó Deus, tenha misericórdia de mim, um pecador!'» Lucas 18:10 a 13


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Carta a Nicolau II

Querido irmão:

Este qualificativo me parece o mais conveniente porque, nesta carta, me dirijo menos ao imperador e ao homem, que ao irmão. E, ademais, a escrevo quase desde o outro mundo, encontrando-me à espera de uma morte bem próxima.

Não queria morrer sem dizer o que penso de vossa atividade presente, o que poderia ser, e o grande bem que poderia reportar a milhões de homens e a mesmo a vós, e o grande mal que podeis fazer se persistires em continuar pelo caminho que agora segues.

Um terço da Rússia está submetida a uma contínua vigilância policial; o exército de policiais conhecidos e secretos aumenta sem cessar; as prisões, os centros de deportação e os calabouços estão repletos; fora os duzentos mil criminosos comuns, há um número considerável de condenados políticos entre os quais consta agora uma multidão de operários. A censura com suas medidas repressivas chegou a tal grau que superou os piores momentos dos anos que se seguiram a 1840. As perseguições religiosas não foram nunca tão frequentes nem tão cruéis como o são agora, e tornam-se cada vez mais frequentes e mais cruéis.

Nas cidades e nos centros industriais concentram-se tropas, que armadas de fuzis se lançam contra o povo. Em alguns pontos já se produziram choques e matanças e em outros pontos se preparam mais choques e mais matanças, e a crueldade delas promete ser ainda maior.

O resultado de toda esta atividade cruel do governo é que o povo agricultor, os cem milhões de homens sobre os quais está fundado o poder da Rússia, apesar dos gastos do Estado crescerem consideravelmente, ou melhor, graças ao crescimento desses gastos, esse povo agricultor empobrece cada vez mais, de maneira que a fome chega a ser o estado normal, da mesma forma que o descontentamento de todas as classes trabalhadoras e a hostilidade delas para com o governo.

E a causa de tudo isso é tão clara que chega a ser evidente. Ei-la: vossos auxiliares lhe asseguram que controlar todo movimento da vida do povo, garantirá a felicidade deste povo e, ao mesmo tempo, vossa tranquilidade e segurança. Mas é mais fácil deter o curso de um rio do que o eterno movimento da humanidade que avança para a frente, estabelecido por Deus. É bem fácil saber quais os homens a quem tal estado de coisas é vantajoso e que no fundo da alma dizem para si mesmos: Depois de nós vem o dilúvio! Mas é surpreendente que vós, homem bom e de inteligência possais crer neles, e que seguindo seus abomináveis conselhos, façais e deixai-os fazer tanto mal por uma ideia tão quimérica quanto deter o eterno movimento da humanidade.

Vós não podeis ignorar que desde que estudamos a vida dos povos, as formas econômicas e sociais, da mesma forma que as formas políticas e religiosas desta vida, têm avançado continuamente adiante, de grosseiras e cruéis que eram, têm se adocicado, convertendo-se em mais humanas, em mais razoáveis. Vossos conselheiros dizem que isso não é verdade, dizem que a ortodoxia e a autocracia são necessárias ao povo russo, tanto agora como antes, e que devem sê-lo até a consumação dos séculos, de maneira que para o bem do povo, custe o que custar, é preciso defender essas duas formas ligadas entre si; a crença religiosa e o estado político. Mas é uma dupla mentira: Primeiro, ninguém pode sustentar que a ortodoxia tenha sido em outra época própria do povo russo ou que poderia ser agora; dois informes dados pelo procurador geral do Santo Sínodo revelam que os membros do corpo espiritual, de inteligencia mais desenvolvida, apesar de todas as desvantagens, dos perigos que correm, se afastam da ortodoxia para ingressar cada vez em maior número em outras seitas. Segundo, se fosse verdade que a ortodoxia é a religião própria do povo russo, não haveria necessidade de defender com tanta energia esta forma de crença, e de perseguir com tanta crueldade aos que a negam.

No que diz respeito a autocracia, sim, ela veio a calhar em cima do povo russo, quando esse povo olhava ao Tsar como um Deus terrenal e infalível dirigindo por si só o destino do povo; agora não é mais assim, pois todos sabem ou chegaram a saber: Primeiro, que um bom Rei não é mais do que uma casualidade feliz, que os reis podem ser e foram tiranos ou loucos, como João IV e Paulo. Segundo, que por mais bom e sábio que seja o Tsar, não pode dirigir por si mesmo uma população de cem milhões de homens, e quanto aos que estão ao lado do Tsar e que dirigem o povo, cuidam mais de própria situação deles do que do bem do povo.

Se dirá então: o Tsar pode escolher por auxiliares homens desinteressados e bons. Desgraçadamente o Tsar não pode fazê-lo, porque não conhece mais que algumas dezenas de homens que, por casualidade ou por diferentes intrigas, tem se acercado dele e apartado cuidadosamente aqueles que poderiam substituí-los. De maneira que o Tsar escolhe, não entre aqueles milhares de homens verdadeiramente instruídos e honrados que aspiram a ocupar-se dos negócios públicos, e sim entre aqueles de quem disse Beaumarchais: O homem medíocre e rasteiro chega a sê-lo integralmente. E mesmo que os russos estejam prontos a obedecer ao Tsar, não podem fazê-lo sem sentir ganas de rebelar-se, de desobedecer as pessoas que desprezam. Vossa errônea crença no amor do povo pela autocracia e pelo seu representante, o Tsar, vos impede de ver o fato de que quando chega a Moscou e a outras cidades vos segue uma multidão correndo e gritando: Hurra! Não creiais que isto seja expressão de afeto a vossa pessoa. Não, é uma multidão de curiosos que correm de igual maneira detrás de cada espetáculo, pouco frequente Em suma, essas pessoas que toma por representantes dos sentimentos do povo não são mais que uma multidão arrastada e instruída pela polícia.

Se vós pudésseis passear durante a passagem de um trem imperial, entre os camponeses colocados detrás do cordão de tropas, que estão ao largo da estrada e ouvir o que dizem estes camponeses, os síndicos e outros funcionários das aldeias levados ali pela força, das aldeias mais próximas, e que com frio ou chuva, sem nenhuma recompensa, e levando as provisões deles, esperam algumas vezes durante vários dias a passagem do trem, então ouvirias os verdadeiros representantes do povo, os simples camponeses, e palavras deles não expressam nenhum amor pela autocracia nem por seu representante.

Sim, faz cincoenta anos, no tempo de Nicolau I o prestígio do poder imperial era ainda bem grande, mas desde os últimos trinta anos não para de baixar, e, nestes últimos anos tem caído tão baixo em todas as classes trabalhadoras que ninguém mais se oculta em censurar abertamente, não apenas as ordens do governo, como também as do próprio Tsar, zombando e insultando-o.

A autocracia é uma forma de governo que morreu. Talvez responda ainda às necessidade de alguns povos da África Central, afastados do resto do mundo, mas não responde às necessidades do povo russo cada dia mais culto, graças à instrução que vai sendo cada vez mais geral. Tanto que, para sustentar essa forma de governo e a ortodoxia ligada a ele, é preciso, como agora se faz, empregar todos os meios de violência, incluindo uma vigilância policial mais ativa e severa do que antes, a tortura, as perseguições religiosas, a proibição de livros e periódicos, a deformação da educação, e em geral de toda classe de atos de perversão e de crueldade. Tais tem sido até aqui os atos de vosso reinado, empreendidos com vossa concordância, que chegaram a provocar a indignação geral de toda a sociedade, como vosso qualificativo de sonhos insensatos aos desejos mais legítimos daquele homem que os fez conhecer por ocasião da disputa dos zemstvos pelo governo de Tver. Todas vossas ordens sobre a Finlândia, sobre o açambarcamento na China, sobre o projeto da conferência de Haia, sobre o aumento de tropas, sobre a restrição da autonomia local, sobre o acréscimo dos abusos administrativos, sobre vosso consentimento às perseguições religiosas, sobre vosso consentimento ao monopólio do álcool, ou seja, a venda pelo governo de um veneno que mata o povo, e por último sobre vossa obstinação por manter a pena de morte, apesar de todas as petições que vos tem sido feitas para demostrar a necessidade de derrogar tão insensata medida, absolutamente inútil e que constitui a vergonha do povo russo; todos estes atos, vós não o teríeis cometido sem seres inspirado por um conselho de auxiliares pouco sérios, com o fim de deter a vida do povo e até mesmo com a intenção de voltar ao antigo estado de coisas, já passado.

Pela violência pode-se oprimir o povo, mas não dirigi-lo. Em nosso tempo o único meio de dirigir o povo de uma maneira efetiva consiste em colocar-se ao lado do movimento do povo que busca o bem combatendo o mal, dos que saem das trevas buscando a luz, e dar-lhes os melhores meios para conseguir aquilo que tem condições de fazê-lo, e acima de tudo, há que se dar ao povo facilidade para que expresse o que deseja e o que necessita, e, uma vez ouvido, atender ao que corresponda, não às necessidades de uma classe rica, mas às necessidades da maioria do povo, às necessidades das massas proletárias.

E o desejo que agora expressaria o povo russo, se lhe desse possibilidade de fazê-lo, seria o seguinte:

Antes de mais nada, o povo trabalhador diria que deseja ver-se livre dessas leis exclusivistas que o colocam na situação de pária, aquele que não goza dos direitos dos demais cidadãos. O povo trabalhador diria que quer a liberdade de viajar, a liberdade de ensino, da crença que responda a suas necessidades espirituais. E, principalmente, esse povo de cem milhões de habitantes, diria em uma só voz, que deseja usufruir livremente da terra, ou seja, a abolição do direito de propriedade sobre a terra.

E a abolição deste direito de propriedade, segundo meu parecer, é o problema principal e o mais determinante que o governo deve resolver.

Em cada período da vida humana, existe certo grau de reforma que deve ocorrer antes que outras, posto que tende à melhora da vida. Cincoenta anos antes, o problema mais interessante e determinante a resolver foi a abolição da escravidão, em nossos dias é a emancipação das classes trabalhadoras, a libertação dessa tutoria que pesa sobre elas, o que se chama de a questão operária.

Na Europa ocidental, o alcance deste fim parece possível pela socialização das fábricas. Esta solução do problema é justa ou não? É possível para os povos ocidentais? Mas, para a Rússia atual esta solução não é aplicável?

Na Rússia, onde uma enorme parcela da população vive da terra, e se encontra sob a absoluta dependência dos grandes proprietários de terra, a emancipação dos trabalhadores evidentemente não pode solucionar-se pela socialização das fábricas. Para o povo russo, a libertação não pode executar-se mais que por meio da abolição da propriedade da terra e do reconhecimento da livre posse da terra. Desde muito tempo é este o desejo mais ardente do povo russo, que espera continuamente que seus governos o realizem.

Sei que vossos conselheiros verão nestas ideias o cúmulo da leviandade e da falta de sentido prático de um homem que não compreende toda a dificuldade do que é governar, e sobretudo semelhante ideia de reconhecer a propriedade da terra como uma propriedade comum, parecerá como o maior dos absurdos, mas sei também que para não mais cometer violência sobre o povo, que cada vez há de ser mais cruel, não há mais que um único meio: tomar por objetivo o que é desejo do povo e, sem esperar que a avalanche desça montanha abaixo e esmague o que encontre, urge guiá-la por si mesmo, ou seja, caminhar adiante para a realização das melhores formas de vida. Para os russos, este fim, não pode ser outro senão a abolição da propriedade territorial. Somente assim poderá o governo, sem fazer concessões indignas, exercer um laço de união entre os operários das fábricas e a juventude das escolas, e sem temer por sua existência, servir de guia a seu povo e dirigir-lhe de uma maneira real.

Teus conselheiros lhe dirão que declarar livre a terra do direito de propriedade, é uma fantasia irrealizável. Segundo eles, forçar um povo vivente de cem milhões de almas a deixar de viver, a voltar a meter-se na concha que desde há muito tempo é necessário romper, não é uma fantasia, e sim a realidade e a obra mais sábia e mais prática. Mas basta refletir seriamente sobre o que é irrealizável e aborrecido para concluir que declarar livre a terra do direito de propriedade é não apenas realizável, como também necessário e oportuno, algo que deve ser feito imediatamente.
Eu, pessoalmente, penso que em nossa época a propriedade territorial é uma injustiça, uma injustiça tão clara como o foi a escravidão há quarenta anos atrás. Penso que a abolição da propriedade da terra colocaria o povo russo num grau maior de independência, de felicidade e de tranquilidade. Penso também que esta medida destruiria por completo essa irritação socialista e revolucionária que agora paira sobre os trabalhadores e ameaça com maiores males o governo e o povo.

Mas posso estar errado e esta não ser a solução do problema por enquanto. Então que o próprio povo, se tem possibilidade, expresse o que deseja. Em todo caso, a primeira missão que cabe ao governo é abolir o jugo que impede o povo de manifestar seus desejos e necessidades. Não se pode fazer bem a um homem que foi amordaçado com o fim de não ouvir o que ele deseja para seu bem. Somente conhecendo os desejos e as necessidades do povo, ou da maioria, é que se pode orientá-lo e fazer aquilo que é bom para ele.

Querido irmão, neste mundo vós não tendes mais que uma vida, e a podeis gastar em vãs tentativas para deter o movimento da humanidade desde o mal até o bem, desde as trevas até a luz, movimento este estabelecido por Deus. Mas vós podeis, conhecendo os desejos e as necessidades do povo e consagrando tua vida a satisfazê-los, remediar esse mal, viver tranquilo e satisfeito, servindo a Deus e aos homens.

E, por grande que seja vossa responsabilidade, pelos últimos anos de vosso reinado durante os quais podeis fazer muito bem ou muito mal, ainda maior é vossa responsabilidade diante de Deus em vossa vida na Terra, da qual depende vossa vida eterna, e que Deus a tem dado não para fazer ou tolerar obras perversas contra todas as classes trabalhadoras, mas para cumprir Sua vontade e Sua vontade é fazer o bem aos homens e não o mal.

Reflita sobre isso, não diante dos homens, e sim diante de Deus, e fazei o que Deus disser, ou seja, vossa consciência. E não tenhais medo dos obstáculos que possais encontrar. Se entrardes nesta nova via da vida estes obstáculos se destruirão por si mesmos, e percebereis isso se procederes não pela glória humana, e sim por vossa alma, ou seja, por Deus.

Perdoa-me se, por casualidade vos tenha ofendido ou desgostado com este escrito. Meu guia não tem sido outro senão o desejo pelo bem estar do povo russo e do vosso.

Logrei meu intento? O porvir o dirá; porvir que segundo todas as probabilidades, eu não verei. Fiz aquilo que acreditei ser meu dever.

Vosso irmão que, sinceramente, vos deseja o verdadeiro bem.

León Tolstoy
Gaspra, 16 de janeiro de 1902


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A importância de negar-se o serviço militar

Existe um provérbio russo que diz: Podes desobedecer a teu pai e a tua mãe, mas obedecerás ao couro de um asno, ou seja, a um tambor. E este provérbio se aplica literalmente aos homens de nosso tempo que não tem aceito a doutrina de Cristo, ou que a aceitam deformada pela Igreja que essencialmente renega todo sentimento humano, homens que não obedecem outra coisa senão a um tambor. Apenas uma coisa os pode libertar do tambor: a profissão da verdadeira doutrina de Cristo.

Os povos europeus apreciam trabalhar por estabelecer novas formas de vida, elaboradas desde há muito tempo nas consciências, mas é sempre o velho despotismo grosseiro que lhes guia a vida. As novas concepções da vida não somente não se realizam, como até mesmo as antigas, aquelas que a consciência humana tem denunciado desde há tanto tempo – por exemplo, a escravidão, a exploração de uns pelos outros em proveito do luxo e da ociosidade; os suplícios e as guerras – se afirmam a cada dia de uma maneira cruel. A causa é que não existe uma definição do bem e do mal aceita por todos os homens, de maneira que qualquer que seja a forma de vida posta em prática, há de ser sustentada pela violência.

Ao homem pareceu simpático inventar uma forma superior de vida social, garantindo, ao seu parecer, a liberdade e a igualdade, mas não poderia livrar-se da violência, posto que ele mesmo é um violador.

Qual o efeito disso? Por grande que seja o despotismo dos governantes, por terríveis que sejam os males que este despotismo despeje sobre os homens, o homem ligado à vida social terá que ver-se sempre submetido a ele. Este homem, ou aplicará sua inteligência para justificar a violência existente e para encontrar o que é mau, ou se consolará pensando que logo encontrará o meio de derrubar o governo e de estabelecer outro, tão bom, que transformará tudo o que agora é mau. E, enquanto espera que se realize esta mudança, rápida ou lenta, das formas existentes, mudança pela qual espera a salvação, obedecerá com servilismo aos governos que existem, sejam lá quais forem, e quaisquer que sejam suas exigências. Embora não aprove o poder que, em dado momento, emprega a violência, não apenas não nega a violência, nem os meios de empregá-la, como também a julga necessária. E, por esta causa sempre obedecerá à violência governamental existente. O homem social é um violador, e inevitavelmente há de ser também um escravo.

A submissão com a qual – sobretudo os europeus que tão orgulhosos se mostram da liberdade – tem aceito uma das medidas mais despóticas, mais afrontosas que jamais teriam podido inventar os tiranos, o serviço militar obrigatório, prova isso mais do que qualquer coisa. O serviço militar obrigatório, aceito sem contradição por todos os povos, sem revolucionar-se, e até com júbilo liberal, é uma prova resplandecente da impossibilidade para o homem social livrar-se da violência e modificar o estado de coisas existentes.

Que situação pode ser mais insensata, mais insensível do que a que se encontra agora os povos europeus que gastam a maior parte de seus recursos fazendo os preparativos necessários para destruir seus vizinhos, homens dos quais nada lhes separa e com os quais vivem na mais estreita comunhão espiritual? Que pode haver de mais terrível para eles que estar sempre esperando que um louco que se proclame imperador diga algo que possa ser desagradável a outro louco semelhante? Que pode haver de mais terrível que todos esses meios de destruição inventados a cada dia: canhões, bombas, granadas, metralhadoras, pólvora seca, torpedeiros e outros engenhos mortais? Sem embargo, todos os homens, como bestas empurradas pelo chicote em direção ao matadouro, irão com docilidade para onde quer que lhes enviem, perecerão sem sublevar-se e matarão outros homens sem mesmo perguntar-se porque o fazem, e não apenas não se arrependerão disso, como também se mostrarão orgulhosos dessas medalhas que é autorizado a carregar por haver matado bastante, e levantam monumentos ao louco desgraçado, ao criminoso que lhe obrigou a cometer tais atos.

Os homens da Europa liberal se regozijam de poder escrever toda classe de tolices e de divulgar o quanto se gasta nos banquetes, nos encontros, nas câmaras, e se creem completamente livres, semelhante a bois que pastam no pasto do açougueiro acreditando ser completamente livres. Sem embargo, talvez nunca o despotismo do poder tenha causado tantas desgraças aos homens como agora, nem lhes tenha depreciado tanto como hoje. Jamais o descaro dos violadores e a covardia de suas vítimas alcançou o grau que contemplamos.

Quando os jovens se apresentam nos quartéis, são acompanhados pelos pais e mães, e se comprometem matar até mesmo eles. É evidente que não há humilhação nem vergonha que não suportem os homens da atualidade. Não há covardia nem crime que não cometam, desde que isso lhes cause o menor prazer e lhes livre do perigo mais insignificante. Nunca a violência do poder e a depravação dos dominados chegou a tal extremo. Sempre houve e há entre os homens possuídos de força moral algo que considerem sagrado, algo que não cedem por preço algum, algo pelo qual estão prontos a suportar privações, sofrimentos, até mesmo a morte; algo que não trocariam por nenhum bem material. E quase cada homem, por pouco desenvolvido que seja, o possui. Ordene a um camponês russo que cuspa na hóstia ou blasfeme o altar e ele morrerá antes de fazê-lo. Estão enganados, creem que as imagens são sagradas e não consideram o que verdadeiramente é sagrado (a vida humana), consideram a lei uma coisa sagrada que não desobedecem por nada. Mas há um limite à submissão, há nele um osso que não se dobra. Mas onde está este osso não civilizado que não se venda como escravo ao governo? Qual será esse algo sagrado que nunca abandonará?

Não existe; é completamente frouxo e se dobra por inteiro. Se existisse para ele algo sagrado, então, levando em conta tudo o que há nessa patética sociedade hipócrita em que vive, esse algo deveria ser a humanidade, ou seja, o respeito ao homem em seus direitos, à sua liberdade, à sua vida. O que significa isso?

Ele, o sábio instruído que nas escolas superiores tem aprendido tudo o que a inteligencia humana elaborou antes dele, ele que se coloca acima da multidão, ele que continuamente fala da liberdade, dos direitos, da intangibilidade da vida humana, é eleito, é revestido de um traje grotesco, e ordena levantar-se, saudar, humilhar-se, ante todos os que tem um grau a mais no uniforme, ordena prometer que matará seus irmãos e seus pais, e estar pronto a fazer todas estas coisas. A única pergunta que faz é quando e como deverá passar estas ordens. No outro dia, uma vez livre desses encargos, voltará novamente e com mais afinco a prédica dos direitos, da liberdade, da intangibilidade da vida humana, etc., etc.

Exatamente isso! É com tais homens que prometem matar a seus pais, que os liberais, que os socialistas, que os anarquistas, que os homens sociais em geral pensam organizar uma sociedade onde o homem seja livre! Mas que sociedade moral e razoável pode-se edificar com semelhantes homens? Com semelhantes homens, qualquer combinação que se faça não pode resultar mais que um rebanho de animais dirigidos aos gritos pelos chicotes dos pastores.

Este é um fardo pesado sobre os ombros dos homens, um fardo que os oprime, e os homens cada vez mais oprimidos buscam uma maneira de livrar-se dele.

Sabem que unindo suas forças poderiam retirar o fardo e lançá-lo fora, mas não conseguem chegar a um acordo sobre a maneira de fazê-lo, enquanto isso cada qual se inclina cada vez mais, deixando que o fardo se apoie sobre os ombros dos outros. E o fardo lhes esmaga mais e mais, e todos já teriam perecido se não houvesse quem lhes guiasse em alguns atos, não pelas considerações das consequências exteriores dos atos, mas sim pelo acordo do rito com a consciência.

Esses homens são os cristãos; em vez do fim exterior cujo logro exige o consentimento de todos, se consagram a um fim interior acessível sem que nenhum consentimento seja necessário. Nisso está a essência do cristianismo. Por isso, a salvação do servilismo em que se encontram os homens, impossível aos homens de ideias socialistas, tem-se realizado pelo cristianismo; a concepção real da vida deve ser suprida pela concepção cristã da vida.

O fim geral da vida não pode ser inteiramente conhecido – diz a doutrina cristã a cada um – e se apresenta diante de ti unicamente como a aproximação cada vez maior, de todos, de um bem infinito; a realização do reino de Deus, na medida em que tu conheces indubitavelmente o objetivo da vida pessoal que consiste em realizar em ti a perfeição maior, o amor necessário para a realização do reino de Deus. Este fim, tu conhecerás sempre, e é sempre factível.

Tu podes ignorar os melhores fins particulares exteriores; podem surgir obstáculos entre eles e tu; mas ninguém nem nada pode deter a aproximação em direção ao aperfeiçoamento interior e o aumento do amor em ti e nos outros. Basta ao homem substituir o objetivo exterior, social, embusteiro, pelo único fim verdadeiro, indiscutível, acessível, interior da vida, para em seguida ver cair todas as cadeias que pareciam impossíveis de romper, e se sentirá completamente livre.

O cristão rechaça a lei do Estado porque não tem necessidade dela nem para ele nem para os demais, posto que julga a vida humana mais garantida pela lei do amor que professa, que pela lei sustentada pela violência.

Para o cristão que conhece as necessidades da lei do amor, as necessidades da lei da violência não somente não podem ser-lhe obrigatórias, como se apresentam diante dele como erros que devem ser denunciados e destruídos.

A essência do cristianismo é o cumprimento da vontade de Deus que não pode ser possível pela atividade exterior que consiste em estabelecer e aplicar formas exteriores de vida, a vontade de Deus é apenas possível pela atividade interior, pela mudança da consciência, e consequente melhora da vida humana. A liberdade é a condição necessária da vida cristã. A profissão do cristianismo livra o homem de todo poder exterior, e ao mesmo tempo lhe dá a possibilidade de esperar o melhoramento da vida que busca em vão pela mudança das formas exteriores da vida.

Os homens acham que sua situação melhora graças às mudanças das formas exteriores da vida, e, sem embargo essas mudanças nem sempre resultam em uma modificação da consciência.

Todas as mudanças exteriores das formas que não são consequência de uma modificação da consciência, não somente não melhoram a condição dos homens, como com frequência a agravam. Não são os decretos do governo que tem abolido a matança de crianças, as torturas, a escravidão, é a evolução da consciência humana que tem provocado a necessidade destes decretos; e a vida não melhora em passo mais rápido do que o passo do movimento da consciência, ou seja, a vida melhora na medida em que a lei do amor ocupa na consciência do homem o lugar antes ocupado pela lei da violência.

Se as modificações da consciência exercem um influxo sobre as modificações das formas exteriores da vida, isso faz parecer aos homens que a recíproca seria verdadeira, e como é mais agradável e mais fácil (os resultados da atividade são visíveis) dirigir a atividade sobre as mudanças exteriores, preferem sempre empregar suas forças não em modificar sua consciência e sim em mudar as formas de vida, e por esta causa, na maioria dos casos, se ocupam não da essência do assunto mas de sua forma. A atividade exterior inútil, mutável, que consiste em estabelecer e aplicar formas exteriores de vida, oculta aos homens a atividade interior, essencial na mudança de sua consciência, que é a única que pode melhorar sua vida. E este erro é o que retarda cada vez mais a melhora geral da vida dos homens.

Una vida melhor não pode lograr-se sem o progresso da consciência humana, e por isso, todo homem que deseja melhorar a vida, deve dedicar-se a melhorar sua consciência e a dos demais. Mas isso é precisamente o que os homens não querem fazer, ao contrário, empregam todas suas forças em mudar as formas de vida esperando que reportarão uma modificação de consciência.

O cristianismo, e unicamente o cristianismo, livra os homens da escravidão em que se encontram na atualidade, e apenas o cristianismo lhes dá a possibilidade de melhorar realmente sua vida pessoal e a vida geral. Isto deveria ser claro para todos; mas os homens não podem aceitar isso enquanto a vida, segundo as concepções sociológicas, não for completamente conhecida, tanto no terreno dos costumes, como no terreno das crueldades, e enquanto os sofrimentos da vida social e governamental não forem estudados em todos os sentidos.

Com frequência é citado como a prova mais convincente da insuficiência da doutrina de Cristo, o fato desta doutrina conhecida há dezenove séculos ainda não ter sido aceita e admitida além de seu formato exterior. Essa doutrina é conhecida há muito tempo e ainda não é um guia para a vida dos homens. Muitos mártires do cristianismo sofreram em vão sem mudar a ordem existente e isso é uma clara prova de que tal doutrina não é verdadeira nem factível. É o que dizem os homens.

Falar e pensar assim é o mesmo que dizer e pensar que um grão que não dá imediatamente flores e frutos, e que se desloca na terra, é mau e estéril.

O fato da doutrina de Cristo não ser aceita em toda sua importância desde o momento em que apareceu, e não ser admitida além de uma forma exterior, alterada, era inevitável e necessário.

Uma doutrina que destruiu toda a antiga concepção do mundo e estabeleceu uma nova, não podia ser aceita de imediato em toda sua importância, não podia ser aceita além de seu aspecto exterior e disforme. E, ao mesmo tempo, sua aceitação sob esta forma, foi para que os homens, incapazes de compreender a doutrina e a via moral, fossem guiados pela mesma via a aceitá-la em toda sua verdade.

Podemos imaginar os romanos e os bárbaros aceitando a doutrina de Cristo no sentido que agora compreendemos? Será que os romanos e os bárbaros poderiam crer que a violência levava ao aumento da violência, e que as torturas, os suplícios, as guerras não explicam e não resolvem nada, mas que embrulham e complicam tudo?

A grande maioria dos homens daquele tempo não era apta a compreender a doutrina de Cristo pela via moral. Era necessário guiar-lhes pela mesma via, pelos meios que mostravam na prática, que cada cisão da doutrina entranhava um mal.

A verdade cristã em outra época, mais elevada pelo espírito do sentimento profético, se converteu em verdade acessível até mesmo para o homem de espírito mais simples, e em nossos dias, esta verdade se revela a cada um.

A evolução da consciência não se faz por saltos, não é descontínua e nunca se pode encontrar os limites que separam os períodos da vida da humanidade; e sem embargo, existem, como existem entre a infância e a adolescência, entre o inverno e a primavera, etc.. Se não há uma risca limítrofe, há um período transitório, e é o que agora atravessa a humanidade europeia Tudo está preparado para a passagem de um período ao outro, não falta mais que um impulso que realize esta mudança. E este impulso pode dar-se a cada momento. A consciência social nega desde há muito as formas antigas da vida, e está pronta a adotar as novas. Todos sabem dela e igualmente a sentem. Mas a inércia do passado, o temor do porvir fazem com frequência que o que está preparado há muito tempo na consciência de todos não torne-se ainda uma realidade, às vezes basta uma palavra para que a consciência se imponha, e esta força importante na vida comum da humanidade – opinião pública – transforma imediatamente, sem luta e sem violência, toda a ordem existente.

A situação da humanidade europeia com o funcionalismo, os impostos, o clero, as prisões, as guilhotinas, as fortalezas, os canhões, a dinamite, parece, com efeito, horrível, mas apenas parece. Tudo isso, todos os horrores que se cometeram, não se baseiam mais do que em nossa representação. Todas essas coisas, não apenas não deveriam existir, como também deveriam deixar de existir diante do estado da consciência humana. A força não está nas prisões, nos grilhões, nos canhões, na pólvora, a força está na consciência dos homens que aprisionam, constroem, manejam os canhões. E a consciência desses homens está em luta com a contradição mais manifesta, com a contradição mais temível, e se vê atraída por polos opostos. Cristo disse que venceu o mundo, e ele o venceu de fato.

O mal deste mundo, apesar de todos seus horrores não mais existe, porque tem desaparecido da consciência dos homens. E não precisa mais que um pequeno impulso para que se destrua o mal, e este dê lugar a uma nova forma de vida.

Nos primeiros tempos do cristianismo, o guerreiro Teodoro foi executado por declarar ao seu comando que por ser cristão não poderia portar armas, seus condenadores o olharam estupefactos, considerando-o louco, e não apenas não ocultaram tal ato, como também o expuseram à reprovação geral.

Mas hoje quando na Áustria, na Prússia, na Suécia, na Rússia, e em toda Europa, o número de refratários cresce de uma maneira considerável, esses casos não parecem mais aos potentados como casos de loucura; mas como atos bem perigosos, e os governos não mais não os lançam à execração geral, mas os ocultam com cuidado, sabedores que os homens se livram de sua escravidão, de sua ignorância, não pelas revoluções, pelas associações operárias, pelos congressos da paz, pelos livros, e sim pelo modo mais simples, isto é; que cada candidato a tomar parte na violência contra seus irmãos e contra si mesmo pergunte com assombro: Por quê hei de fazê-lo?

Não são as complicadas instituições, as associações, os julgamentos, etc., que salvarão a humanidade, será o simples arrazoamento, quando se tornar geral. E pode e deve sê-lo logo. A situação dos homens de nossa época é semelhante a do homem atormentado por um horrível pesadelo; o homem vê a si mesmo em uma situação extraordinária, diante de um mal horrível que avança sobre ele; compreende que aquilo não pode acontecer, mas não consegue deter o mal que se aproxima cada vez mais, é tomado pelo desespero, e já no limite faz uma pergunta a si mesmo: mas é isso verdade? E basta que duvide da verdade do mal para que em seguida desperte e se dissipe toda a angústia que sofria.

O mesmo ocorre com este estigma da violência, da servidão, da crueldade, da necessidade de participar desta terrível contradição, entre a consciência cristã e a vida bárbara na qual se encontram os povos europeus. Mas quando despertarem do sonho em que estão mergulhados, quando despertarem para a contemplação superior da vida revelada pelo cristianismo há mil e novecentos anos, quando esta chama queimar por toda parte, repentinamente desaparecerá tudo aquilo que é tão terrível, como ocorre ao despertar-se de um pesadelo, a alma, a consciência daquele que sofre esse pesadelo se fartará de satisfação, e até mesmo lhe será difícil compreender como semelhante insensatez pôde vir-lhe em um sonho.

Bastará despertar um instante desse aturdimento perpétuo no qual o governo trata de nos manter, bastará contemplar o que fazemos sob o ponto de vista das exigências morais, bastará contemplar o que pedimos às crianças, e o que fazemos aos animais, para horrorizá-los de toda a evidência da contradição em que vivemos. É necessário apenas que o homem desperte do estado hipnótico em que vive, que mire sobriamente o que o Estado exige dele para que, não apenas negue obediência, mas sinta uma perplexidade e uma indignação indizível do atrevimento de virem até você com semelhantes exigências.

E este despertar pode produzir-se de um momento para outro.

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Aos políticos

"O erro mais fatal que já aconteceu no mundo foi a separação entre ciência política e ética". Shelley


No que diz respeito ao trabalhador, deixo esta ideia: que o trabalhador, para livrar-se do estado de opressão em que se encontra, deve por si mesmo cessar de viver como vive na atualidade, em luta contra seu próximo por alcançar o bem pessoal, e viver segundo o princípio evangélico: procede com os outros da mesma maneira como gostarias que procedessem para contigo.

Este meio que proponho tem provocado, como é de esperar, os mesmos arrazoamentos, ou melhor dizendo, as mesmas acusações por parte dos homens das mais diversas opiniões.
É uma utopia, não é prático. Esperar que a prática da virtude liberte os homens que sofrem opressão e violência, equivale a condená-los à inação em vez de reconhecer os males existentes.

Quero dizer algumas palavras sobre isso porque entendo que esta ideia não é uma utopia, pelo contrário, merece que se fixe nela a atenção de tal forma que se torne preferível a qualquer outro meio proposto pelos sábios para melhorar a ordem social; tenho algo a dizer aos que francamente desejam – não com palavras, mas com atos – servir seu próximo.

São a estes a quem me dirijo.

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1

As ideias da vida social que guiam a atividade dos homens, se modificam, e, devido a essas modificações, altera também a ordem da vida dos homens. Houve um tempo em que o ideal da vida social era a absoluta liberdade animal durante a qual alguns, segundo suas forças, no sentido próprio e figurado, devoravam outros. Em seguida veio o tempo em que o ideal social era o poderio de um único homem, em que os homens adoravam aos potentados; não apenas voluntariamente, mas também com entusiasmo se submetiam a eles: Egito, Roma, Morituri te Salutant.

Depois os homens adotaram como ideal um estilo de vida no qual o poder era admitido, não por si mesmo, mas para regular a vida dos homens. As tentativas de realização de semelhantes ideais duraram um certo tempo: a monarquia universal; em seguida a Igreja universal, de comum acordo guiaram vários Estados. Depois disso surgiu o ideal da representação nacional, em seguida o da República, com o sufrágio universal ou restrito. Hoje, estima-se que este ideal poderá lograr-se quando a organização for tal que os instrumentos de trabalho cessem de ser de propriedade privada e passem a ser um bem comum a todo o povo.

Qualquer que seja a diferença que esses ideais proporcionem à vida para poder realizar-se supõem sempre o poder, ou seja, a força que obriga aos homens a respeitar as leis estabelecidas. Hoje se supõe a mesma coisa. Se supõe que a realização do bem maior se conseguirá na medida que alguns (segundo a doutrina chinesa, os mais virtuosos; segundo a europeia, os eleitos pelo povo) recebam o poder, o estabeleçam e o mantenham com ordem, um poder que se eleva acima de todos, e contra os que atentem contra o trabalho, a liberdade e a vida de cada um. Não somente os homens que veem no Estado uma condição necessária da vida humana, como também os revolucionários e os socialistas, por mais que considerem o Estado atual como algo a ser mudado, reconhecem a necessidade do poder, ou seja, o direito e a possibilidade de algumas pessoas forçarem as demais a aceitarem as leis estabelecidas, como condição necessária ao bem estar da sociedade.

Foi assim durante a antiguidade e continua assim em nossos dias. Mas os homens obrigados pela força a obedecer certas ordens, nem sempre as consideram como as melhores, por isso muitas vezes se sublevam contra seus dominadores, então derrubam e substituem as antigas ordens por outras novas que, de acordo com sua convicção, garantiriam um bem maior; mas o que ocorre na prática é que tais pessoas fazem uso da autoridade mais para seu bem pessoal do que para o bem comum, de maneira que o novo poder resulta como o antigo, e com frequência ainda mais injusto.

O mesmo ocorre quando um novo poder luta contra um velho poder e o derrota. Quando o novo poder derruba o poder antigo, o poder vitorioso para se manter fortalece seus meios de defesa e coage ainda mais a liberdade de seus súditos.

Sempre foi assim, desde a antiguidade até os tempos modernos, e o mesmo sucede com firme evidencia em nosso mundo europeu durante todo o século XIX. Na primeira metade desse século as revoluções, em sua maior parte, triunfaram, mas os novos poderes que vieram substituir os antigos – Napoleão I, Carlos X, Napoleão II – não aumentaram a liberdade dos cidadãos; na segunda metade, depois de 1848, todas as tentativas de revolução foram suprimidas pelos governos e, graças às antigas revoluções e às novas tentativas, os governos se defendem cada vez mais, servindo-se das invenções tecnológicas do século passado que deram aos homens um império sobre a natureza que antes não possuíam, aumentaram seu poder, e pelo fim do século passado esse poder cresceu de tal forma que a luta do povo contra ele tornou-se impossível.

Os governos tem concentrado em suas mãos não apenas enormes riquezas que roubaram dos povos, não apenas exércitos disciplinados recrutados com cuidado, mas também os meios morais de ação sobre as massas: o controle da imprensa, da religião, e principalmente, da educação. E estes meios estão tão bem organizados e são tão poderosos que desde 1848 não houve na Europa sequer uma tentativa de revolução que tivesse sido bem sucedida.

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2

Este fenômeno é completamente novo e peculiar em nosso tempo. Qualquer que fosse o poder de Nero, Gengis-Kan, Carlos Magno, estes não poderiam reprimir às revoluções em seus reinos, e além disso se encontravam impossibilitados de guiar a atividade intelectual de seus súditos, sua instrução, sua educação, sua religião. Agora todos os meios estão em poder dos governos.

Não foi apenas o sistema macadame (6) que substituiu o velho empedrado das ruas de Paris que tornou impossível levantar barricadas como aquelas vistas nesta cidade durante a Revolução. Na última metade do século XIX um semelhante macadame foi adotado por todos os ramos da administração pública: a polícia pública, a espionagem, a banalidade da imprensa, as ferrovias, o telégrafo, o telefone, a fotografia, as prisões, as fortalezas, as imensas riquezas, a educação das novas gerações, e principalmente o exército, não são mais que macadames nas mãos do governo.

Tudo está tão bem organizado que os governos mais insignificantes, os mais néscios, quase por ação reflexa, por instinto de salvaguarda, não mais se dão ao cuidado de preparar-se contra a revolução, e, sempre sem fazer nenhum esforço, esmagam as tímidas tentativas de rebelião que os revolucionários resolvem às vezes fazer, não logrando com isso outra coisa além de aumentar ainda mais o poder dos governos.

O único meio com que na atualidade se pode vencer aos governos é este: que o exército formado por homens do povo ,depois de haver compreendido a injustiça e o prejuízo que lhes causa, deixem de sustentá-lo.

Mas, sob este ponto de vista, os governos sabem que sua força principal está no exército, e têm organizado tão bem o recrutamento e a disciplina, que nenhuma propaganda feita pelo povo pode arrancar o exército das mãos do governo. Nem mesmo um único homem pertencente ao exército e que foi engolido pelo hipnotismo chamado disciplina, a despeito de toda convicção política, não pode, estando nas fileiras, subtrair-se do comando, o mesmo não pode nem mesmo abaixar a pálpebra quando lhe ameaçam o olho. E os jovens de vinte anos, recrutados para o serviço militar, são educados no espírito embusteiro, eclesiástico ou materialista, e também patriótico, não podem negar-se a servir, da mesma forma que as crianças que se enviam à escola não podem negar-se a ir. Ao prestarem o serviço militar, quaisquer que sejam as convicções desses jovens, graças à hábil disciplina elaborada durante séculos, em um ano, inevitavelmente, serão transformados em dóceis instrumentos do poder. Se surge algum caso de negativa ao serviço militar, mui raro, um a cada dez mil, este caso provêm unicamente dos chamados sectários que assim procedem, com base em suas ideias religiosas, as quais o governo não reconhece. De maneira que em nosso tempo, em nosso mundo europeu, se o governo deseja conservar o poder – e não pode deixar de desejá-lo posto que a destruição do poder seria a derrota dos governantes – não pode organizar-se nenhuma revolução séria, e se se organizasse alguma tentativa deste gênero, em seguida seria suprimida, e não teria outra consequência a não ser a perda de muita gente e o aumento do poder do governo. Os revolucionários, os socialistas que se guiam pelas tradições, arrastados pela luta que alguns convertem em profissão, não conseguem ver isso; mas todos os homens que julgam com liberdade os acontecimentos históricos, não podem deixar de notá-lo.

Este fenômeno resulta completamente novo, e isso porque a atividade dos homens que desejam mudar a ordem existente, deve conformar-se com esta nova situação do poder existente no mundo europeu.

Notas 
(6) (de Mac Adam, np) 1 Processo de pavimentação de ruas ou estradas, por meio de uma camada de brita e pó de pedra e água, assentada sobre o leito bem drenado e abaulado, e calcada em uma massa sólida por um rolo compressor. Modernamente, usa-se argamassa líquida de cimento ou material betuminoso como aglutinante. 2 Estrada ou rua pavimentada por esse processo. 3 O material usado nesse processo.

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3

A luta entre o poder e o povo dura desde muitos séculos; no princípio essa luta se caracterizou pela troca de um poder por outro, e deste por um terceiro, etc.. Desde a metade do último século, em nosso mundo europeu, o poder dos governos existentes, graças aos aperfeiçoamentos técnicos, tem se rodeado de tais meios de defesa que a luta contra ele pela força tornou-se impossível.

E, na medida que o poder se torna cada vez mais forte, também revela cada vez mais sua insegurança, a contradição interior que exita entre o poder benfeitor e a violência – pois são é a essência de todo poder – havendo a última crescido cada vez mais. Resulta evidente que o poder – que para ser bem feito deveria estar em mãos dos melhores homens – se encontra sempre nas mãos dos piores, pois os melhores homens, por causa da essência do poder em si, que consiste no emprego da violência para com os demais, não podem desejá-lo, e por esta razão, não o perseguem nem nunca o conservam.

É tão evidente esta contradição que aparentemente todos os homens deveriam vê-la. Sem embargo, o solene aparato do poder, o medo que inspira, a inércia da tradição são tão poderosos que séculos, milhares de anos, transcorrerão antes que os homens compreendam seu erro. Somente nos últimos tempos se tem começado a compreender – apesar de toda a solenidade com que o poder se acerca – que sua essência consiste em ameaçar os homens com a privação da liberdade, da vida, e em por em prática estas ameaças; por esta causa, aqueles que como os reis, os imperadores, os ministros, os juízes e os demais que consagram toda sua vida a isto, sem outro pretexto que o desejo de se aproveitar das vantagens de suas situação, não somente não são os melhores homens, mas são sempre os piores, e, sendo-o, não podem ajudar para o bem dos homens com seu poder, pelo contrário, eles tem suscitado e sempre suscitarão uma das causas principais dos males da humanidade. Em outras épocas o poder inspirava entusiasmo e adesão por parte do povo, agora em maior ou menor grau provoca nos homens não apenas indiferença, como também muitas vezes desprezo e ódio. Esta classe de homens, sendo os mais inteligentes, compreende hoje que todo aparato solene de que se rodeia o poder, não é outra coisa senão a camisa vermelha e a calça de pano com que se veste o verdugo, para distinguir-se dos demais prisioneiros, posto que ele se encarrega da necessidade mais imoral e mais repugnante do suplício dos homens.

E o poder, sabedor dessa nova forma de ver as coisas que se espalha cada vez mais entre o povo, na atualidade não se apoia mais na dominação espiritual sobre o sagrado e sobre a eleição; E não mais se sustem pela violência, pois perde e continua perdendo a confiança do povo. Perdendo esta confiança se vê forçado a recorrer cada vez mais à monopolização de todas as manifestações da vida do povo, e graças a isto provoca um descontentamento geral ainda maior.

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4

O poder tem se convertido em algo inquebrantável, mas já não se apoia sobre a unção, a eleição, a representação ou outros princípios espirituais; enquanto o poder se mantem, o povo cessa de crer no poder e de ter respeito pelo poder, e apenas se submete a ele porque não pode fazer outra coisa.

Desde a metade do último século, desde que o poder se tornou inquebrantável e ao mesmo tempo perdeu sua justificação e prestígio no meio do povo, começou a aparecer entre os homens uma doutrina da liberdade – Não essa liberdade fantástica que propagam os partidários da violência afirmando que o homem é obrigado sob pena de castigo, a executar ordens dos demais homens, e sim a única e verdadeira liberdade que consiste en que cada homem possa viver e proceder segundo sua própria razão; pagar ou não aos impostos, entrar ou não no serviço militar, estar ou não com boas ou más relações com os povos vizinhos – que é verdadeira apenas quando incompatível com qualquer poder dos homens sobre os demais.

Segundo esta doutrina, o poder não é como antes se acreditava, algo divino, augusto, já não é uma condição necessária para a vida social, mas, simplesmente uma consequência da violência grosseira de uns sobre outros. Não importa na mão de quem esteja, se nas mãos de Luis XVI ou do Comitê de Salvação Pública, do Diretório ou do Consulado, de Napoleão ou de Luis XVI, do Sultão, do Presidente, do Parlamento ou dos primeiros ministros, em todas as partes onde existe o poder de uns sobre outros, não haverá liberdade e sim opressão. Por esta causa o poder deve ser destruído.

Mas como destruí-lo? E uma vez destruído como evitar que os homens retornem ao estado selvagem de grosseira violência de uns contra os outros?

Todos os anarquistas – como se chamam os propagadores desta doutrina – estão completamente de acordo no que diz respeito à primeira pergunta, e dizem que o poder, para ser destruído de um modo eficaz, deve ser destruído, não pela força, e sim pela consciência que terão os homens de sua inutilidade e de seu perigo. Mas e quanto à segunda pergunta? Como deve estabelecer-se a sociedade sem poder? Aí eles respondem de diferentes maneiras.

O inglês Godwin, que viveu entre o final do século XVIII e o começo do século XIX, e o francês Proudhon que escrevia nos meados do último século (siglo XIX), com relação à primeira pergunta responderam que bastava destruir o poder para que os homens tivessem consciência de que o bem geral (Godwin ) e a justiça (Proudhon) eram violados pelo poder e que se espalharia por entre o povo a convicção de que o bem geral e a justiça poderiam realizar-se, assim unicamente com a ausência do poder, este se destruiria por si mesmo.

Com relação à segunda pergunta de como se garantiria o bem-estar da sociedade sem o poder, Godwin e Proudhon responderam que os homens guiados pela consciência do bem geral (Godwin) e pela justiça (Proudhon) necessariamente encontrariam as formas de vida mais razoáveis, mais justas, e mais vantajosas para todos.

Outros anarquistas, como Bakunin e Kropotkin, reconhecem também a consciência como meio de destruição do poder, a consciência, entre as massas, do prejuízo que o poder causa, de suas anomalias com o progresso da humanidade; mas creem também, sem embargo, possível e até necessária a revolução, tanto que aconselham os homens para que estejam preparados. Quanto à segunda questão contestam que desde que o Estado e a propriedade sejam destruídos, os homens facilmente se acomodarão às condições razoáveis, livres e vantajosas da vida.

À pergunta sobre os meios de destruir o poder, o alemão Max Stirner e o escritor americano Tucker respondem quase a mesma coisa que os citados anteriormente. Ambos estimam que na medida em que as pessoas compreendem que o interesse pessoal de cada um é um guia suficiente e legal para os atos humanos e que o poder não faz mais que impedir a manifestação desses princípios diretores da vida humana, o poder se destruiria por si só, graças à não obediência e principalmente, como disse Tucker, à não participação na autoridade. Sua resposta à segunda pergunta, é que os homens, desembaraçando-se da crença supersticiosa sobre a necessidade do poder, não seguiriam mais que seu interesse pessoal, se agrupariam entre eles segundo as formas mais regulares e mais vantajosas para cada qual.

Todas estas doutrinas tem completa razão sobre o ponto de vista de que se o poder deve ser destruído não há de sê-lo pela força, posto que no poder permaneceria o mais poderoso, e que não pode esperar-se esse resultado a não ser iluminando a consciência dos homens, e que os homens não devem nem obedecê-lo nem participar dele. Esta verdade é indiscutível. O poder não pode ser destruído a não ser pela consciência razoável dos homens. Mas em que deve consistir essa consciência? Os anarquistas supõem que pode basear-se nas condições que dizem respeito ao bem geral, na justiça, no progresso, e no interesse geral dos homens. Mas na medida em que descobrimos que todos esses princípios não concordam entre si, percebemos que as tais definições de bem geral, de justiça, de progresso, de interesse pessoal são infinitamente variadas; por isso é difícil supor que os homens em desacordo e compreendendo de uma maneira diferente os princípios, em nome dos quais lutam contra o poder, possam destruí-lo quando este está estabelecido com enorme força e se defende com grande habilidade. Ora, a suposição de que considerações de bem geral, de justiça, da lei do progresso possam ser suficientes para que os homens se livrem do poder – diante do fato de que não há nenhuma razão que impeça o sacrifício do bem pessoal ao bem geral resulta lógico que os homens se agrupem em condições equitativas que não impeçam a liberdade individual – é uma suposição ainda menos fundamentada. Quanto ao aspecto utilitário e egoísta de Max Stirner e de Tucker, que afirma que os procedimentos de cada um segundo seu interesse pessoal estabeleceriam aproximações equitativas entre todos, não é apenas arbitrário, como contraria em absoluto à realidade passada e atual.
De maneira que, embora reconhecendo com razão a arma espiritual como único meio para a destruição do poder, a doutrina do anarquismo baseando-se em uma concepção não religiosa e materialista do mundo, não possui esta arma espiritual e se limita a suposições, a sonhos, que possibilitam aos defensores da violência – graças à falsidade dos meios de realização de sua doutrina – negar suas verdadeiras bases.
Esta arma espiritual é conhecida pelos homens desde há muito tempo, sempre destruiu o poder e deu aos que a empregaram uma liberdade tão completa que ninguém pode tirar. Esta arma – e não há outra – é a concepção religiosa da vida na qual o homem considera sua existência terrestre como uma manifestação parcial de sua vida, ligada à vida infinita, e julga que a submissão a estas leis é mais obrigatória para ele que a obediência a qualquer das leis humanas.

Não há mais que uma concepção religiosa do mundo, unindo a todos os homens na mesma concepção da vida, incompatível com a submissão e a participação no poder, que de fato pode ser destruído.

E semelhante concepção do mundo, pode apenas dar aos homens a possibilidade, mesmo sem participar do poder, de encontrar formas razoáveis e equitativas de vida.
E, coisa assombrosa, depois de haver sido guiados pela própria vida à convicção de que o poder existente é inquebrantável e, de que em nosso tempo, não pode ser destruído mais pela força, os homens compreenderam – finalmente – esta verdade evidente até o ridículo, que o poder e todo o mal que ele faz não são mais que consequências de sua má vida, é por isso que é necessário que os homens pratiquem uma boa vida para destruir o poder e o mal que este provoca.

Os homens começam a compreender estas coisas, e agora é necessário que as compreendam, que não há mais que um meio de realizar bem a vida humana; professar e cumprir a doutrina religiosa acessível à maioria dos homens. E apenas quando professarem e cumprirem esta doutrina religiosa poderão alcançar o ideal que agora nasce em sua consciência e pelo qual aspiram.

Todas as demais tentativas de destruição do poder e de uma boa organização da vida dos homens sem o poder, não será mais que um inútil desperdício de forças, não acercando mas alijando a humanidade do fim para ao qual tende.

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5

Tenho algo a dizer a vocês, aos homens sinceros, que não estais conformes com a vida egoísta e desejais consagrar todas vossas forças ao serviço de vossos irmãos. Se tomais parte ou desejais tomar parte, na arte de governar, e por este meio servir ao povo, reflita no que é cada governo que se sustenta pelo poder. Depois disto, não podeis deixar de ver que não há nem um único governo que não cometa ou não se prepare para cometer determinados atos, apoiando-se na violência, na pilhagem e na matança.
Um escritor americano pouco conhecido, Thoreau, em sua obra Por quê o homem não deve obedecer ao governo? narra como ele se nega a pagar um dólar de imposto, dando como razão que não queria, com esse dólar, participar nas obras de um governo que permite a escravidão dos negros. Os cidadãos – não falo da Rússia, mas de países mais avançados; da América do Norte com seus atos contra Cuba, contra Filipinas, com sua conduta para com os negros e a expulsão dos chineses; da Inglaterra, com o ópio, e com os bôers (7), ou a França com seus horrores militaristas – não devem e não podem ter a mesma atitude com seu governo?

Ora, por que um homem sincero que deseje servir aos homens, e que seriamente se tem dado conta do que significa cada governo, tem necessariamente que basear sua atuação no princípio de que o fim justifica os meios?

Uma atuação semelhante sempre foi prejudicial tanto aos que a empreenderam como àqueles a quem foi dirigida.

A questão é muito simples. Ao se submeter ao governo e ao usufruir de suas leis, desejais alcançar o maior grau de liberdade possível e os maiores direitos para o povo. Mas tanto a liberdade como os direitos para o povo estão na razão inversa do poder do governo e em geral das classes dominantes. Quanto mais liberdade e direitos tiver o povo, menor será o poder e as vantagens daqueles que o governam. Os governos sabem disso e tendo o poder nas mãos, admitem voluntariamente as charlatanarias liberais de todos os tipos, e até mesmo algumas medidas liberais insignificantes que justifiquem seu poder, contendo pela ação, pela força, toda tentativa liberal que não apenas ameace as vantagens dos governos, como sua existência. De maneira que todos os esforços de servir ao povo pelo poder administrativo ou pelo parlamento, os conduzem unicamente ao resultado de aumentar com vossa atividade o poder das classes dominantes e consciente ou inconscientemente participais dele. Há homens que até desejam servir ao povo por meio das instituições existentes.

Se vós sois dessas pessoas sinceras que querem servir ao povo por meio da atividade revolucionaria socialista, sem falar da insuficiência deste fim, do bem estar material que nunca satisfaz a ninguém, reflita sobre os meios de que dispões para lográ-lo. Esses meios são: primeiro, imorais, por que contêm a mentira, o engano, a violência e as matanças e; segundo, em nenhum caso alcançarão seu objetivo.

A força e a prudência dos governos que defendem sua existência, são na atualidade tão grandes que nenhuma astúcia, engano ou crueldade poderão derrubá-los e nem mesmo abalá-los. Atualmente toda tentativa de revolução não resulta mais que uma nova justificação da violência dos governos e aumento de seu poderio.

Mesmo admitindo o que é impossível, que em nosso tempo a revolução seja coroada pelo êxito, porque pensar que, ao contrário de tudo o que sempre foi, o poder que destruiria o poder aumentaria a liberdade dos homens e seria mais benéfico que o que fora destruído? Segundo, se contra o bom senso e contra a experiência, fosse possível admitir que o poder que destrua o poder desse aos homens a liberdade de estabelecer as condições de vida que julgam mais úteis para eles, não há nenhum motivo para pensar que os homens que vivem uma vida egoísta estabeleceriam entre eles melhores condições que antes.

Mesmo que o rei de Dahomey dê a constituição, por mais liberal que seja, e inclusive que também efetue da nacionalização de todos os instrumentos de trabalho que, segundo os socialistas, salvará aos homens de todos os males, alguém deverá ter o poder para vigiar que essas condições se cumpram, e que os instrumentos de trabalho não caiam sob o domínio de particulares. E como esses homens serão dahomeyanos, com sua concepção do mundo, então evidentemente, de uma forma ou de outra, a violência de alguns dahomeyanos sobre os demais será a mesma que se não houvesse constituição nem nacionalização dos instrumentos de trabalho. Antes de estabelecer o estado socialista seria necessário que os dahomeyanos perdessem seu atrativo por vítimas ensanguentadas. A mesma coisa é também necessária para os europeus.

Para poderem viver uma vida comum sem oprimir-se mutuamente, não são de instituições sustentadas pela força que os homens necessitam, e sim de um estado moral dos homens no qual por convicção interna, e não por força procedam com os demais como querem que os outros procedam para com ele. E há homens que assim o fazem. Vivem em comunidades religiosas na América do Norte, na Rússia, e no Canadá. (8) Esses homens vivem sem leis sustentadas pela força e vivem em comum sem oprimir-se uns aos outros.

Assim, a atividade razoável, própria de nosso tempo para os homens de nossa sociedade cristã é uma: a profissão e a propaganda, por palavras e por atos, da doutrina religiosa última e superior que conhecemos: a doutrina cristã, não aquela que se acomoda à ordem existente da vida, não exigindo aos homens o cumprimento de ritos exteriores ou se conformando com a fé ou o sermão, com a salvação pela redenção; e sim esse cristianismo vital cuja qualidade necessária está não apenas na não participação nos atos do governo, mas na desobediência a suas exigências, posto que estas exigências, desde os impostos até os tribunais armados são completamente contrárias ao verdadeiro cristianismo.

Sendo assim, é evidente que a atividade dos homens que desejem servir a seu próximo devem dirigir-se não à instituição de novas formas, mas à mudança e ao aperfeiçoamento de si mesmo e dos demais homens.

Os homens que procedem contra isto pensam pela regra geral, que as formas da vida e as qualidades dos humanos e as ideias que tem do mundo, podem aperfeiçoar-se simultaneamente. Mas ao pensar isso os homens cometem o erro de costume e tomam o efeito pela causa e a causa pelo efeito ou pelo fenômeno que o acompanha.

A mudança das qualidades dos homens e de seu conceito de mundo implica inevitavelmente na mudança das formas nas quais vivem os homens, enquanto que as mudanças das formas de vida não apenas não ajudam a mudar as condições dos homens e de sua concepção de mundo, como também além de não impedir dirige por um caminho falso a atenção e a atividade dos seres humanos. Mudar as formas de vida esperando por este meio mudar as qualidades dos homens e seu conceito sobre o mundo, é o mesmo que colocar de diferentes maneiras lenha verde em um fogão a lenha, com a esperança de que colocada de um determinado modo pegará fogo. Apenas a lenha seca se incendeia não importa o modo como a coloque.

Este erro é tão evidente que os homens não poderiam ignorá-lo se não houvesse uma causa que lhe faz cair nesse engano. Esta causa está em que a mudança das qualidades dos homens deve começar em si mesmos e exige muita luta e trabalho, enquanto que a mudança da forma de vida dos demais se faz com facilidade, sem trabalho interior, e tem o aspecto de uma atividade muito séria e importante.

É contra este erro, fonte do mal maior, que desejo alertá-los, a vós, aos homens que quereis servir ao próximo com vossa vida.

notas

(7) bôer: habitante da África do Sul, descendente de holandeses.
(8) Tolstoy certamente se refere às comunidades hutteritas, amish, menonitas, quakers, anabatistas.


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6

Mas não podemos viver tranquilamente professando e propagando o cristianismo quando vemos a nosso redor homens que sofrem. Queremos efetivamente servir-lhes. Estamos prontos a dedicar nosso trabalho e até nossa vida a eles, dizem os homens com uma indignação mais ou menos sincera.

Mas, porque sabeis que estais sendo chamado a servir aos homens dessa forma? Será que é porque lhes parece o mais útil e o mais eficaz? Eu responderei a essas contradições. O que dizeis mostra unicamente que já haveis decidido, que não se pode servir à humanidade pela via cristã e que que gostarias de fazer algo fora da atividade política.

Mas todos os homens políticos pensam essa mesma coisa, todos se mostram agressivos, por menos razão que tenham. Seria ótimo se cada qual pudesse servir aos homens da forma que fosse de seu agrado, mas isso é impossível. Não há mais que um único meio de servir aos homens e melhorar sua situação: esse meio é professar a doutrina onde se tenha por trabalho espiritual a melhora de si mesmo. E a perfeição do verdadeiro cristão, que naturalmente vive continuamente entre os homens e não se afasta deles, consiste em estabelecer as melhores e mais cordiais relações entre ele e os demais homens. O estabelecimento de semelhantes relações entre os homens não pode resultar menos que melhorar sua situação geral, mesmo que a forma desta melhora permaneça desconhecida para o homem.

A verdade é que servindo com a atividade governamental, parlamentar ou revolucionária, definimos de antemão os resultados que esperamos conseguir, e com eles podemos aproveitar de todas as vantagens de uma vida agradável, luxuosa, alcançar uma posição brilhante, o aplauso dos homens e a glória. E se alguma vez ocorre que os que tomam parte em semelhante atividade sofrem, então seus sofrimentos são aqueles que diante da esperança de êxito se suporta com facilidade. Na atividade militar ainda são mais prováveis os sofrimentos e a morte, e sem embargo, apenas a escolhem os homens amorais e egoístas.

Mas a atividade religiosa: 1° Não mostra os resultados esperados, 2° exige que se renuncie ao êxito exterior, e não apenas não proporciona uma posição brilhante e gloriosa; como também coloca os homens na situação mais ínfima, submetendo-os não apenas ao desprezo e à censura dos demais, como aos sofrimentos e à morte.

Assim é que em nossa época de serviço militar obrigatório, a atividade religiosa obriga a cada homem (chamado para o serviço da matança) a suportar todos os castigos que os governos impõem por negar-se ao serviço militar. Por esta causa é difícil a atividade religiosa, mas em troca, apenas ela dá ao homem a consciência da verdadeira liberdade, e a tranquilidade de que faz o que deve.

Esta atividade é a única verdadeiramente fértil e, com exceção do fim supremo espera, através dos meios naturais e mais simples, os resultados que os homens públicos esperam alcançar por meios artificiais.

De maneira que o meio de servir aos homens não é mais que um: ou seja, viver por si mesmo uma vida honrada. E este meio não apenas não é uma quimera, como pensam aqueles que é desvantajoso para eles, mas que são quimeras todos os demais meios, pelos quais os caudilhos das massas as arrastam à vida falsa, alijando-as da única vida verdadeira.

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7

Admitamos que isto seja assim: mas quando poderá realizar-se? Os homens dizem que querem ver o mais rápido possível a realização desse ideal.

É claro que seria muito melhor se pudesse acontecer o mais rápido possível, imediatamente; mas as coisas não são assim, é preciso esperar que as sementes germinem, que surjam folhas e em seguida se transformem em árvores e assim poderemos formar o bosque.

Pode-se plantar mato e em pouco tempo se veria algo semelhante a uma selva, mas não seria mais do que um arremedo. Como fazem os governos, pode-se estabelecer uma ordem semelhante, mas não faria mais que alijar a verdadeira ordem.

1° Por que enganam os homens mostrando-lhes uma ordem que não existe? 2° Porque semelhante 'boa ordem' é obtida apenas pelo poder, e o poder deprava aos homens, tanto dos dominadores como os dominados, e, em consequência, torna ainda menos possível a verdadeira boa ordem.

Tanto que as tentativas de realizar o ideal com rapidez, não apenas não ajudarão sua verdadeira realização, como também a estorvam.

A pergunta acaba reduzida a esta: O ideal do homem – a sociedade bem organizada sem a violência – se realizará prontamente ou não? Isto depende dos que dirigem as massas e desejam francamente o bem do povo; se compreendessem logo que nada alija aos homens da realização de seu ideal do que isso, a saber, manter as antigas superstições ou a negativa de toda religião, sujeitando a atividade do povo ao serviço do governo. Quer os homens que desejam com sinceridade melhorar a sorte de seu próximo compreendam toda a vanidade dos meios próprios dos homens políticos e revolucionários para estabelecer o bem dos homens, que compreendam que o único meio de livrar aos homens de seus males, está em que os homens por si mesmos deixem de viver a vida egoísta, pagã, e comecem a viver a vida humana, cristã, e não reconheçam como agora, que seja possível e legal aproveitar-se da violência sobre o próximo, participando dela para lograr seu bem pessoal, mas, que pelo contrário, seguindo na vida a lei fundamental suprema, procedam com os outros como os outros querem que procedam com eles, etc., e sucederá que a forma irracional, cruel da vida na qual vivemos agora, se destruirá para estabelecer-se uma forma nova, própria da consciência dos homens.

Basta imaginar a enorme e formosa força espiritual que se desperdiça agora e se desperdiçou no passado para servir ao Estado e para deter a revolução; imaginar toda aquela força jovem, ardente, que se gasta nos fins revolucionários, na luta impossível contra o Estado impulsionada por sonhos socialistas completamente irrealizáveis! E tudo isso serve não apenas para alijar, mas também para tornar impossível a realização do bem pelo qual aspiram todos os homens. Que sucederia se todos os homens que gastam suas forças tão infrutiferamente e com frequência em prejuízo do próximo, dirigissem essa mesma força em direção a esse ponto único, que possibilita a boa vida social, baseada no aperfeiçoamento interior?

Quantas vezes se poderia construir com materiais novos, sólidos, uma casa nova, se todos os esforços gastos para restaurar a velha casa fossem resolutamente empregados de boa fé na preparação dos materiais para construir a casa nova que seguramente no começo não seria tão luxuosa e cômoda para certos privilegiados como a velha, mas que indubitavelmente seria mais sólida e ofereceria todas as possibilidades da necessária perfeição não apenas para um eleito, mas para todos os homens?

De maneira que tudo o que se disse aqui se resume nesta verdade, a mais simples, indiscutível e compreensível para todos: que o reinado da boa vida entre os homens exige necessariamente que os homens sejam bons.

Há um e apenas um meio de proceder para que seja boa a vida dos homens: que estes sejam bons.

Assim, a atividade dos homens que desejam ajudar no estabelecimento da boa vida não pode estar em outro lugar senão na perfeição interior cujo cumprimento é explicado no Evangelho com estas palavras: Sede perfeito como nosso Pai do Céu.